quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Na fonte do pensamento franciscano

 Imagem do livro Prayers for Peace, de 1958

Por Orlando Todisco (professor de História da Filosofia Medieval da Universidade de Cassino e no Seraphicum de Roma, Itália)
Traduzido por  Pedro Heise
Da Revista Cult


Acima de todas as graças e dons do Espírito Santo, que Cristo concede a seus amigos, está o vencer a si mesmo e com boa vontade, pelo amor de Cristo, suportar penas, injúrias e opróbrios e privações.

(I Fioretti di San Francesco, c. 8 )


No final da leitura do trecho do Evangelho (Mt, 10, 9) – que nos convida a ir pelo mundo sem “alforje nem bordão”, cobertos apenas pela luz da “boa nova” –, Francisco, com 26 anos, no outono de 1208, exclama na igreja da Porciúncula (Assis): “é o que desejo, é o que quero”, isto é, ir pelo mundo não armado como rico, para se defender ou para humilhar, mas como irmão. É um vento novo que transfigura o movimento de renovação social geral – é a idade das comunas –, eleva sua índole sem recusar as formas, radicaliza a perspectiva sem desacelerar a corrida. O olhar sai do âmbito do eu para a direção do nós, suscitando cenários novos de acordo com uma convivência inspirada na lógica altruísta, não possessiva ou elitista, contra a atitude difundida de apropriação, que atenua o encanto das coisas, fazendo com que estas percam seu sentido em detrimento da total vantagem do lucro. É este o propósito de Francisco, empenhado em desatar aquele nó de concupiscência que nos comprime na profundeza e que nos empurra para formas dissimuladas de violência, alimentadas de modos diferentes porque justificadas segundo pretextos.

Despertar social – O século de Francisco é empolgante e inovador. A passagem do século 12 para o 13 representa uma revolução excepcional, dentre as tantas da história da humanidade, porque marca a passagem do feudalismo para a comuna e, portanto, da hegemonia aristocrática para o sucesso político e econômico da burguesia. Um afluxo mais intenso de vida na maior parte dos países europeus – da Itália até a Catalunha, em Flandres, no vale do Reno, nas cidades alemãs, no vale do Ródano, nos Países Baixos – parece despertar a humanidade de um profundo torpor.

De família dedicada ao comércio, Francisco não pretende frear a corrida, nem interromper o crescimento, mas impedir que sejam gerados desequilíbrios e desigualdades; não quer se libertar do peso de tradições preciosas e de formas herdadas de vida, mas impedir que estas se tornem motivo de dilacerações sociais. Ele não quer que a competição chegue ao rompimento e ao conflito e que o crescimento cause divisões e contraposições entre quem está em cima e quem está embaixo, entre quem tem e quem não tem, entre quem vive como protagonista e quem vive como parasita. Como realizar este ambicioso objetivo de elevação social na paz? Não há outro caminho senão problematizar a índole do poder indo à fonte, onde se ergue a voz do direito de ser e onde se amadurece o direito ao controle sobre aquilo que consideramos estar em nosso serviço. O ser como expressão do nosso direito de ser, a existência como reivindicação daquilo que nos pertence e a vida como ostentação do poder, que, com a força, demonstra que o próprio valor são formas que aludem a uma visão de conjunto. É esta que é necessário retificar, saneando o subsolo.

Formas difundidas de contestação da Igreja e da sociedade – Francisco conhece as muitas formas de contestação em relação à Igreja e de rebeldia em relação ao tecido social. São movimentos que se inscrevem numa época em que a semente evangélica, talvez com dificuldade, mas certamente com força, pressiona, desde as profundezas, a sociedade. Francisco se deixa conquistar por ela, testemunhando a fecundidade e manifestando sua beleza. Qual vida Francisco sente nascer e como a alimenta? Ainda que de modo inicialmente vago, ele sente a lógica do tempo como alheia, porque esta tem uma marca possessiva e individualista. Ele sonha com um estilo de vida de comunhão com todas as criaturas, para além das antigas e novas formas – em sua maioria, divisórias e opositivas. A humanidade está num vórtice de culturas e de problemas que por um lado exigem a inteligência e por outro despertam sentimentos, às vezes de exaltação, mas mais frequentemente de desforra e de rompimento. Qual é o norte que conduz à partilha, além da contraposição, à solidariedade e não à exploração? Isto que Francisco procura é como a ilha de Kant, circundada por mares em tempestade, na qual gostaríamos de morar, mas custamos a vê-la e a alcançá-la. Ele percebe uma voz no ar – basta pensar nos muitos acordos frágeis de paz que, na Assis da época, divididos entre maiores e menores, eram firmados –, uma voz que convida a pôr fim nos conflitos destrutivos, que mortifica a vida e que empobrece a história; percebe profundamente, ainda que sepultada nos abismos do ser, a necessidade de dar antes de tomar, de proteger antes de pisar. Francisco logo compreende que se trata de uma voz que ressoa na história, mas que não é histórica, porque a engloba. É a voz de Deus que, segundo a história do Evangelho, mesmo sendo Absoluto se absolve da condição absoluta e vem habitar no tempo; mesmo sendo Onipotente renuncia à onipotência subindo na Cruz; mesmo sendo Sábio pronuncia a palavra mais alta – amor – a propósito do sujeito mais problemático – o inimigo. Anuncia-se uma espécie de transfiguração do horizonte do ser para além do eu, da razão, da consciência experiencial. Vislumbra-se um movimento para colocar em discussão o poder como “domínio” em favor do poder como “autoridade”, passando do poder de quem impõe ao poder da “coisa” que se propõe – é a lógica da potência sem poder. Sem dúvida, o processo que ele vislumbra contradiz no fundo o caminho da história, assinalado pelo desejo de uma autoafirmação não de escuta, de domínio, não de serviço. Mas esse é um bom motivo para se render ao passo obscuro do tempo, cedendo ao peso de suas contradições? Francisco está convencido que esta semente da cessação do eu em favor do outro, do poder como domínio, em favor do poder como autoridade, de fato faz do potente também impotente, porque, mais do que aquele que propõe, ela fala e persuade a “coisa” proposta contra qualquer narcisismo egolátrico. Trata-se de uma lógica sem lógica, anterior a todas as lógicas – a lógica da gratuidade –, que o Evangelho exalta como autenticamente divina, como um prolongamento daquela que presidiu a criação do mundo – em relação ao qual somos constituídos, não constituintes –, resposta à voz que chama ao ser, não pergunta nem direito. Francisco alimentou essa semente, recebeu dessa fonte, surpreendendo e, no final, encantando os homens do tempo. É a voz da liberdade que, entendida como libertação de vínculos egolátricos e oclusivos, se exprime na gratuidade; ou melhor, é a potência como serviço, ou, se quisermos, é a potência do serviço.

Francisco e a voz que chama

Do domínio ao serviço – A voz do poder como domínio soa potente na História. O nosso tempo é de potência militar, de potência econômica, de potência científica, expressões de uma única potência – a potência da razão –, que subjuga o espaço e sujeita para si o tempo. A humanidade sempre obedeceu essa voz. Agora – essa é a pergunta – é possível fazer ecoar uma outra voz, que não é obra da razão, capaz de abrir um novo capítulo da História e, logo, de olhar de outro modo para as criaturas, sejam elas racionais ou irracionais, no contexto de um objetivo diferente, não de subjugação de um por parte de outro, mas de irmandade de um por obra de outro, não de enfraquecimento de um por parte de outro, mas de oblação de um ao outro com o fim de seu efetivo fortalecimento? Mas como alcançar essa profundidade e perseguir esse objetivo ficando dentro da lógica da razão, que é a lógica da potência como controle e sujeição, com um caráter propriamente mercantil? Não seria ainda uma versão de potência dominadora que, ficando na órbita da razão, quisesse manter sob controle a potência da razão? É esta, no fundo, a arrogância daquele que, por meio do pensamento instituidor, não se contenta em ser imagem de Deus, mas invertendo a relação, faz de Deus a imagem de si em conformidade com a primazia da razão e da sua pretensão legislativa. De fato, aquele que participa do fundamento é dono da construção inteira e, portanto, é tanto o fundamento como a construção. O mesmo se pode dizer de quem, ao mostrar com a razão a fraqueza desta, não percebe que confirma sua potência, mesmo que seja para contestá-la. Se é a razão que mede sua potência – é o prolongamento da lição de Kant –, então inevitavelmente a pessoa é tomada pela prática da potência, com a consequência que a vida só pode ser – e infelizmente parece que é – um campo de batalha, conduzida com armas sofisticadas, não apenas militares, mas também sociais, econômicas, políticas, culturais – formas diferentes desta única potência que oprime uns por parte de outros, todos tomados no vórtice da mesma lógica, alguns para manifestar sua fraqueza, outros para exaltar sua força.

Francisco “sai” do mundo – Francisco, numa rara passagem autobiográfica, diz que, depois de ter passado um certo período entre os leprosos, “sendo misericordioso para com eles”, exivi de saeculo, saiu do mundo, isto é, do modo usual de pensar. Não é possível, de fato, com a razão, abrir-se a algo que não seja ela própria, ou propor com ela algo que lhe seja alheio ou que esteja fora de seu território. Como pode a razão com a razão, continuando fiel a si mesma, sair de si própria para se abrir àquilo que está além dela? E, caso isto aconteça, como reconhecer se é “outra” coisa que não a razão? Se não fosse possível colocá-la em silêncio a não ser com a razão, reconhecer a última palavra quanto à sua potência, seríamos induzidos a considerar o conflito, ou, em geral, a contraposição, como um dado que não se pode problematizar, e nós como espectadores impotentes de um duelo cujo êxito é a vitória do mais forte. De qualquer forma que for exercida, a razão sai vitoriosa, sempre da parte dos poderosos.

