terça-feira, 28 de julho de 2015

O rico legado do Museu de Imagens do Inconsciente

Mário Pedrosa e Nise da Silveira, no Rio, em 1980

Por Luiz Carlos Mello
D Ilustríssima

Nise da Silveira (1905-99) nasceu em Maceió e cursou a faculdade de medicina na Bahia, sendo a única mulher em uma turma de 127 homens. Mudou-se para o Rio, onde obteve aprovação no concurso para médico psiquiatra em 1933. No governo Vargas, residindo no hospital da Praia Vermelha, foi presa sob acusação de comunismo e afastada do serviço público de 1936 a 1944. Com a onda de democratização do país no final da Segunda Guerra, foi readmitida.

Por não aceitar as formas de tratamento psiquiátrico em uso na época, como o eletrochoque, a lobotomia e o coma insulínico, Silveira criou, em 1946, no Centro Psiquiátrico Nacional (antigo hospital do Engenho de Dentro), no Rio, a Seção de Terapêutica Ocupacional. Entre 17 atividades diferentes, a produção dos setores de pintura e modelagem foi tão abundante e revelou-se de tão grande interesse científico que, em 1952, nasceu o Museu de Imagens do Inconsciente, que se tornou um centro de estudo e pesquisa. As imagens produzidas no ateliê levantavam perguntas que não encontravam respostas na formação psiquiátrica acadêmica.

Ela observou, por exemplo, que formas circulares apareciam em grande quantidade na pintura dos esquizofrênicos. Fotografou dezenas dessas imagens e enviou uma carta a Carl Jung perguntando se eram realmente mandalas. A resposta confirmava suas indagações: as mandalas expressariam o potencial autocurativo da psique. Por meio dessa correspondência, a psicologia junguiana foi introduzida na América Latina.

O Museu de Imagens do Inconsciente possui a maior e mais diversa coleção do gênero no mundo, documentando importante período da história da ciência e da cultura. Seu estágio de organização e pesquisa é uma referência e constitui genuíno patrimônio da humanidade.

O grande interesse despertado por este acervo, aliado ao amplo espectro de pesquisas que ele permite, faz do museu uma instituição com potencial de crescimento inigualável, de proveito em especial para o desenvolvimento de ações ligadas à inclusão e ao desenvolvimento sociais combinadas com os novos conceitos de saúde cultural e sustentabilidade.

Em 1947, o Museu de Imagens do Inconsciente realizou sua primeira exposição na sede do Ministério da Educação, no Rio de Janeiro. Mário Pedrosa, então crítico de arte do jornal Correio da Manhã, escreveu: O artista não é aquele que sai diplomado da Escola Nacional de Belas Artes, do contrário não haveria artista entre os povos primitivos, inclusive entre os nossos índios. Uma das funções mais poderosas da arte - descoberta da psicologia moderna - é a revelação do inconsciente, e este é tão misterioso no normal como no chamado anormal. As imagens do inconsciente são apenas uma linguagem simbólica que o psiquiatra tem por dever decifrar. Mas ninguém impede que essas imagens e sinais sejam, além do mais, harmoniosas, sedutoras, dramáticas, vivas ou belas, enfim constituindo em si verdadeiras obras de arte.

Hoje, a Sociedade Amigos do Museu de Imagens do Inconsciente está desenvolvendo um projeto para uma nova sede com o objetivo de ampliar suas múltiplas atividades. O acervo é estimado em 360 mil obras, sendo que as principais coleções (com 127 mil obras) são tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O Arquivo Pessoal de Nise da Silveira foi incluído recentemente no Registro da Memória do Mundo da Unesco. Nosso país tem o dever de manter e dar desenvolvimento a esse trabalho - um dos tesouros mais valiosos da alma brasileira.


LUIZ CARLOS MELLO, 64, é diretor e curador do Museu de Imagens do Inconsciente; trabalhou com Nise da Silveira durante 26 anos.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

A banalidade do bem


Por Luiz Felipe Pondé
Da Ilustrada

Conhecemos a banalidade do mal descrita pela filósofa Hannah Arendt em seu tratamento do Eichmann em Jerusalém. Pará além da questão do Holocausto em si, seu conceito de banalidade do mal fez fama: Eichmann era um sujeito medíocre, um filho da burocracia, sem tato moral, como diria o sociólogo Zygmunt Bauman em seu Modernidade e Holocausto.

