quinta-feira, 15 de agosto de 2013

O amor nas ruínas da escultora francesa Camille Claudel



Por Deborah Giannini
Da Revista da Cultura


Villeneuve-lès-Avignon, França, 1915. Dois anos após ser internada em um hospital psiquiátrico pela própria família, Camille Claudel é informada de que receberá, pela primeira vez, uma visita: a do irmão Paul. A notícia provoca grande perturbação. A escultora genial, discípula que se igualou ao mestre Rodin e cuja produção foi oprimida pela tristeza de estar encerrada, modela entre os dedos um pedaço de barro do jardim. Paul a libertaria da clausura?

Esse pequeno período de espera, de uma semana, que para Camille levou uma eternidade, foi o escolhido pelo cineasta francês Bruno Dumont para retratar o grande drama da vida da artista, interpretada por Juliette Binoche, condenada ao isolamento social por não se encaixar nos padrões: era uma artista extraordinária em um meio prioritariamente masculino e amante de um homem 20 anos mais velho, comprometido – Auguste Rodin. Depois da fatídica visita do irmão, a autora de obras-primas como A idade madura, do acervo do Museu D’Orsay, e A valsa, do Museu Rodin, passaria mais 28 anos internada. Morreu em 1943, aos 79, em decorrência de problemas do coração, pobre e abandonada no hospício de Montdevergues – no filme de Dumont, Juliette contracena com internos reais. “Sou grato a essas mulheres [as internas da clínica] que me deram essa parte da verdade delas, quando eu não me via à vontade para conseguir expressar as condições da vida de Camille Claudel no hospício”, conta o cineasta à Revista da Cultura.

Elogiado no Festival de Berlim, o delicado e árido Camille Claudel 1915 tem estreia prevista para este mês no Brasil. Além do filme, a peça Camille Claudel – Uma conspiração do silêncio, da psicanalista Fátima Bernardes Leite, com direção de Amir Haddad, deve entrar em cartaz ainda nesse ano, no Rio de Janeiro, em celebração à memória da artista – são cem anos de sua internação e 70 de sua morte.

Enquanto o filme explora a relação de Camille com o irmão, o espetáculo se debruça em sua questão com a mãe. Ambas as obras são inspiradas em correspondências trocadas no período da internação. “Camille culpa Rodin por sua desgraça, mas foi da mãe que ela sofreu o maior golpe. Louise a rejeita desde o nascimento e não permitiu que a filha saísse da clínica, mesmo a pedido dela e da orientação médica. “Nunca foi visitá-la em 30 anos”, afirma Fátima, que foi nos últimos três anos à clínica em Avignon pesquisar a vida da escultora e teve acesso a mais de mil documentos. Ela pretende promover a exposição desse material concomitantemente à peça. “Camille fica presa ao pedido de amor. Quer que Rodin se case com ela. A relação amorosa para ela era muito mais importante que as obras. É aí que a peça caminha: Camille tem um déficit em relação à mãe, por isso, o tempo inteiro demanda amor.”

A esquizofrenia à neurose obsessiva, muitas psicopatologias já foram atribuídas à escultora. Mas, para a psicanalista e artista plástica Ada Morgenstern, autora do livro Perseu, Medusa e Camille Claudel, no qual trata do impacto de uma obra de arte na vida das pessoas, motivada pelo seu próprio deslumbramento diante de Perseu e Medusa, de Camille, ela não apresentava transtorno algum. “A artista não conseguiu resolver sua questão com Rodin e com a mãe e então explodiu. O jeito que encontrou de falar desse sofrimento foi por meio de fantasias de perseguição. Ela não tinha estrutura psíquica para lidar com as disparidades, as críticas, por tudo que ela vivia e que não era bem-visto na época.” Fátima completa: “As cartas do médico deixam isso claro. Diziam: ‘Ela está melhor, suas ideias de perseguição estão abrandadas e deseja, incessantemente, estar mais perto da família’. Mas isso foi silenciado. Como não ficar louca vivendo entre loucos?”. A opinião de Dumont vai ao encontro da de Fátima. “Essa paranoia parecia ser o caminho natural de uma mulher tão exigente em sua necessidade de amar e ser amada; o trabalho dela é feito disso. Raramente uma mulher me emocionaria tanto na realização de sua arte”, salienta ele.A hostilidade da mãe em relação a Camille, segundo Fátima, vem, na verdade, desde antes de seu nascimento. A filha foi concebida no luto do primogênito, que morreu 15 dias após o parto. Ao nascer, em 1864, na pacata comuna de Villeneuve-sur-Fère, região da Picardia, no noroeste da França, ela foi batizada com um nome andrógino – o que reforça a ideia de que a mãe não desejava uma menina. O talento aflorado desde a infância encantou o pai e despertou o ciúme da mãe. Esse sentimento se intensificou quando, já na adolescência, o professor de escultura de Camille, Alfred Boucher, recomendou ao pai que se mudasse com a família para Paris, onde ela poderia crescer artisticamente. Quando chegou à Cidade Luz, aos 17 anos, Camille irradiava alegria.