Francisco não segue a razão, nem se deixa encantar por sua lógica. Ele muda de rumo: antes da exploração, a contemplação, antes da pergunta, a escuta. Seguindo o Evangelho, ele indica um outro território, ou, ainda, um cenário diferente, não considerando a razão fundamental e originária, mas a derivada, mesmo que preciosa e insubstituível. A sua intuição, não dita, mas implícita naquilo que disse, é que o real não existe porque é racional, prolongamento de uma cadeia que teria origem no eterno e que uniria numa unidade o tempo e seus fenômenos. Deus não criou porque era racional que criasse, nem deu a redenção porque era racional – isto é, lógico – que viesse ao mundo e seguisse as suas criaturas, insensatas e rebeldes. Qual é o papel da razão? Onde está a força da lógica? O criado é um dom por parte de quem, não precisando de nada, quis nos envolver com sua luz. É o início da festa do ser. Como interpretar e viver, então, a própria aventura no tempo, ignorando esta “lógica altruísta”, ou, pior, subordinando-a a uma lógica reivindicativa e protestativa? É esta decisão simples e revolucionária que Francisco toma com a ousadia e a profundidade do Cristo, dom do Pai para a humanidade. Ele propõe como modelo não os apóstolos ou a Igreja primitiva, mas o próprio Cristo, portanto, não propõe formas específicas de redenção, mas a própria fonte da redenção. O problema não concerne aos direitos de alguns e aos deveres de outros, ou aos bons que devem ser favorecidos e aos injustos que devem ser condenados. O problema concerne a todos – àqueles que têm razão e àqueles que não a têm, aos ativos e aos preguiçosos – na medida em que se trata de dar início ao motivo inspirador da existência ou, ainda, ao saneamento do subsolo. Em qual lugar procurar o segredo daquilo que desata para unir, que alimenta comungando, que revela os segredos dos corações, a não ser nos abismos da bondade divina? Qual estilo a ser proposto, a cultura a ser elaborada, as orientações a serem assinaladas para enfrentar as oscilações do tempo, em vista de um salto de qualidade? O que Francisco quis dizer quando, no Testamento, relembrando a sua conversão e os primeiros passos de seu projeto de vida, escreve que “ninguém sabia me dizer o que eu deveria fazer, mas o Altíssimo me revelou que eu devia viver segundo o santo Evangelho”? Qual o alcance desta anotação, aparentemente autobiográfica, mas, na verdade, uma abertura distraída e provocante sobre seu tempo?

Justamente por ser uma época de grandes mudanças, as divisões se tornam mais marcadas e a ostentação mais visível, assim como se mostra mais urgente a comunhão, em vista de um modo de ser vivido na festa, não no luto, mas na solidariedade, não na contraposição entre irmãos, mas entre inimigos ou estranhos. O que permanecia efetivamente inativo? Qual semente estava secando? Francisco está perturbado e pensativo – com desejo de ativar uma força que se revele na comunhão e que, exprimindo-se na criatividade, transforme os sujeitos em protagonistas, não em patrões – firmemente convencido de que a grandeza não está em ter ou sujeitar, mas em dar e servir. A filiação divina, fruto da obra de redenção de Cristo, se impõe e é testemunhada como fraternidade humana, alargada a todas as criaturas. É a grande “boa nova” do Evangelho, que, perante sua luz, inverte a perspectiva dominante, isto é, não mais a fé em função da razão ou a razão em função da fé, mas o envolvimento da razão e da fé na lógica altruísta, segundo a qual antes de ter é preciso dar, antes de interrogar é preciso escutar, assumindo que o Evangelho não é um feixe de verdade, mas um lugar de fraternização universal.

Além da objetivação da razão e da fé

A doação, alma inspiradora dos percursos da razão e da fé – O objetivo a ser alcançado é o da comunhão entre todas as criaturas, ou seja, o sacrum commercium omnium creaturarum, reativando uma circularidade que não exclua nada, além do âmbito da razão e além dos caminhos da fé.  É o de colocar-se, para além destas duas asas, à procura daquilo que permite o voo. A energia divina, que a encarnação do Verbo divino introduziu no tempo, se mostra bloqueada, às vezes, desviada, ou, talvez, apenas menosprezada, mas, certamente, não colhida em sua radicalidade explosiva. Isso porque a atenção se deixa capturar por uma forma específica de vida ou por uma dimensão do ser, conforme as forças em campo se coagulam e se impõem. O olho parece incapaz de alcançar aquela profundidade abismal em que se perdem as nossas raízes. Seguindo os percursos da razão ou as indicações da fé, tendemos a absolutizar uma aventura dentre as tantas possíveis, acreditando, erroneamente, que se pode circundar as verdades, que, porém, nos guiam. Em que momento começa e acaba o  bem? Como é possível defini-lo? É preciso educar o olho para ver as coisas de outro modo. A pluralidade das situações, das expressões religiosas e culturais, mais que em termos de desforra de umas contra outras, deve ser interpretada como confirmação de uma fonte originária, para a qual os riachos, nos quais muitas vezes nos perdemos, devem conduzir. Este é um dos sentidos do convite de Francisco para ser minores et subditi omnibus, isto é, para não estar fora, sobre ou contra os outros, mas para testemunhar um modo de ser que ajude a desatar a rigidez dos estilos de vida, herdados e nunca problematizados, em nome da fonte comum, para cuja luz todas as coisas parecem preciosas e caducas ao mesmo tempo. Os inimigos não existem fora de nós. A fonte deles é a mesquinhez do espírito, a miopia da inteligência. Francisco quer que se veja a luz também onde ela não brilha. As formas conflituais são a confirmação de dilacerações interiores, que têm raízes distantes, alimentadas por tudo aquilo que suspeitamos que possa contestar o nosso poder ou reduzir seu âmbito. O testemunho de minoridade e de sujeição tem sentido e peso e se amadurece dentro desta lógica de autêntica liberdade criativa.

Contra a tendência de possuir – A recusa do dinheiro, por parte de Francisco, é indicativa, sobretudo do que ele detesta, isto é, o dinheiro como símbolo do poder dominador, instrumento da arrogância social, ao longo de uma hierarquização que muda de grau, mas conserva inalterada a lógica, potestativa e de concupiscência. Francisco quer se afastar desta lógica. A sua prática ascética, rigorosa e constante, não tem outro objetivo senão resistir à tentação de possuir, inimiga da comunhão – aquele que possui, no fim, se mostra possuído por aquilo que possui. Em outubro de 1223, Francisco, excepcionalmente inquieto por causa do rumo que sua Família estava tomando, ouvirá o chamado da amiga Clara: “mas por que você se angustia tanto? A Ordem não é sua, é dele, de Deus, o pastor supremo”. É o toque purificador da fé que se concluirá com a identificação com o Crucifixo em La Verna. É a liberdade como libertação da pretensão de ser proprietário de alguma coisa cuja fecundidade é medida em base à capacidade de ampliar os espaços de vida e de pensamento. Enquanto não envolve o espírito, tornando-o transparente, a liberdade é uma bandeira que assinala uma prisão.

O outro não é o não-eu – O ponto central é constituído pelo lugar que é atribuído ao eu, se primeiro e qualificante, ou, ao contrário, sucessivo e funcional. O Ocidente sempre colocou no centro o eu – a razão, a consciência, o horizonte experiencial –, medida suprema de todas as coisas, contribuindo para a ocidentalização do mundo. O outro é o não-eu, objetivado ou objetivável, a ser assimilado em si numa gama de matizes, da imposição da própria cultura à hostilidade declarada em relação a quem – indivíduo, grupo ou nação – não aceita as nossas ideias ou se rebela a elas, excluído do debate comunitário, ou relegado à posição subalterna. É a lição da Europa colonizadora. Mesmo onde é contestada, tal Europa domina; mesmo que seja rechaçada, é rechaçada com as suas próprias armas. “Não há conflitos que não sejam conflitos originariamente próprios da Europa, quaisquer que sejam as terras ou os mares em que ocorrem. Para esta europeização do mundo não foi mais necessário ter o continente europeu como centro. Uma vez que a Europa se expandiu em todo o mundo, o espírito europeu não está mais na Europa, transmigrou alhures. Na América do Norte, por exemplo, mas não creio que seja menor na Ásia – no Japão em primeiro lugar, depois na China, cada vez com mais intensidade e convicção, e, em seguida, nos vários países do sudeste asiático”. Nesta transmigração, a “razão” europeia, a razão enquanto potência, acentuou seu lado prático-operativo porque foi identificada com o eu – res cogitans – conforme à lógica daquela egolatria narcisística que eliminou do horizonte toda demanda que pudesse atrapalhar sua afirmação. Domesticando o objeto para a sua lógica, a razão colocou apenas as perguntas que estavam a seu alcance durante um percurso ou método que considerou produtivo, para confirmar seu primado e sua força resolutiva.

O conhecimento como re-conhecimento – Pois bem, no centro da Europa veio erguendo-se uma outra voz, que abriu um outro caminho, revelou uma outra perspectiva, segundo a qual ao eu – a razão, a consciência experiencial… – não cabe o primeiro lugar, a partir do momento que este eu existe apenas se quisermos que exista, portanto, ele é derivado e devedor. O eu não é o primum. O eu é derivado. Se for assim, o eu deve crescer com uma atitude animada por profunda gratidão. No princípio é aquele – Deus, os pais, a sociedade… – que podia não nos querer. O conhecimento, do modo que for alcançado, deve ser no fundo re-conhecimento, na consciência de que aquilo que se conhece é, no fundo, expressão de um gesto de gratuidade original, isto é, que emerge daquele fundo de infinitas possibilidades do qual a liberdade criativa o conduz ao ser. É a luz que dá alimento e cor à nossa existência, empenhada em renovar sua lógica através de uma gestualidade análoga. Do domínio à admiração: este o grande salto de qualidade que Francisco propõe. Isto foi antecipado naquela cena espetacular, imortalizada por Giotto, que retrata Francisco discutindo com o pai Bernardone – na praça de Assis. A fé e a razão. Francisco escolhe a fé como horizonte de luz, Bernardone escolhe a razão como instrumento de poder, a primeira revestindo-se de fraqueza, a segunda de potência; uma a serviço dos outros, a outra em defesa de si próprio. Uma discussão apaixonante, que se repete na história nem sempre de forma transparente, mas ainda sim com a mesma radicalidade. A razão do poder se mede com a razão da fraqueza, a razão triunfante com a razão crucificada – o cenário que a fé revela não faz parte do circuito da “loucura” segundo os gregos, como diz São Paulo? É o imenso panorama da fé cristã que Francisco revela, incitando a razão a deixar de lado sua arrogância e, ainda que confiando nela para se difundir, a ser ousada, não na submissão, mas na liberdade criativa, graças à qual nos tornamos protagonistas mas não déspotas, partícipes do banquete da vida com respeito, sem arrogância, enriquecendo-o, não depredando-o.