Os efeitos da burocracia são a idiotice moral, a estupidez intelectual, o amor ao protocolo e o não a qualquer forma de originalidade.

Já a banalidade do mal marca o mal não como uma profundidade, como na tradição bíblica, mas como uma espécie de fungo que se espalha pelo mundo sem grandes profundidades ou sofrimento moral, aniquilando qualquer reação moral que importe. A banalidade do mal convive bem com horrores contanto que a janta seja servida na hora.

O mal é banal num mundo em que pessoas que são boas mães demitem centenas de funcionários para equilibrar custos na empresa. Como dizia o poeta russo Joseph Brodsky: O mal adora orçamentos equilibrados (Discurso Inaugural, ensaio que integra seu livro Menos que Um).

Mas, não quero falar da banalidade do mal hoje. Quero falar da banalidade do bem, a irmã caçula da banalidade do mal.

Menos conhecida, ela desfila por nossas praças chiques em que caras limpas e bem vestidas caminham domingos e feriados, em busca de uma vida equilibrada. Seus filhos pequenos e seus cães brincam juntos, provando que está surgindo uma nova geração com mais consciência.

Voltando ao poeta russo Brodsky e ao texto dele citado anteriormente, uma das ideias mais elegantes que o autor nos apresenta nesse ensaio é que não devemos falar do bem diante de muitas pessoas porque os maus sentimentos são os mais comum nas pessoas, e, por isso mesmo, quando você tem muitas pessoas reunidas, o provável é que maus sentimentos estejam por toda parte, e que você esteja falando com muitas pessoas más.

Sobre o bem, diz Brodsky, deve-se falar apenas em círculos muito íntimos. Logo, não existe a possibilidade de falarmos do bem nas redes sociais, se formos levar a sério (como eu levo) o que nos diz o poeta russo. Portanto, o bem nas redes é sempre banalidade do bem. E o que é a banalidade do bem, afinal?

Banalidade do bem é uma forma de fungo também, mas que causa um efeito um tanto eufórico em quem a pratica, porque faz você se sentir bem consigo mesmo. Tipo ajudar crianças na África e postar fotos de você sorrindo ao lado da foto de uma delas. Ou assistir a rituais indígenas em algum centro cultural em São Paulo e postar fotos de você ao lado de um neoxamã. Ou postar foto de você com transexuais mostrando que você ama a diversidade. Ou postar frases do tipo Odeie seu ódio!. Ou imagens de sua filha reciclando lixo.

Veja que a banalidade do bem tem uma dependência direta de você postar que você é do bem. Se o habitat natural da banalidade do mal são a burocracia e a gestão, o habitat natural da banalidade do bem são as redes sociais.

Aliás, um sintoma típico da banalidade do bem é dizer frases do tipo fazer o bem faz você se sentir bem consigo mesmo. Evite pessoas que falam frases como essas. Se forem suas amigas, provavelmente pegarão seus maridos ou namorados, se tiverem uma chance. Se forem seus amigos, provavelmente, também pegarão seus maridos e namorados.

A banalidade do bem convive bem com sua irmã mais velha, a banalidade do mal. Aliás, arriscaria dizer que as duas fazem uma dupla e tanto. A caçula, como toda caçula, tende a ser mais gostosinha e em forma. A banalidade do bem tem vida equilibrada, só come comida sem glúten, sem gordura trans, faz yoga e fala para os filhos sobre desigualdade social.

Ambas estão preocupadas com a janta, mas a banalidade do mal, mais pobrinha, se contenta com novela da Globo enquanto come a janta. Já a banalidade do bem, mais chiquinha, é do tipo vinho branco com comida peruana.

Mas, atenção! Se você tem certeza de que é uma pessoa do bem e ficar eufórica, tome remédio contra fungos. E seja discreta e não conte para ninguém.