Em Paris, ela ingressa na Academia Colarossi e, uma vez que Boucher é obrigado a viajar à Itália para receber um prêmio, ele deixa sua pupila sob a supervisão de Rodin, um artista já consagrado. Era uma tarde de primavera de 1883 quando Camille e Rodin se veem pela primeira vez. Ela tinha 19, ele 45. Dois anos mais tarde, ele a convida para trabalhar em seu ateliê. Ele havia recebido uma encomenda do governo francês para esculpir A porta do inferno e Os burgueses de Calais e precisava de assistentes. Já amantes, o relacionamento entre eles se estendeu por 15 anos, embora Rodin morasse com Rose Beuret e tivesse um filho com ela. Quando a mãe descobre o envolvimento de Camille com o escultor, a expulsa de casa. A escultora vai morar então com Rodin em um local batizado por eles de “retiro pagão”. “Depois do rompimento amoroso, Camille acusa Rodin de ter roubado obras dela. Na época, os assistentes faziam grande parte das obras dos grandes mestres e não levavam nenhum mérito por isso”, explica Ada. Já Fátima vê algum fundamento nessa acusação: “Em 1893, quando Camille rompe com Rodin pela primeira vez (romperia definitivamente em 1898), as obras dele traziam temas que foram trabalhados por ela, seja dando ideias ou ajudando a criá-los. Quando a artista viu essas obras modificadas, em exposições, ficou revoltada”. Ela cita a polêmica que envolve a obra Clotho, de Camille Claudel. Segundo a pesquisadora, a fundação presidida por Rodin havia se comprometido a enviar a obra para o Museu de Luxemburgo, porém a obra foi extraviada. “Rodin não se empenhou em encontrá-la. Essas situações podem denunciar uma possível rivalidade de Rodin em relação a Camille, opondo-se ao seu crescimento”, afirma.

De acordo com Aline Magnien, chefe das coleções do Musée Rodin, em Paris, não há comprovação de que obras tenham sido feitas a quatro mãos. “Nós realmente não temos conhecimento de obras comuns. La Jeune fille à la gerbe, de Camille Claudel, por exemplo, mostra grandes semelhanças com Galathée, de Rodin, mas pouco sabemos sobre o contexto. A escultora participou das obras de Rodin feitas durante o período em que trabalhou em seu estúdio. Mas havia muitos assistentes e não temos informações sobre seu papel.”

Especulações à parte, o fato é que houve um grande diálogo amoroso por meio de suas obras, acredita Fátima: “O mesmo acontece com Shakuntala, de Camille, e O beijo, de Rodin. Ele reconhece que foi Camille quem despertou a sensualidade em suas obras”.

Para Aline, os trabalhos de Rodin e Camille se aproximam pela importância de expressividade. Em comum, se destacam o papel do corpo como meio de exprimir emoções e certos temas, como o casal, a velhice e os retratos. Mas eles se distinguem pelos métodos de composição: Camille trabalha mais a obra em si, já Rodin privilegia o acabamento. Seu trabalho vai se diferenciando cada vez mais do de Rodin e adquirindo estilo próprio depois que ela sofre um aborto de um filho dele, em 1892, segundo Ada. A valsa e Clotho são exemplos disso, assim como A idade madura, sua criação mais emblemática.