Originalidade do pensamento franciscano – A força revolucionária da família franciscana emerge deste confronto, e a sua proposta, atenta em recuperar a inspiração originária do cristianismo com o retorno às origens, ou melhor, ao Evangelho como forma de vida, se mostra sugestiva. É uma voz nova que suscita entusiasmo e faz pensar. Aliás, pode-se talvez dizer, não sem um pouco de exagero, que a época medieval é uma época original em relação tanto à época grega quanto à moderna por causa ou graças à presença franciscana (Boaventura, Scotus, Ockham). De fato, à pergunta:  “Qual a perfeição que melhor resume e qualifica o rosto de Deus e do homem, a razão ou a vontade, a necessidade ou a liberdade?” a escola franciscana responde, de modo substancialmente concorde, que o verdadeiro rosto de Deus e do homem é constituído pela liberdade criativa, que deve ser salvaguardada e alimentada, não só como chave hermenêutica do texto sagrado, como fez Joaquim de Fiori, mas garantida também como uma autêntica fenomenologia teológica (Boaventura), como uma teologia de tipo prático (Scotus), como um sistema político adequado (Ockham), como uma ação pastoral de tipo ecumênico (Raimundo Lúlio).

Em suma, trata-se de um novo modo de pensar, radical a ponto de exigir também que se deixe de lado uma certa terminologia, filosoficamente consolidada. De fato, o mundo e as suas criaturas são um dom, não um efeito. A lógica do dom vai bem além da lógica do efeito, sendo este uma figura empobrecida da doação, no sentido que, remetendo à categoria de causa, o efeito faz parte do circuito da doação, mas não exprime a sua substância. De fato, a doação obedece a exigências infinitamente mais complexas e potentes em relação às fontes, bastante modestas e de tipo operativo, do que a causalidade eficiente. Além disso, expressão de um gesto gratuito, o mundo e as criaturas não se submetem ao porquê, a não ser em nível horizontal e imediato e de forma limitada ao conhecimento de seu mecanismo. As coisas não existem porque são racionais. Não é na direção do “porquê” que se descobre o segredo do real, pois as criaturas são “gratuitas”, isto é, sem porquê, mas não por isso irracionais. Interpretando as criaturas como a voz de Deus no tempo, o tema do fundamento se mostra totalmente à margem, aliás, talvez mostre seu rosto alterado, privado da luminosidade liberal própria do grande senhor. O teocentrismo ou o cristocentrismo nos incitam a transcender, sem hesitação, o Deus como “fundamento”. A distância semântica entre a figura do “fundamento” e a figura da “doação” é imensa, pois uma remete à eficiência causal, e a outra ao altruísmo gratuito. Para o franciscano, Deus não é aquele que “funda”, com a conotação de estranhamento e de desencanto. Se a categoria de efeito, com a alusão à causa e, logo, ao fundamento, remete à transcendência de Deus até o estranhamento – Deus causa sui, ou aquilo que Deus é em si, ou que age por si –, a categoria da doação e, portanto, da liberdade criativa no sentido altruísta alude ao Deus fora de si, ao seu fazer-se presente – o Emanuel ou Deus com nós – ao longo dos infinitos caminhos do tempo. Talvez aquilo que seja preciso recordar como compêndio desta mudança de registro também terminológico é a transcendência da área da “objetivação”, para a qual o nosso olhar, tendencialmente científicio, é geralmente educado – as criaturas como objetos dos quais se tira proveito –, em favor da área da “doação”. É esta a figura que bem exprime a sensibilidade teorética, além de pastoral, da família franciscana, porque leva consigo o germe de uma nova ontologia – ser como dom, não como direito –, graças à qual a apropriação ou a manipulação ficam de lado. É a lógica do Cântico das criaturas.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

"Trago o amor de volta"



Por Ivan Martins
Da Revista Época

Os postes de São Paulo estão cobertos de anúncios que prometem trazer seu amor de volta, com a possibilidade de uma amarração definitiva. Mãe Isso e Pai Aquilo garantem que a mandinga funciona em troca de uma módica quantia, que pode ser paga em até quatro vezes. Anote o telefone!

Apesar de me irritar com sujeira visual, não tenho em princípio nada contra esse tipo de propaganda. Desde tempos imemoriáveis as pessoas recorrem à magia para tentar consertar o passado e assegurar o futuro. Pagando por isso. Se cabras e galinhas não forem degoladas, eu não me oponho.

O que me incomoda intelectual e emocionalmente nas amarrações é seu objetivo. Ele me parece fundamentalmente equivocado. Por que trazer de volta quem nos machuca, em vez de nos ajudar a ficar livre do problema? Eis a questão.

Quem já passou por desastres amorosos sabe como funciona.    

Quando a pessoa que você ama vai embora, o mundo ao seu redor desaba. É difícil dormir, é pior acordar, comer torna-se um fardo e conviver um inferno. Nesses momentos de dor absoluta, em que a ausência do outro nos sufoca, somos capazes de coisas absurdas para ter de volta nosso objeto de desejo.   

Ligar, escrever, se humilhar, rastejar e pular nos braços de estranhos são apenas os primeiros movimentos da sinfonia. Lá pelo final da música, se nada funcionar, podemos nos encontrar de joelhos diante de Mãe Cidinha, implorando, com os olhos cheios de lágrimas - e um cheque na mão –, pela solução do nosso problema.

Se pais e mães de santo cuidassem de nossos interesses de longo prazo, fariam diferente.

Olhariam nos nossos olhos encharcados e diriam, com a autoridade daquele voz de outro mundo, para esquecermos quem nos machuca e partirmos para outra. Em apoio sobrenatural ao nosso esforço, fariam um despacho com intuito de desamarrar nossos sentimentos de forma definitiva. O feitiço teria força suficiente para empurrar o ex-amor para bem longe da nossa vida. Onde já se viu trazer fantasma, encosto e morto vivo para dentro de casa?

Se você está rindo, não deveria. A dor de cotovelo é uma das forças destrutivas do planeta. Diariamente, ela consome as energias de milhões de pessoas, em todas as geografias e idiomas. Pior ainda, é uma doença da qual muitos doentes não querem se livrar. Há gente abandonada que adota comportamento de viciado: sabe que “aquela pessoa” faz mal, mas corre atrás dela.  

É essa estúpida epidemia de masoquismo que os anúncios do poste alimentam. Eles oferecem a droga da esperança para quem ficou dependente de um amor que não existe. Deveriam?

Um dos momentos gloriosos das nossas vidas tão breves acontece quando deixamos para trás uma obsessão amorosa. Depois de meses ou anos tomada por outra pessoa, nossa mente enfim reencontra o prazer de estar em paz, sozinha. Retomamos a nossa vida e o prazer de desfrutá-la. As outras pessoas, que pareciam mortas, voltam a nos interessar. Em algum momento – sublime renascimento - a gente até se apaixona de novo, e ensaia a dança da felicidade.  

Tudo na nossa vida é medido com a régua do tempo. No caso do amor que deu errado, não é diferente: o sofrimento de ser rejeitado passa, uma hora passa, como todo o resto já passou. Mas quem disse que é fácil?

Eu me lembro – todo mundo lembra – como é difícil deixar de procurar alguém que se deseja. É desumano querer quando não nos querem. A gente lembra do rosto, pensa nos detalhes do corpo, quer a atenção daqueles olhos. Mas eles não olham mais para nós. E dói.

Algum tempo depois, porém, as coisas mudam. Aos poucos, mantida a devida distância e o silêncio, quem sofre esquece de quem faz sofrer. Lembra uma vez por dia, depois uma vez por semana, até que uma hora esquece. Ou quase. Numa manhã de domingo, vê o fantasma na rua e quase não se incomoda. A visão causa um pequeno rebuliço interior, mas aquele ser humano deixou de ser nossa catástrofe privada. Virou detalhe, como diria o Roberto Carlos. De alguma forma, passou.  

Por isso tudo eu acho que o pessoal que vende promessas no poste deveria mudar seu cardápio. Em vez de amarração, ruptura. Em vez de trazer, afastar de vez. Em vez de esperança, realidade.

Nossa vida é tão curta e potencialmente tão bonita que não merece ser gasta com quem não nos dá bola. Acreditar em amor não é correr atrás de paixões impossíveis. É procurar aquilo que faz sentido – sentimento correspondido, festejado, que, em vez de ocupar a nossa mente como doença, ocupa os nossos dias como prazer, romance e companheirismo.

Para proteger esse tipo de amor, vale espada de dragão, arruda e sal grosso atrás da porta, para tirar mau olhado. Só não vale amarração, por favor. Para nos fazer felizes, as pessoas precisam estar livres.  

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

A essência das coisas


Por César Benjamin
Da Ilustríssima

RESUMO Em fins do século 19, a busca por um conhecimento objetivo e universal era questionada por diversos grupos. Contrário a essa tendência, Edmund Husserl erigiu um novo método de investigação filosófico, a fenomenologia, ao propor um retorno "às coisas", livre das teorias anteriores, para alcançar a certeza transcendental.

Múltiplas formas de relativismo somavam-se, no fim do século 19, para questionar as possibilidades de produzirmos conhecimento objetivo e verdadeiro. Não só as percepções diretas, baseadas nas sensações, eram vistas com desconfiança mas também até mesmo as verdades matemáticas.

Sua certeza aparente, dizia-se, decorria do fato de serem tautologias vazias, que nada informam sobre o mundo. Considerava-se que todo raciocínio dedutivo continha um vício, pois as conclusões estavam sempre embutidas nas suas premissas. Impossibilitados de alcançar as fontes últimas de qualquer certeza, deveríamos considerar o conhecimento como um conjunto de instruções práticas, úteis à vida, mas incapazes de nos dizer como o mundo, de fato, é.

O sensacionismo, teoria do filósofo austríaco Ernst Mach (1838-1916), afirmava que a busca do conhecimento era apenas um tipo de conduta da espécie humana, voltado para nos ajustar melhor ao ambiente; o conceito de verdade era uma relíquia metafísica que a ciência deveria substituir pelo conceito de "aceitabilidade".

Os adeptos do psicologismo pretendiam redefinir o estatuto da lógica, considerando-a apenas uma descrição abstrata --baseada no costume e em certos hábitos de economia mental-- de fatos psicológicos empíricos; ela deveria ser parte da psicologia, não da filosofia.

Positivistas e pragmatistas só viam fatos e relações entre fatos. Para eles, a validade das ciências naturais dependia fundamentalmente de sua eficácia, ou seja, sua capacidade de fazer previsões sobre fenômenos que aparecem no tempo e no espaço. A filosofia era vista como tributária dos resultados das ciências positivas.

Todos esses movimentos convergiam para a ideia de que pode existir conhecimento, mas não uma teoria do conhecimento autorizada a reivindicar, legitimamente, universalidade e objetividade.

