quinta-feira, 26 de junho de 2014

As escritoras mulheres também não estão imunes ao álcool

"O alcoolismo é escandaloso numa mulher", escreveu Marguerite Duras

Por Olivia Laing
Do Guardian
Tradução de Clara Allain

Se você escreve um livro sobre o álcool e os escritores homens, como eu fiz, a pergunta mais frequente que ouvirá é: "E as mulheres? Existem escritoras alcóolatras? As histórias delas são as mesmas ou são diferentes?" A resposta à primeira pergunta é fácil. Sim, é claro que existem, entre elas figuras brilhantes e inquietas como Jean Rhys, Jean Stafford, Marguerite Duras, Patricia Highsmith, Elizabeth Bishop, Jane Bowles, Anne Sexton, Carson McCullers, Dorothy Parker e Shirley Jackson.

O alcoolismo é mais prevalente entre os homens que entre as mulheres (em 2013 o NHS, o serviço nacional de saúde britânico, calculou que 9% dos homens e 4% das mulheres eram dependentes do álcool). Mesmo assim, não faltam mulheres que bebem muito; não faltam tardes em que elas caem prostradas, nem bebedeiras que se prolongam por dias. As escritoras mulheres não têm sido imunes à atração do álcool, nem ao envolvimento nos problemas de vários tipos que perseguiram seus colegas homens –as brigas e prisões, as escapadas humilhantes, o lento envenenar das amizades e relações familiares. Jean Rhys passou algum tempo detida na prisão de Holloway por agressão física; Elizabeth Bishop em mais de uma ocasião bebeu água de colônia, depois de esgotar as possibilidades do bar doméstico. Mas as razões pelas quais elas bebem são diferentes? E o que dizer das reações da sociedade, especialmente no século 20, regado a álcool –a era de ouro, se podemos chamá-lo assim, do álcool e do escritor?

Em seu livro de 1987 "La Vie Matérielle" (A vida material), a escritora e cineasta Marguerite Duras diz muitas coisas chocantes sobre o que significa ser mulher e escritora. Uma de suas afirmações mais surpreendentes é sobre a diferença entre o alcoolismo de homens e mulheres, ou melhor, sobre a diferença de percepções a seu respeito. "Quando uma mulher bebe", ela escreve, "é como se um animal ou uma criança estivesse bebendo. O alcoolismo é escandaloso numa mulher, e uma alcoólatra mulher é algo raro, um problema sério. É uma mancha feita no divino em nossa natureza." Pesarosa, ela acrescenta um adendo pessoal: "Tive consciência do escândalo que eu estava criando à minha volta".

Duras refletiu que foi alcoólatra desde quando tomou seu primeiro drinque. Às vezes conseguia parar por anos a fio, mas em suas fases de bebedeira ela se excedia completamente: começava a beber assim que acordava, parava para vomitar os dois primeiros copos e então acabava com até oito litros de Bordeaux antes de desmaiar. "Eu bebia porque era alcoólatra", Duras disse ao "New York Times" em 1991. "Eu era alcoólatra de verdade, como a escritora. Eu sou uma escritora de verdade, era uma alcoólatra de verdade. Bebia vinho tinto para adormecer. Depois, conhaque durante a noite. A cada hora um copo de vinho, e pela manhã, conhaque depois do café, e depois disso eu escrevia. O que é assombroso, quando olho para trás, é como consegui escrever."

O que também é assombroso é quanto ela conseguiu escrever e como é alta a qualidade da maioria de seus escritos, elevando-se sem dificuldade sobre as condições às vezes árduas da produção. Duras escreveu dúzias de romances, entre eles "Barragem contra o Pacífico", "Moderato Cantabile" e "O deslumbramento". Seu trabalho é elegante, experimental, apaixonado, evocativo e visualmente notável –quase alucinatório no apelo que lança aos sentidos, em sua força rítmica. Precursora do "nouveau roman", ela dispensou as convenções de personagens e trama, a mobília pesada do romance realista, ao mesmo tempo em que conservou uma austeridade quase clássica –uma clareza de estilo que era fruto de um trabalho obsessivo de revisão de seus textos.

Sua infância foi marcada pelo medo, a violência e a vergonha –um encadeamento comum na infância de um viciado. Nasceu como Marguerite Donnadieu (Marguerite Duras foi seu nome literário) em 1914, na então Saigon, filha de pais franceses, ambos professores. Seu pai morreu quando Marguerite tinha 7 anos, deixando a família na pobreza abjeta. Sua mãe economizou durante anos para adquirir um sítio, mas foi ludibriada no preço, comprando um terreno regularmente inundado pelo mar. A mãe e o irmão mais velho de Marguerite a espancavam. Ela lembrou que caçava aves na selva para cozinhar e comer e nadava em um rio que ficava cheio dos cadáveres de criaturas diversas que tinham morrido rio acima. Na escola, teve um relacionamento sexual –aparentemente incentivado por sua família por razões financeiras– com um chinês muito mais velho. Mais tarde, na França, se casou, teve um filho com outro homem, dirigiu filmes, viveu e escreveu com intensidade direcionada. Seu alcoolismo piorou com o passar das décadas, parando e recomeçando, ganhando força, até que, aos 68 anos, ela recebeu o diagnóstico de cirrose hepática e foi forçada a abrir mão completamente do álcool –uma experiência apavorante– no hospital americano de Paris.