Provavelmente, Camille continuou produzindo entre 1906 – data de sua última obra assinada, Níobe ferida – e 10 de março de 1913, momento de sua internação. Mas, como nesse período ela apresentava forte mania de perseguição, trabalhando com portas e janelas hermeticamente fechadas em seu ateliê – em um prédio de número 19 no Quai de Bourbon – para ninguém ver o que estava fazendo, destruía suas obras e jogava os moldes no rio Sena “para evitar que Rodin as roubasse”. Nada restou. Uma semana após a morte do pai, seu único protetor, ela foi levada à força a um hospício, com o diagnóstico, obtido pela mãe, de delírio paranoico. “Desde o dia que me raptaram pela janela da minha casa, tentei me comunicar constantemente com você. Sou vigiada dia e noite como uma criminosa. Sofro desde que fui arrancada de meu ateliê para ser encerrada neste lugar terrível. Como eu gostaria de estar fazendo minhas obras”, escreve Camille para sua amiga, Henriette.

Uma das questões mais intrigantes, explorada no filme de Dumont, é por que o irmão Paul, tão querido de Camille, se tornou cúmplice da mãe – mesmo após sua morte – ao mantê-la na clínica psiquiátrica. Escritor respeitado até hoje, Paul iniciava uma promissora carreira diplomática e, como mostra o filme, tornou-se um católico fervoroso após ter tido uma “visão do sobrenatural” ao ler a obra As iluminações, de Arthur Rimbaud. “O que é mais espantoso é como um grande religioso como ele foi visitar a irmã apenas 12 vezes em 30 anos”, afirma Fátima. O cineasta, no entanto, ressalta que não quis discutir se foi certa ou não a fria relação entre a artista e seus familiares após a internação. “Me limitei aos escritos de Paul e de Camille e procuro entregá-los. Não julgo nem Camille, nem Paul Claudel, nem Rodin. Talvez o espectador seja, ele mesmo, o juiz”, diz Dumont.

Hoje, a grande guardiã da memória da escultora é sua sobrinha-neta, Reine-Marie Paris. Ela se dedicou a resgatar e trazer à luz a obra da tia-avó, silenciada por 50 anos. O filme Camille Claudel (1988), de Bruno Nuytten, com Isabelle Adjani e Gérard Depardieu, considerado o responsável pelo renascimento das obras da escultora, foi inspirado na biografia escrita por Reine-Marie, hoje detentora da mais abrangente coleção de Camille Claudel e curadora das exposições que ajudam a disseminar sua arte pelo mundo.


A última carta

Correspondência escrita por Camille Claudel ao irmão Paul, datada de dezembro de 1939, presente no livro Camille Claudel une mise au tombeau, de Jean-Paul Morel, e nos apresentada por Fátima Bernardes Leite, autora da peça Camille Claudel – Uma conspiração do silêncio.

“Ontem, sábado, recebi 50 francos que você me enviou e que serão muito úteis. Você vê quantas dificuldades existem neste hospício e quem sabe se não será pior daqui para a frente. Estou muito triste de saber que você está doente. Espero que se reestabeleça logo. Aguardo a visita que você me promete para o próximo verão, mas nem a espero. Paris está longe e Deus sabe o que acontecerá até lá.

Na realidade, queriam que eu fizesse esculturas aqui. E, vendo que não conseguiam, me impuseram todo tipo de aborrecimento. Nestes momentos de festas, penso sempre em nossa querida mamãe. Eu não a revi desde aquele dia quando vocês tomaram a funesta resolução de me enviar a um asilo de alienados.

Eu sempre penso no belo retrato que fiz de mamãe à sombra de nosso grande jardim.

Os grandes olhos onde se viam uma dor secreta e o pedido de resignação que reinava em sua face, suas mãos cruzadas sobre o joelho em uma abnegação completa. Tudo indicava a modéstia, o sentimento de um dever puxado ao excesso. Era bem isso, a nossa própria mãe. Eu nunca mais a revi e nem este retrato.”


Nenhum comentário:

Postar um comentário