CETICISMO Ao destruir as bases de todo conhecimento seguro, as diferentes formas de ceticismo ameaçavam destituir a cultura ocidental de sua posição singular. O filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938) compreendeu a gravidade disso: a busca de certezas e o estabelecimento de verdades eram parte essencial da milenar cultura europeia e fonte de sua universalidade.

Matemático de formação, considerava especialmente perigoso interpretar a lógica a partir de categorias psicológicas, pois as leis da lógica são universais e necessárias, enquanto a psicologia é uma ciência empírica, que deduz suas leis por indução.

Para restaurar a validade absoluta da verdade, Husserl concebeu um programa radical. Precisava encontrar um fundamento transcendental para a certeza e desenvolver um método voltado para descobrir as estruturas necessárias do mundo.

Buscou um recomeço da filosofia, ao modo cartesiano, para lançar as bases de um conhecimento cuja validade não dependesse da psicologia, dos fatos empíricos, da espécie humana e nem mesmo da existência do mundo, tal como o vemos. Isso exigia alterar o lugar que a filosofia ocupava.

Estávamos acostumados a outorgar às ciências a tarefa de conhecer a realidade, cabendo à filosofia refletir sobre esse conhecimento. Assim, a atividade filosófica havia se afastado das coisas, restringindo-se a examinar o conhecimento que tínhamos delas.

Husserl viu que a nova filosofia primeira que tinha em mente --que, por ser primeira, não podia ter pressupostos-- teria de "retornar às coisas", eliminando os diversos estratos de sentido que as teorias haviam depositado sobre elas.

É certo que a quantidade sempre crescente de fatos, teorias, hipóteses e classificações nos permite prever melhor certos acontecimentos e aumenta nosso poder sobre a natureza, mas isso, ele dizia, não nos ajuda a compreender o mundo: as ciências medem as coisas sem conhecer o que medem.

"Conhecer formas objetivas de construção de corpos físicos ou químicos e fazer previsões de acordo com isso --nada disso explica coisa alguma, mas precisa de explicação."

PERCEPÇÃO A certeza só pode ser obtida se conseguirmos eliminar a distância entre a percepção e as coisas, bem como a necessidade, dela decorrente, de construir uma ponte entre ambas. Conhecimento certo, seguro de si, deve ser conhecimento imediato, sem que entre o ato de conhecer e o seu conteúdo seja necessária alguma mediação.

Uma certeza que exige mediações não é mais certeza. E a necessidade de transmiti-la destrói sua imediaticidade, pois tudo o que entra no campo da comunicação humana é incerto, questionável e frágil. As ciências, tal como as conhecemos --conhecimentos indiretos e comunicáveis por natureza--, são incapazes de nos prover tal certeza.

Husserl viu que para "alcançar as coisas" precisamos partir de uma intuição na qual elas se revelem diretamente à consciência, sem distorções. Tal intuição precisa cumprir duas condições: (a) ser independente de um "eu" particular; (b) não se ater a fatos contingentes, mas buscar verdades universais, revelando suas conexões necessárias.

Descartes duvidou de tudo para livrar-se de toda dúvida. Conservou apenas o ego substancial, o único lugar que resistia à dúvida hiperbólica. Husserl seguiu o mesmo caminho, colocando em suspenso a existência do mundo, mas deu um passo adiante.

Não se deteve no ego cartesiano, a substância pensante. Considerou que o caminho da certeza exigia a eliminação também desse ego e a construção ideal de um ego transcendental, um recipiente vazio onde os fenômenos simplesmente aparecem.

O caminho para isso passava pela "epoché", a suspensão do juízo, especialmente sobre o que nos dizem as doutrinas filosóficas e as ciências. "Eu" e "mundo" ficam em suspenso, colocados entre parênteses. Não recusamos a existência deles, nem sequer duvidamos dela, mas a deixamos provisoriamente de lado para que só reste o puro fenômeno, aquele que não pertence a uma pessoa empírica nem representa um objeto real.

Nem as doutrinas filosóficas nem os resultados das ciências nem as crenças da "atitude natural" são pontos de partida indubitáveis, aqueles que Husserl buscava para reconstruir a filosofia como ciência rigorosa. Só a consciência resiste à "epoché". Ela é, pois, o resíduo fenomenológico imediatamente evidente. Mas consciência é sempre consciência de algo.

A esse traço, que diferencia o psíquico e o físico, Husserl denomina intencionalidade. Os modos típicos como as coisas e os fatos aparecem na consciência são os universais que a consciência intui quando a ela se apresentam os fenômenos. Ao prescindir dos aspectos empíricos e das preocupações que nos ligam aos fenômenos, purificando o campo da consciência, podemos buscar a intuição das essências, operação necessária no caminho para a certeza.

RADICAL Husserl encontrou o ponto de partida radical, que buscava, no domínio do absolutamente dado, do fenômeno puro, aquilo que se oferece diante de nós em qualquer das formas da nossa experiência. Era preciso deixar que o "olho do espírito" se dirigisse livremente às coisas para reconquistá-las com confiança profunda, captando em visão imediata o seu conteúdo ideal.

Em vez de valorizar as duas maneiras bem conhecidas de aproximar-se do mundo --a intuição sensível, mas vaga e imprecisa, e a construção intelectual rigorosa, mas hipotética--, ele nos mostrou um outro tipo de intuição, a intuição categórica. Ela não é um processo de abstração que tenha como ponto de partida um dado fenômeno. É uma experiência direta dos universais que se revelam a nós com irresistível evidência.

Diferentemente do que nos diz o senso comum, o individual chega à consciência pelas mãos do universal. Nossa consciência só pode captar um fato (uma cor, um som) se captou sua essência.

Não partimos dos fatos e fazemos uma abstração para conhecer tais essências. Ao contrário: só podemos compreender fatos se já captamos uma essência que os torna compreensíveis e comparáveis. Reconhecemos uma essência comum --uma "essência de som" -- quando ouvimos qualquer som. Sem esse reconhecimento, não poderíamos identificá-lo.

A fenomenologia pretende ser a ciência das essências, não dos fatos. Seu objeto são os universais que a consciência intui a partir dos fenômenos. Husserl chamou "redução fenomenológica" a operação mental que converte a intuição individual (que nos dá esta rosa, esta cadeira, objetos que existem no tempo e no espaço, em constante mutação) em intuição eidética (que nos dá as essências, imutáveis e eternas, de rosa e cadeira). O objetivo é construir um conhecimento que independa de sujeitos definidos.

O que permanece depois da redução são os conteúdos dos fenômenos, que aparecem no ego transcendental, aquele recipiente desprovido das propriedades dos sujeitos psicológicos e que é o sujeito do conhecimento puro.

RENOVADORA A fenomenologia foi a corrente filosófica mais renovadora do século 20. Representou o início de uma nova época na filosofia, algo parecido com o que foi o sistema cartesiano a partir do século 17 e o kantiano a partir do 18.

A Descartes segue-se uma época cartesiana, a Kant, uma época kantiana, em que os debates passam a se dar em torno dos temas propostos por esses pioneiros. Husserl ocupa posição semelhante. Sua enorme influência contrasta com uma personalidade silenciosa e retirada. Viveu obcecado pelos problemas últimos dos quais depende o desenvolvimento do espírito, fixando-se neles com tenacidade exemplar.

Morreu solitário na Alemanha em 1938. De ascendência judaica, ele havia sido afastado do mundo acadêmico pelos nazistas e proibido de deixar o país. Depois de sua morte, o franciscano belga Herman Leo van Breda (1911-74) conseguiu salvar seus manuscritos inéditos --bem mais numerosos que a obra publicada--, levando-os para a Universidade de Louvain, onde estão até hoje.

A obra de Husserl vem sendo publicada gradativamente. Em 1954, como volume seis da Husserliana, veio à luz a versão definitiva de "A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental", que finalmente chega ao Brasil em tradução competente de Diogo Falcão Ferrer [Forense Universitária, R$ 107, 456 págs.].

Na verdade, é de uma ampla crise espiritual e existencial, não só das ciências e nem só da Europa, mas de toda humanidade, que o livro trata, pois a crise nos fundamentos das ciências é também uma crise da filosofia e da subjetividade.

"Não podemos prosseguir seriamente com o nosso filosofar como até aqui", diz Husserl. "A exclusividade com que, na segunda metade do século 19, a visão de mundo do homem moderno se deixou determinar pelas ciências positivas e com que se deixou deslumbrar pela prosperidade' que decorria daí significou o afastamento dos problemas decisivos para uma autêntica humanidade. Meras ciências de fatos criam meros homens de fato."

Diante de sua crise e de seus descaminhos, a razão não pode procurar um fundamento fora de si mesma. Se quiser salvar-se precisa buscar sua justificação em seu próprio seio. É a tarefa da filosofia, esse esforço vigoroso de fundamentação radical que teve em Husserl, no século 20, o seu principal impulsionador. O livro recém-lançado no Brasil é uma grande síntese de seu pensamento.

Saiba mais sobre a vida de Edmund Husserl

1859
Edmund Husserl nasce em Prossnitz, uma cidade da Morávia, que então pertencia ao Império Austro-Húngaro, no dia 8 de abril. Descende de uma família judia que lhe dá educação esmerada.

1876-1877
Estuda física, matemática, astronomia e filosofia na Universidade de Leipzig.

1878
Ingressa na Universidade de Berlim, que contava com alguns dos mais importantes matemáticos da época: Leopold Kronecker, Ernest Kummer e Karl Weierstrass. Este último será seu professor. Husserl desenvolve um estilo de pensamento exato e disciplinado.

1881
Muda-se para Viena para continuar a estudar matemática com Leo Königsberger.

1882
Termina seu doutoramento com a tese 'Sobre o cálculo de Variações". Retorna a Berlim, como assistente de Weierstrass, mas em seguida decide-se novamente por Viena para estudar filosofia sob a orientação de Franz Brentano. Husserl herdará de Brentano uma das ideias centrais da fenomenologia: a intencionalidade da consciência.

1886
Converte-se ao protestantismo e entra na Igreja Luterana. Seguindo um conselho de Brentano, ingressa na Universidade de Halle, onde se torna assistente do psicólogo Carl Stumpf. Permanecerá nessa universidade até 1894.

1887
Defende a tese "Sobre o Conceito de Número". Sua aula inaugural teve como título "Os Fins e as Tarefas da Metafísica". Casa-se com Malvina Steinschneider, com quem terá três filhos.

1891
Ainda em Halle, publica "Filosofia da Aritmética", que incorpora sua tese sobre o conceito de número.

1900-1901
Publica os dois volumes de "Investigações Lógicas", obra monumental, em que estabelece as bases de uma lógica pura e ataca o relativismo. Muitos consideram que essa obra inaugura a fenomenologia. Ainda em 1901, Husserl torna-se professor extraordinário na Universidade de Göttingen, onde reunirá o primeiro grupo de adeptos da fenomenologia: Adolf Reinach, Alexander Pfänder, Morit Geiger, Max Scheler, Edith Stein e Dietrich Von Hildebrand.

1905
Publica "Lições para uma Fenomenologia Interna do Tempo".

1906
A congregação universitária recusa a proposta de nomeá-lo professor titular, alegando que sua obra "carece de importância científica". Husserl mergulha em profunda crise. Em 25 de setembro, escreve em sua agenda: "Mencionarei em primeiro lugar a tarefa geral que tenho de resolver se pretendo chamar-me filósofo: realizar uma crítica da razão. [...] Sem elucidar o sentido, a essência, os métodos, os pontos de vista centrais de uma crítica da razão, sem haver pensado, esboçado, averiguado e demonstrado uma visão dessa crítica, não posso viver sinceramente. Já provei bastante os suplícios da obscuridade, da dúvida que vacila de cá para lá. Preciso atingir uma íntima firmeza. Sei que se trata de algo grande, imenso; sei que grandes gênios fracassaram nessa empreitada. [...] Não quero comparar-me com eles, mas não posso viver sem clareza".

1907
Em Göttingen, Husserl dá o curso "A Ideia da Fenomenologia", uma exposição clara e didática da nascente fenomenologia transcendental, onde aparece pela primeira vez, de forma explícita, a ideia da redução fenomenológica.

1910-1911
Publica seu famoso artigo "Filosofia como Ciência Rigorosa".

1913
Funda o "Jahrbuch für Philosophie und Phänomenologische Forschung", publicação anual encarregada de reunir as investigações realizadas pela escola fenomenológica. Ela existirá até 1930. No primeiro volume aparece a primeira parte de outra obra fundamental de Husserl - "Ideias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica" - e "O Formalismo da Ética", de Max Scheler.

1916
Husserl é chamado para substituir Heinrich Rickert na cátedra de filosofia da Universidade de Freiburg im Breslau, onde permanecerá até aposentar-se em 1928. Ganha novos discípulos, como Eugen Fink, Ludwig Landgreve e Martin Heidegger.

1928
É nomeado professor honorário da Universidade de Berlim, onde recebe Emmanuel Lévinas como aluno. Os dois se tornam amigos. No final do ano, Husserl se aposenta.

1929 
Publica "Lógica Formal e Transcendental". Profere na Sorbonne, em francês, as conferências depois reunidas nas "Meditações Cartesianas".

1933
Hitler assume o poder na Alemanha. Na sequência dos acontecimentos, Husserl, por sua origem judaica, é proibido de ensinar e de deixar o país sem autorização.

1936
É definitivamente excluído da vida universitária pelos nazistas. Publica a primeira parte de "A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental". Nesse ano, contrai uma pleurisia que o deixa debilitado.

1938 
Depois de longa enfermidade, morre em 27 de abril, com 79 anos, deixando cerca de 40 mil páginas de manuscritos não publicados. Eles foram salvos dos nazistas pelo franciscano belga Herman Leo van Breda, que os levou para a Universidade de Louvain, onde estão depositados até hoje. Grande parte deles permanece inédita.

1939
Sai a edição póstuma de "Experiência e Juízo: Investigação em Torno da Genealogia da Lógica".

1954
Sai o 6º volume da Husserliana, com a versão mais completa de "A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental".

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

O insondável amor de Kafka e Felice

 

Por José Andrés Rojo
Caricatura por Fernando Vicente
Do El País

Felice que estava doente, perguntou No dia 16 de junho de 1913, Franz Kafka confessou a Felice Bauer que não era grande coisa. “A verdade é que não sou nada, o que não diz nada”, escreveu. Imediatamente depois explicava que não conhecia ninguém tão desastroso nos relacionamentos humanos como ele, e que tinha a impressão de que “não vivesse nada”. E acrescentava: a) que era incapaz de pensar e b) que também não sabia narrar, “nem sequer falar”. Pouco antes, depois de informar para ela: “Você quer refletir (…) para chegar a uma conclusão sobre minha proposta de casamento?”.

A editora espanhola Nórdica vai relançar nos próximos dias Cartas a Felice, quase quarenta anos depois de o livro aparecer na Espanha. E fez uma magnífica edição no momento oportuno: nunca é demais submergir neste insondável e enigmático relacionamento. “Eu perderia minha solidão, que em sua maior parte é horrível, e te ganharia, a quem amo mais que nenhum outro ser”, seguia contando Kafka na mesma carta. “Em troca você perderia tua vida tal como a levaste até o momento, vida com a que te sente satisfeita quase por completo”. De modo que arrematava: “No lugar dessa nada desprezível perda ganharia um homem doente, débil, insociável, taciturno, triste, rígido, quase desprovido de toda esperança, cuja única virtude consiste em que te querer”.

Kafka conheceu Felice Bauer no 13 de agosto de 1912 na casa da família de Max Brod, seguramente seu melhor amigo. No dia 20 de setembro escreveu para ella pela primeira vez. Kafka tinha então 29 anos; Felice, 25. Ele trabalhava em uma empresa de seguros, vivia em Praga e estava a ponto de publicar seu primeiro livro de relatos, Contemplação. Ela era executiva na Carl Lindström S.A., uma empresa dedicada à fabricação e distribuição de aparelhos de gravação e residia em Berlim. “Quando cheguei a casa dos Brod”, anotou dias depois em seu diário a propósito de Felice, “estava sentada à mesa. Não senti a menor curiosidade por saber quem era, porque em seguida foi como se nos conhecêssemos a vida toda”.

Não tardou muito para que eles se encontrassem com uma inusitada frequência, quase diariamente. Em sua sexta carta, no 27 de outubro, Kafka reconstruiu milimetricamente o dia em que se conheceram. Não voltaram a se ver, no entanto, até o dia 23 de março de 1913, quase nove meses após seu primeiro encontro. Em maio, Kafka foi recebido pela família de Felice, e passou mal. Por fim, em junho, pede Felice em casamento. No dia 1 de abril, no entanto, lhe confessou: “Meu verdadeiro medo –não poderia dizer nem ouvir nada pior– consiste em que jamais poderei te possuir.”

As cartas de Kafka a Felice ocupam 827 páginas nesta edição. Quase 80% do espaço foi escrito antes do final do ano de 1914. A última é de 16 de outubro de 1917. Foram cinco anos de um relacionamento estranho, quase sempre a distância, cheia de recatos, de equívocos, de turbulências. Amavam-se loucamente, e loucamente temiam pelo que o futuro os reservava. Foram às vezes cúmplices e às vezes inimigos. Felice respondeu que “sim” à carta de junho de 1913, e imediatamente depois começou o tormento de Kafka. Em setembro ele desmancha o compromisso e entra em um sanatório na Alemanha. Lá conhece a “garota suíça” pela qual apaixona durante dez dias. Felice, por sua vez, envia no final de outubro uma amiga, Grete Bloch, para servir de mediadora.

Mais complicações: Kafka começa a cortejar Grete por correspondência, mas pouco a pouco recupera Felice. Voltam a se prometer em junho de 1914, voltam a romper um mês mais tarde, após um incômodo episódio em um hotel que Kafka identifica com um tipo de processo em que é condenado.

Entre o dia 3 e 13 de julho de 1916, Kafka e Felice passam dez dias em Marienbad, na República Checa. A princípio as coisas iam bem. “Seguiram-se cinco dias felizes com ela, um, diria, por cada um de seus cinco anos juntos”, escreve Elias Canetti no outro processo de Kafka. De novo pensam em se casar quando a guerra terminasse. Mas voltam a discutir. Há ainda um traço de amor, mas em outubro de 1917 o relacionamento finalmente acaba. No dia 30 de setembro Kafka escreveu a carta mais triste, a penúltima de todas, embora seja a que expresse o verdadeiro final. “Meu corpo é muito frágil”, escreve, referindo-se a sua doença. “Jamais recuperarei a saúde”. Tudo terminou.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Roman Polanski: “Só o tempo consola”


O diretor, depois da projeção de 'A venus das peles', no Festival de Cannes do ano passado




Por Philip Oehmke e Martin Wolf
Do El País


Em seu escritório parisiense, perto da avenida Champs-Elysées, há uma poltrona Eames. O encosto está rasgado, mas ele tem carinho pelo velho móvel. Comprou-o com Sharon Tate, sua segunda mulher, assassinada em 1969. Sua trágica morte é apenas um dos grandes infortúnios na vida de Polanski. O primeiro aconteceu durante sua infância, no gueto de Cracóvia, quando seus pais, judeus poloneses, foram enviados para um campo de concentração. Seu pai sobreviveu, mas sua mãe morreu em Auschwitz.

Na juventude, Polanski teve dificuldades para encontrar seu lugar no mundo. A terceira desgraça ocorreu oito anos depois de Tate ser assassinada pelos seguidores da seita satânica de Charles Mason, quando Polanski abusou sexualmente de uma adolescente de 13 anos, Samantha Geimer, em Los Angeles. Foi julgado nos Estados Unidos e passou 42 dias na prisão. Mas, quando havia cumprido a pena, o juiz revogou o acordo selado pelo promotor distrital com os advogados de Polanski e Geimer, o que levou o diretor a fugir para a Europa. Voltou a ser detido em 2009, em Zurique. Em setembro, numa entrevista à Der Spiegel, Geimer disse que já o perdoou há muito tempo.

Polanski, nascido em 1933, em Paris, e criado na Polônia, é o cineasta mais célebre da Europa, famoso por clássicos como A Dança dos Vampiros (1967), O Bebê de Rosemary (1968) e Chinatown (1974). Em 2003, ganhou o Oscar de melhor direção por O Pianista. Conserva a estatueta em uma prateleira em frente à poltrona Eames rasgada. Completou 80 anos em agosto. Seu novo filme, A Pele de Vênus (que estreia no Brasil em 2014), é a adaptação cinematográfica de uma obra teatral baseada, por sua vez, num romance de Leopold von Sacher-Masoch, cujo sobrenome deu origem ao termo masoquismo. Emmanuelle Seigner, a atual mulher de Polanski, é a protagonista.

Pergunta. No filme, a atriz diz ao cineasta: “Você é o diretor. Seu trabalho é torturar os atores”. É, em parte, a voz do diretor falando?

Resposta. É evidente que, eventualmente, eu torturei atores. Não intencionalmente, é claro. Mas, às vezes, os atores têm dificuldade em aceitar o seu papel, principalmente os homens. Homens realmente não gostam de receber ordens. Quando dirijo mulheres, esse problema não existe.

É possível que se dê melhor com as atrizes porque há uma espécie de tensão sexual entre elas e o diretor?
É possível.

O senhor também namorou Nastassja Kinski, que era uma adolescente quando rodou Tess com ela, em 1979.
A única coisa que lhe interessa para seu artigo são as minhas mulheres?

Foi o senhor quem acabou de fazer um filme sobre a relação entre um diretor e uma atriz, e sobre sexo e poder. Não se justifica supor que tudo isso teria a ver com o senhor e sua vida?
Não tente encontrar falsos pretextos para me fazer essas perguntas. Já sou grandinho. Mantenho relações estritamente profissionais com a maioria das atrizes. Na verdade, praticamente todas elas, com exceção de Emmanuelle, Sharon e, talvez, Nastassja. Nastassja e eu não estávamos mais juntos quando rodei “Tess”. Não, houve apenas duas mulheres na minha vida. Uma vez tive... Deve saber que Sharon Tate foi minha esposa. Eu a conheci durante as filmagens de A Dança dos Vampiros.

E se apaixonou.
Desde o primeiro momento, quando estávamos filmando nos montes Dolomitas.

Em sua autobiografia, o senhor conta que tomavam LSD juntos e ouviam música, e foi assim que seu relacionamento começou.
Isso foi antes de começarmos a filmar. Claro que não tomamos LSD durante as filmagens. Não se esqueça de que o LSD ainda era legal. Mas não concederam um futuro juntos a Sharon e a mim. Não durou muito tempo.

Em agosto de 1969, vários membros do grupo de Charles Manson assassinaram sua esposa e quatro amigos na sua casa, em Los Angeles. Tate estava esperando um filho seu. O senhor estava em Londres havia pouco tempo, mas ficou mais alguns dias, e por isso não estava lá na noite do acontecimento.
Antes eu costumava me perguntar como consegui superar esse período.

O senhor já sabe a resposta?
Eu já não penso mais nisso. Tinha que chegar o momento de parar de pensar. Quando isso aconteceu, meus amigos me disseram que eu tinha que voltar ao trabalho, mas é impossível trabalhar nessa situação. Você não consegue. Só o tempo traz o consolo autêntico. Nada mais.

Quanto tempo demorou?
Muito. Logo após o assassinato, eu me consultei com um amigo, um psiquiatra. Ele me disse que demoraria pelo menos quatro anos até que eu pudesse voltar ao normal. Na época, achei que era muito tempo, mas acabou sendo mais do que quatro anos. Pergunto-me como um psiquiatra pode errar tanto.

Em seu filme O Pianista, de 2002, o senhor acertou contas com suas memórias. É uma das últimas testemunhas contemporâneas que podem falar sobre as experiências no gueto de Cracóvia. O senhor fala sobre isso? Com seus filhos, por exemplo?
É complicado. Tento me lembrar da minha relação com meu pai. Depois que ele voltou do campo de concentração de Mauthausen, às vezes se reunia com outros sobreviventes. E eles falavam do horror e de como sobreviveram. Como meu pai costumava usar o papel de sacos de cimento para cobrir as feridas infeccionadas, como prendiam o papel com arame para que as pulgas não entrassem. Eu não gostava dessas histórias. O que eu menos gostava era quando falavam sobre as punições.

O senhor estava consciente do que estava acontecendo quando os alemães invadiram a Polônia?
Eu tinha seis anos, mas estava consciente. Os adultos falavam horas sobre isso. Do seu medo, do ódio, da resistência patriótica polonesa contra os alemães. A primeira vez que vi um alemão foram soldados marchando sobre Varsóvia. Lembra-se da sequência de O Pianista? Foi exatamente como eu a vivi. Nós os observávamos, e muitos viraram as costas para eles. O meu pai estava ao meu lado e disse em polonês: “Esses putos. Esses putos”.

O senhor viu seu pai e outras pessoas sendo reunidas para serem levadas ao campo de concentração.
Corri até ele. Mas ele me afastou, dizendo: “Vá embora! Vá embora!”. Eu sei que ele estava tentando salvar minha vida. Instintivamente, queria ficar ao lado do meu pai. Eu teria usado qualquer desculpa para ficar com ele. A criança é por natureza otimista e acredita que tudo ficará bem. No entanto, eu sabia o que estava em jogo. Naquela época, a morte estava à espreita, então fugi. Foi assim que meu pai salvou minha vida.

Nesse momento já haviam deportado a sua mãe. Vocês sabiam que ela não estava mais viva?
Não. Sabíamos que a haviam levado para um campo de concentração, o de Auschwitz. Eu sempre achei que ela voltaria um dia. Depois da guerra, quando o meu pai tinha voltado, ele ainda acreditava que a minha mãe estivesse viva. Eu acho que meu pai não sabia que o transporte em que ela estava havia ido direto para as câmaras de gás. Minha irmã também esteve em Auschwitz. Ela sobreviveu.

Como uma pessoa encara todas essas coisas? O senhor sobreviveu ao gueto, sua mãe morreu e seu pai esteve em um campo de concentração. E, então, mais tarde, um louco descontrolado assassina sua esposa grávida... Não perdeu toda a fé na humanidade?
Não acho que o senhor iria filosofar sobre isso se lhe tivesse acontecido algo semelhante. Você acaba encarando como algo pessoal. Não percebe o efeito que tem sobre você. Não pensa no mundo. Por que eu? Talvez porque fosse algo tão incomum. Não só para mim, mas para qualquer um.

O senhor já fantasiou sobre vingança? Desejou matar a pessoa que tinha feito aquilo?
Claro que se fantasia sobre vingança. Se eu tivesse encontrado um deles imediatamente depois, provavelmente teria reagido assim. Mas dentro de mim também existe uma voz racional, as minhas convicções. Eu sempre fui contra a pena de morte. Mesmo assim, na época fui confrontado com a questão de saber se essas pessoas deveriam ser condenadas à pena de morte, e o que se conseguiria com isso. Para o mundo foi um acontecimento, mas o que estava ocorrendo comigo? Meu amor foi embora. No fim, o que importava como eu a havia perdido, se por câncer ou um ataque cardíaco? Quando se perde alguém, perde-se alguém. As circunstâncias somam-se à tragédia, mas apenas para os estranhos, não para a pessoa afetada pessoalmente.

Depois que deixou Los Angeles, o senhor se mudou para a Europa. No entanto, quatro anos depois, em 1973, voltou para Hollywood e rodou Chinatown.
Nunca quis voltar. Bob Evans, chefe de Paramount, teve muita dificuldade para me convencer, assim como Jack Nicholson. Mas uma vez que eu estava lá, comecei a viver de novo: festas, amigos, garotas. Na época, era outro planeta. Quando penso naquele período, parece que vivia em outro planeta. O ambiente e as pessoas eram diferentes. As pessoas se divertiam justamente porque a alegria dos anos sessenta havia terminado. As pessoas estavam felizes. E, claro, não havia a Aids. Mais tarde, a Aids terminou com tudo isso.

Naquela época, Jack Nicholson e o senhor se tornaram amigos.
Ele fez o papel principal em Chinatown. Mas nós já éramos amigos antes. Muitas vezes ele veio me visitar em minha casa, em Gstaad. Eu o ensinei a esquiar.

Foi na casa de Nicholson em Los Angeles que teve lugar o fato seguinte que condicionou sua vida.
Uf...

Samantha Geimer, de quem o senhor abusou sexualmente na casa de Nicholson quando ela tinha 13 anos, acaba de escrever sua autobiografia. Grande parte do livro está dedicada ao senhor.
Tenho quase certeza de que provavelmente não será como eu lembro.

Leu o livro?
Não, mas o conheço, é obvio.

Dadas as circunstâncias, fala muita amavelmente do senhor.
Ah, é?

Recentemente tivemos um encontro com Geimer. Não guarda rancor do senhor. Mas isso, claro, o senhor já deve saber.
Sim, sei. Tudo o que posso dizer é que lamento de verdade pelo que lhe aconteceu durante todos estes anos e pela maneira como ela foi arrastada pelos meios de comunicação. Eu sempre tentei manter seu nome à margem, até que tudo isso se difundiu. Acredito não ter mais nada a lhe dizer sobre esse assunto. Lerei o livro quando for publicado aqui na França.

Em 2009, o senhor escreveu uma carta a Geimer e finalmente lhe pediu desculpas.
Porque eu a havia visto na televisão. Para mim, foi importante vê-la afinal.

Não poderia ter pedido desculpas antes, em vez de 32 anos depois do incidente?
Não havia motivo. Todos tentamos simplesmente esquecer. Não vou falar disso.

É possível que, agora que o senhor tem uma filha de 20 anos, veja de outra maneira o abuso a uma garota de 13?
Olhe, eu tive a minha filha muitos anos depois do incidente. Já se passaram mais de 35 anos. Diga-me só uma coisa: não lhe parece que eu já passei bastante tempo em liberdade condicional? Se o senhor fosse o supervisor de minha liberdade condicional, diria que já está bem?

Talvez sim. Mas o fato é que o senhor não pôde viajar livremente durante décadas. Pouco depois de rodar O Escritor Fantasma, o senhor foi detido na Suíça pelo caso Geimer. Na vida real, precisou sofrer consequências similares às que o personagem do seu filme enfrentava.
Sim, e estou arcando com as consequências. Essa é uma razão pela qual tento evitar a imprensa. Para mim, uma entrevista é algo desagradável. Por que deveria me submeter a isso? Claro, mergulhar de novo nas tragédias da minha vida com o senhor, que é a pessoa dominante na entrevista, é desagradável para mim. A história do incidente com a Samantha não tem fim. E agora vem o livro dela. Não acaba nunca. Por que, diabos, depois de 30 anos vivendo como uma pessoa livre, de repente pedem minha detenção?

Havia um promotor de Los Angeles que queria virar procurador-geral da Califórnia. Prender o senhor deve ter sido uma boa publicidade para ele.
Eu virei o cavalo de batalha dele.

Como foi a experiência de passar dois meses em uma prisão da Suíça, em 2009, seguidos por sete meses de prisão domiciliar?
Obrigado por perguntar. Como o senhor acha que foi? Foi ruim para a minha família, em especial para os meus filhos. Sofreram muito. Perder seu pai durante quase um ano é terrível nesta idade. E eu precisava terminar a montagem de O Escritor Fantasma. Não poder entregar um filme é o pior que pode acontecer. As vidas de centenas de pessoas e um monte de dinheiro dependem disso. Eu tinha um velho computador na cadeia, mas não havia internet.

É que era uma cadeia.
Por isso me enviaram o primeiro corte para a cadeia em um DVD. Anotei o que era preciso editar. Depois entreguei as anotações ao meu advogado, que precisou mostrá-las à polícia. É óbvio que eles estavam cagando para aquilo. Por fim, o advogado conseguiu enviar as anotações a meu montador, que aplicou as mudanças. Foi muito complicado. Em um dado momento, falei com o diretor da prisão. Ele quase se envergonhava de precisar me manter trancafiado. Ele me disse que não havia problema, que o meu montador poderia vir à prisão e trazer consigo os computadores de edição. Dessa maneira, nos sentamos em uma sala onde os presos normalmente cortavam cebolas, e editamos o filme. Havia um tremendo cheiro de cebola. O diretor da prisão e eu ficamos amigos.

Acredita que, de algum modo, as tormentas da sua vida fizeram do senhor o artista que é agora?
Então o senhor é dos que acham que um artista precisa sofrer. Quer dizer que foi uma sorte para mim ter me dado tão mal?

Isso soa um pouco cínico.
Não sou cínico.

Apesar de tudo, afinal, chegou a ser feliz?
Sim, embora, em alguns momentos de minha vida, não conseguisse imaginar isso.

Deve ser uma pessoa otimista.
Do contrário, hoje não estaria aqui com o senhor. Duvido que tivesse sobrevivido se fosse um pessimista.


terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Texto Otimista de Fim de Ano


Por Duanne Ribeiro
Do Digestivo Cultural

Uma efeméride logo desimportante, pois se encerra 2013: No Caminho de Swann, do escritor francês Marcel Proust, completa 100 anos. Não vou falar do livro aqui, mas é melhor aproveitar o festejo do centenário enquanto se pode. Supõe-se no jornalismo que datas fechadas geram pretexto para abordar certos temas - 123, não; 202, não; 100, sim - o tempo jornalístico é assim, ou imediatista (pontual e retilíneo, nos casos mais atraentes) ou frívolo (desenhando extensos círculos). É melhor aproveitar; ou teremos de esperar cinco, dez, cinquenta anos para isso e será muito tempo perdido. Eu quero apenas ressaltar um único trecho do livro, o que deve ser equivalente à relevância que lhe resta nessas semanas derradeiras.

O personagem do título, Charles Swann, está apaixonado. Porém é descaso o que recebe em troca: seu amor avançava e agora apodrece. Decide-se então terminar o relacionamento, cortar o mal pela raiz, como se diz. O narrador nos avisa: podia até ser que cortasse o mal, mas qual raiz é essa que cortaria - quiçá a própria. O erro de Swann era crer que em um estado dado de coisas apenas um elemento se veria retirado; o equilíbrio geral permanecendo o mesmo. No entanto, a exclusão desse único ponto implicaria em uma configuração distinta. Se alcançou uma paz sob o desprezo, não implica que sem fonte de desprezo a paz ainda terá pernas. É o defeito que sustenta o edifício inteiro, como diria Clarice Lispector.

(Aliás, essa frase da Clarice, nessa época em que outro ritual circular ocorre - as listas de metas para o ano novo - ela pode ser curiosa. Uma lista de que defeitos queremos manter. Quais precisamos manter. Quais desejamos ganhar pra nós.)

Se é assim, sugeriríamos a Swann a imobilidade? Que seu amor se tornasse como que uma terceira perna, algo que lhe impedisse andar, mas fizesse de si um tripé estável, conforme escreve Clarice pela boca de GH. Mas não seria essa decisão de maneira similar a inclusão de um fator, também um toque de terremoto? Antes a revolta impotente, agora a resignação, cada qual um equilíbrio, um modo de pôr-se no mundo. A precaução do narrador tem esse aspecto inesperado: aceitar um estado de coisas é também alterar esse estado de coisas, pela alteração de nossa posição relativa. Já que não faz diferença, sugeriríamos a mudança impertinente?

Resta uma conclusão complementar: se o cataclismo vale para cada perda e para cada empate, vale também para cada conquista. Uma vitória não acrescenta uma gota eufórica nas nossas poças de alegria; remaneja o terreno inteiramente, nos põe em uma situação na qual "vitória" pode subverter-se em outro sentido. Para trás e para diante, girando no mesmo lugar, o novo te oprime.

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Uma efeméride desimportante per se: Yes Man, filme dirigido por Peyton Reed e protagonizado por Jim Carrey, completa cinco anos de lançamento. Eu o reassisti há pouco tempo, por acaso, em um quarto de hotel. O jornalismo em geral apaga as circunstâncias em que chega aos produtos culturais que aborda. Não obstante, é fácil apostar que são determinadas por estruturas comerciais. Nesta sexta deste mês é apropriado tratar de uma peça, filme, show, porque acontece agora, depois a próxima sexta, a próxima sexta - a próxima sexta: há algo da felicidade cretina que temos os habitantes do cotidiano na prática jornalística. Assim sendo, eu não poderia tratar de Yes Man; mas vou, no sentido de extrapolar suas premissas até um ponto insustentável, provavelmente imprevisto pelos autores.

O protagonista, Carl, adere a um programa de autoajuda que consiste na abertura a todo tipo de oportunidade. Seja qual for, a atitude é dizer sim. Ir ao trabalho no sábado? Sim! Aulas de violão? Sim! Site de casamento com mulheres árabes? Sim! - a sucessão de aceites leva Carl a lucros insuspeitos, períodos de "vida intensa", perspectivas ampliadas em vários âmbitos. A tradução brasileira perde o sentido do título: "Sim, Senhor" alcança o assertivo, não o existencial: ser um Homem Sim em vez de um Homem Não é o que nos garantiria o sucesso. Raso, né? Tipo Paulo Coelho: "O universo conspira a nosso favor". Mas tem sua eficiência, certamente.

Alguém poderia criticar os procedimentos ideológicos da fábula de Jim Carrey: o tempo está sendo mistificado. Ir ao trabalho e conseguir benefícios imediatos por parte do chefe - a espera foi apagada. Fazer aulas de violão e logo apertar fácil o primeiro acorde, depois, salvar um suicida com uma canção - o esforço sumiu (eu apostaria de três a seis meses para que ele pudesse tocar a música que toca; ou bem mais, já que canta junto). Além disso, as atividades não o sobrecarregam jamais, há espaço para tudo, o esgotamento é impossível. Tais falsidades ocorrem - mas é essa justamente a moral do filme. "Ter de esperar", "quanto esforço isso custará", "estar esgotado" podem ser desculpas fáceis. Escudos, rotinas, saídas de emergência.

A ética de Carl é experimental, ele está em movimento contínuo. Isso nos permite retomar a conclusão final que tivemos a respeito da historieta de Swann. Se uma adição mínima remodela todo o território, isso significa que a desesperança é um sentimento principalmente ingênuo. Seja qual for o seu estado, não descartar um evento besta, não deixar pra lá uma chance de menos, não desanimar uma só vez - as irrelevâncias podem revirar tudo, e você estará em uma nova casa, cidade e país, o mundo no fim das contas girando engraçado. O novo te redime.

Claro que, no filme, o que temos é uma versão domesticada do novo. Os trilhos da narrativa garantem que sejam poucas opções e que estejam em ordem. Em geral, não estamos em enxurrada? Passar na frente de um mural de universidade daria a nós a obrigação de fazer inglês, alemão e francês (com professores nativos), ter aulas de música, alugar um apartamento de república, participar de uma plenária estudantil, participar de uma pesquisa de mestrado. Andar no centro paulistano, teríamos de comprar ouro, comer churrasco grego, assistir a um vídeo dentro de um cinema pornô. Estamos em enxurrada. (Uma experiência curiosa seria anotar todas as oportunidades que você nega diariamente, arbitrariamente.)

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Parece haver uma linha de força singular nas obras recentes de Woody Allen: nós não estamos no controle. A que mais claramente a transmite é Tudo Pode Dar Certo (2009). Nesse caso a tradução também prejudica a compreensão. O original diz tudo: Whatever Works. Não se trata da esperança boba do título brasileiro: não se sabe se alguma coisa vai dar certo ou não, só que alguma coisa terá de ser feita, e o que será feito? O que funcionar. Nem tampouco o desalento e preguiça em "a gente faz o que pode". Somente: a gente faz. O que ficar, ficou, o que der, deu.

A mesma ideia percorre de jeitos diferentes Blue Jasmine (2013), Para Roma com Amor (2012), Meia Noite em Paris (2011) e Você vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos (2010). Considere, por exemplo, o amor romântico, retratado geralmente como uma via de sentido único. Nessas últimas produções de Allen, o amor se vê provido de curvas, rotatórias, elevados, túneis, ciclovias, protestos, ruas fechadas para pedestres. Em Whatever Works, os casais iniciais vivem suas felicidades até que acabam, formam-se outros. Em Para Roma com Amor, a moça recém-casada vive seu desejo por algumas horas. Em Blue Jasmine, um amor se interrompe por outro, que dura pouco, e então se regenera. A frase amorosa sem pausa é enriquecida de vírgulas, parênteses, aspas, pontos finais, elipses, novos parágrafos.

A vida acontece, é isso. As grandes projeções - elas são grandes farsantes. É o que indica Meia Noite em Paris quando problematiza as idealizações do passado (e, por conseguinte, também das do futuro). Blue Jasmine acompanha duas vidas quebradas ao meio, os sonhos ficaram pra trás, terão de fazer outra coisa. Em You Will Meet a Tall Dark Stranger (título original de Você vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos), o alto e escuro estranho é a morte, fim concreto das aspirações com rei na barriga. Nós estamos metidos nisto até o pescoço e nós não estamos no controle.

Carl e Swann, quando falávamos sobre eles ainda havia essa crença subjacente: é da ordem do sujeito decidir o rumo, algum rumo (e talvez ainda seja, mesmo que em medida menor). Mas e se os rumos vierem veloz e violentamente, descendo pela goela, nos arrastando adiante?

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Em alguns momentos, o jornalismo atinge o nível do arquétipo: nas notícias que não são notícias, que apenas confirmam o mundo. Cumprimos o ano e lá estão as pessoas (as mesmas pessoas?) comprando de última hora presentes de Natal (é o mesmo Natal?), se engarrafando para ir à praia no Ano Novo (o velho ano novo?). Se as redações fechassem e vídeos antigos fossem exibidos, ninguém notaria. É um tempo parado. Nada acontece, só o que já aconteceu. A retrospectiva por fim comprime 52 semanas em 60 minutos. Estamos em dia. 2014 está já esquartejado: logo Carnaval, logo Páscoa, logo Copa. Abre-se dessa forma o espaço para textos otimistas de fim de ano.

Este é um texto otimista de fim de ano. Diz: tudo é possível. Mas tudo, tudo mesmo.



segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

"Detesto super-heróis", diz o quadrinista Alan Moore

O quadrinista Alan Moore, autor de HQs como "V de Vingança" e "Watchmen"

Por Stuart kelly
Do Guardian
Tradução de Clara Allain

Há um grau de arrogância, uma repentina interrupção da ostentação, quando Alan Moore adentra o escritório um tanto quanto estéril da livraria Waterstones onde concordou em falar comigo.

A barba projetada, os dedos cheios de anéis, a bengala que dá a impressão de que pode ser usada a qualquer instante como vara de condão ou cassetete: Moore parece um irmão desregrado de Hagrid ou um primo indecoroso de Gandalf.

Sua gargalhada seria capaz de derrubar edifícios, embora eu duvide que o homem que reinventou a HQ de super-heróis desejaria esse tipo de poder. Ele está aqui para promover "Fashion Beast", projeto que é incomum até mesmo para sua carreira excepcionalmente idiossincrática.

Idealizado inicialmente pelo lendário mestre punk Malcolm McLaren (1946-2010), "Fashion Beast" foi pensado para ser um filme. Hoje, 28 anos depois, é um livro de quadrinhos.

A história acompanha o relacionamento entre um estilista recluso, Celestine, um aprendiz dele, Jonni Tare, e a modelo favorita dos dois, Doll. Como poderíamos esperar do autor de "V de Vingança", "Watchmen", "A Liga Extraordinária" e "Lost Girls", o livro combina humor satírico e denúncia furiosa, radicalismo político e ambiguidade sexual. O que talvez seja o mais estranho de tudo é que Moore mal consegue se lembrar de tê-lo escrito.

Digo a Moore que é um prazer estar falando com ele sobre um filme não realizado que foi convertido em HQ, ao invés de uma HQ transposta para o cinema. Moore já comentou abertamente, no passado, o desdém que sente pela segunda variedade.

Ele solta seu meio-termo característico entre grunhido e gargalhada e responde: "Foi muito mais agradável no meu ponto de vista, sem dúvida. Meu problema principal com filmes é que não gosto do processo de adaptação, e não gosto especialmente do jeito moderno de fazer adaptações de livros de quadrinhos, em que, essencialmente, os personagens centrais são simples franquias que podem ser reaproveitadas interminavelmente sem qualquer objetivo aparente. Na maioria dos casos, as HQs originais eram muito superiores aos filmes. Neste caso, tudo começou como o primeiro roteiro de filme que já fiz, ou minha primeira tentativa de criar um roteiro de filme. Fiquei satisfeito com o resultado, e acho que Malcolm, também, mas, por circunstâncias alheias a ele e a mim, o filme nunca chegou a ser feito. Ele passou a existir de certo modo num interior esdrúxulo de minha memória".

"Provavelmente nunca seria feito", ele prossegue, "mas, quando meu editor disse que tinha conseguido encontrar uma cópia do roteiro e sugeriu convencer o excelente roteirista Anthony Johnson a fazer a adaptação... eu não sabia se funcionaria, mas me pareceu muito prático, porque eu não teria mão de obra nenhuma. Foi isso o que me atraiu no projeto. Mas então, quando o material começou a chegar, era muito incomum. Para começar, a adaptação foi realmente tranquila. E quando comecei a ver o que Facundo Percio tinha feito com a arte, foi uma experiência fantástica, porque eu já tinha esquecido completamente tudo que tinha alguma relação com 'Fashion Beast'. Foi como ler algo escrito por outra pessoa. Fiquei bem impressionado comigo mesmo. Gostei de verdade". Ele sorri, satisfeito.

Para uma história concebida em 1985, "Fashion Beast" se antecipa a obras posteriores de Alan Moore e dá a impressão estranha de ter sido escrita com conhecimento prévio do que ia ocorrer no mundo nos anos seguintes.

"1985? Não diga!" Moore fala com seu vozeirão, reagindo com olhar de espanto. "Foi há tanto tempo assim? Não me lembrava que tinha sido em 1985, mas tinha admitido que provavelmente era do final dos anos 1980 e tinha ficado surpreso, porque já estão presentes muitas das questões políticas que seriam aprofundadas em outros trabalhos -a política sexual, com certeza. Há também alguns precursores ao meu pensamento mágico; estamos falando da moda como uma atividade quase xamânica. Me surpreendeu muito descobrir que eu já estava pensando nessas coisas naquela época."

Malcolm, diz Moore, estava promovendo o filme como "um cruzamento entre 'A Bela e a Fera' e a vida de Christian Dior. Ele tinha alguns outros elementos também, um pouco como 'Chinatown' e um pouco como 'Flashdance', que me seduziu completamente. Acho que ele esperava que eu contribuísse profundidade política e política sexual a essa mistura".

"Foi Malcolm quem sugeriu que os personagens principais fossem um rapaz que parece uma garota que parece um rapaz, e vice-versa. O estranho é que em 1985, na realidade, ninguém enxergava o mundo da moda sob essa ótica. De lá para cá, a moda e o fascismo se aproximaram: temos John Galliano fazendo seus comerciais do Terceiro Reich, temos Alexander McQueen se matando, temos Versace e aquele perseguidor horrível e violento que o matou. Desde que 'Fashion Beast' foi escrito, quase tudo o que descreve já virou realidade, com a exceção do inverno nuclear, mas acho que estamos trabalhando para isso. A sociedade real em que a história aconteceu é muito mais semelhante à sociedade que temos hoje que com a cultura do jeito como era em 1985."

Malcolm já foi descrito como estilista situacionista [referência ao situacionismo, movimento europeu de crítica social, política e cultural].

Perguntei o que Moore pensa do movimento. Trocamos slogans por alguns minutos ("é proibido proibir", "seja racional: exija o impossível", "uma doença mental se espalhou pelo planeta: a banalização"), e Moore soltou o verbo. "Eu sou muitas coisas", ele diz. "Sinto muita empatia com a posição situacionista. O situacionismo é uma das raízes da psicogeografia."

"Gosto de Jacques Derrida, acho ele engraçado. Gosto de filosofia que vem acompanhada de alguns trocadilhos e piadas. Sei que isso ofende outros filósofos; pensam que Derrida não leva as coisas a sério, mas a verdade é que ele inventa alguns trocadilhos fantásticos. Por que não deveríamos nos divertir um pouco enquanto tratamos das questões mais profundas da mente? Os situacionistas... gosto do estilo deles, gosto de sua atitude, gosto do 'abaixo da rua, a praia'; gosto do fato que o situacionismo foi, basicamente, uma visão mais intelectual e mais artística dos princípios anarquistas. Malcolm era situacionista: na última vez em que conversamos, ele estava tentando fazer música com algumas pessoas a partir de chips de Game Boy. Soava como possível porcaria, mas eu gostava do espírito dele aplicado a tudo. Malcolm era fogoso, era subversivo, e acho que falava a sério."

Seria um equívoco subestimar Alan Moore. Sim, ele pode ter escrito "O Monstro do Pântano", mas o fez enquanto lia filosofia europeia. "Fashion Beast" é sobre influências edipianas -quem pode habitar e subverter a voz do mestre?

Vários escritores reconhecem Moore como influência chave: Neil Gaiman me disse que Moore tornou possível uma geração inteira. "Fashion Beast" é sobre aprendizes e mestres, pupilos e professores. O que Moore pensa sobre isso?

"Não costumo ler muito. Se as pessoas tiram certas inspirações ou talvez se interessam por uma de minhas ideias, não tenho problema com isso, mas é importante que façam disso a voz delas, e não minha voz ou um eco de minha voz. Se ser influenciado por minha obra faz parte de um processo que as conduz a desenvolver suas próprias vozes, fico feliz. Grant Morrison [quadrinista escocês] já admitiu não apenas basear algumas de suas narrativas em meu estilo ou meu trabalho, mas também ganhar fama por me criticar sempre que aparece uma oportunidade para isso. Eu o ignoro."

Quando menciono que Geoff Johns escreveu uma série inteira de "Lanterna Verde" baseada em seu conto "Tygers", Moore se irrita.

"Veja bem", diz ele, "não li nenhuma HQ de super-heróis desde que terminei 'Watchmen'. Detesto super-heróis. Acho que são abominações. Eles não significam o que significavam no passado. Originalmente, estavam nas mãos de escritores que expandiam ativamente a imaginação de seu público, na faixa dos 9 aos 13 anos. Era o que eles deviam fazer, e o faziam muitíssimo bem. Hoje em dia, as HQs de super-heróis acham que seu público não tem entre 9 e 13 anos -as histórias não têm nada a ver com essa idade. É um público composto principalmente de pessoas de 30, 40, 50 e 60 anos, geralmente homens. Alguém criou o termo 'graphic novel'. Esses leitores aderiram ao termo; simplesmente queriam algo que validasse seu apego contínuo a 'Lanterna Verde' ou 'Homem Aranha', sem que eles parecessem de alguma maneira ser emocionalmente subnormais. Essa é uma parte importante do público viciado em super-heróis, viciado no mainstream. Não acho que o super-herói represente algo bom. Acho um sinal meio alarmante o fato de termos plateias de adultos que vão ver os filmes 'Os Vingadores' e se deleitam com conceitos e personagens criados para agradar a garotos de 12 anos na década de 1950."

Tendo visto HQs convertidos em filmes e roteiros de filmes convertidos em HQs, Moore está mais preocupado com sua obra de ficção "Jerusalém".

"Estou trabalhando sobre o último capítulo oficial, que estou fazendo um pouco ao estilo de Dos Passos. Deve estar concluído até o final do ano ou perto disso. Não sei se mais alguém vai gostar."

Digo que chama a minha atenção o fato de o estilo dele, e o de gente como Iain Sinclair e Michael Moorcock, ter virado central na cultura literária. Moore solta um suspiro, fazendo as paredes tremer: "Será que sim? Oh, não, nós viramos o mainstream!".