Poucos escritores conseguem abandonar a bebida, e aqueles que o fazem com frequência sofrem um declínio em sua produção –algo que atesta não tanto o poder do álcool como estimulante da criatividade, mas como ele contribui para destruir a função cerebral, obliterar a memória e perturbar a capacidade de ex-alcoólicos de formular e expressar pensamentos. Mas Duras escreveu um de seus melhores romances, e com certeza o mais famoso, dois anos depois de ter parado de beber. "O Amante" conta a história de uma francesa de 15 anos na Indochina que tem um relacionamento erótico com –isso mesmo– um chinês muito mais velho. Boa parte do livro foi inspirado na violência e degradação das quais Duras emergiu.

Como deixam claro versões publicadas posteriormente, ela era capaz de retornar inúmeras vezes a essa cena primordial de infância, retraçando-a em uma variedade quase infinita de cores: às vezes erótica e romântica, às vezes brutal e grotesca. Narrar novamente as mesmas histórias, retornar repetidamente à substância que ela sabia que a estava destruindo: esses atos repetitivos, alguns deles geradores e outros profundamente destrutivos, levaram o crítico Edmund White a se perguntar se Duras não seria dominada por algo que Freud descreveu como a compulsão da repetição. "Conheço isso, o desejo de ser morta. Sei que ele existe", Duras disse certa vez a um entrevistador, e é essa intensidade, essa visão absoluta e intransigente, que diferencia seu trabalho. Ao mesmo tempo, a afirmação parece lançar nova luz sobre como ela usou o álcool: como modo de ceder ao seu próprio masoquismo, à sua ideação suicida, ao mesmo tempo em que se anestesiava contra a selvageria que enxergava em ação em toda parte, preenchendo o mundo.

A infância de pesadelo da escritora suscita a questão das origens, do que causa a dependência alcoólatra e se a causa difere para homens e mulheres. Em cerca de 50% dos casos o alcoolismo pode ser herdado, uma questão de predisposição genética –o que significa que fatores ambientais como as experiências do início da vida e as pressões sociais exercem um papel considerável. Examinando as biografias de escritoras alcoólatras, encontramos repetidas vezes as mesmas histórias familiares sombrias que estão presentes na vida de seus colegas homens, de Ernest Hemingway a F. Scott Fitzgerald, de Tennessee Williams a John Cheever.

Elizabeth Bishop é um bom exemplo. Muitos de seus familiares foram alcoólatras, incluindo seu pai, que morreu quando ela era bebê. A vida de Bishop foi marcada adicionalmente pelo tipo de perda e insegurança física presente com frequência na história familiar de dependentes de álcool ou drogas. Quando ela tinha 5 anos, sua mãe foi internada em um hospital psiquiátrico. Elas nunca mais se viram. Em vez disso, Bishop foi encaminhada aos cuidados de diferentes tias; foi uma criança ansiosa e, quando se tornou estudante no liberal e exclusivamente feminino Smith College, de Massachusetts, descobriu com alívio a utilidade do álcool como facilitador social, só percebendo tarde demais que era também uma potencial fonte de vergonha, um motivo de isolamento.

No poema "A Drunkard", Bishop emprega incidentes de sua própria vida para criar um retrato irônico de uma alcoólica, ansiosa para explicar sua sede incomum. "Eu tinha começado/ a beber & beber –nunca é o suficiente", admite a narradora, um verso que lembra a declaração franca de John Berryman em "Dream Song: "A fome era parte integral dele/ vinho, cigarros, bebida, carência carência carência".

O sentimento de vergonha foi um dos fatores principais que levavam Bishop a beber: primeiro, a vergonha internalizada que ela trazia desde a infância; mais tarde, a vergonha que se seguia às suas bebedeiras pavorosas. E havia também a questão da identidade sexual. Lésbica numa época em que a homossexualidade não era sancionada ou aceita, Bishop encontrou sua liberdade maior no Brasil, onde viveu com sua companheira, a arquiteta Lota de Macedo Soares. Passou seus anos mais pacíficos e produtivos no Brasil, embora tenham sido entremeados com bebedeiras, seguidas pelas inevitáveis brigas e confusões e pela assustadora deterioração de sua saúde física.

A vergonha é um fator também na vida de Patricia Highsmith, nascida Mary Patricia Plangman em 1921; seu sobrenome era uma lembrança indesejada do homem de quem sua mãe se divorciara nove dias antes de ela nascer. A própria Patricia não foi exatamente desejada. Sua mãe tinha tomado aguarrás quando ela tinha quatro meses, na esperança de abortar. "É estranho que você adore o cheiro de aguarrás, Pat", dizia mais tarde. Essa piada soturna lembra Cheever, cujos pais também costumavam fazer piadas sobre o fato de terem tentado abortá-lo. Como Cheever, Highsmith tinha sentimentos complexos em relação à sua mãe, e, como Cheever, tinha um sentimento penetrante de ser fraudulenta, vazia, de algum modo fajuta. Diferentemente de Cheever, porém, ela foi corajosa ao seguir o rumo de seus desejos sexuais, embora tivesse um senso às vezes prazeroso, às vezes perturbador de desviar-se da norma, de andar na contramão da sociedade.

Ela foi uma criança ansiosa, chorosa, cheia de sentimentos de culpa –lúgubre, em suas próprias palavras. Aos 8 anos de idade, fantasiava assassinar seu padrasto, Stanley, e aos 12 se perturbava com as altercações violentas entre ele e sua mãe. Naquele outono, a mãe de Patricia a levou ao Texas, dizendo que ia se divorciar e viver no sul dos EUA com Pat e a avó desta. Mas, depois de algumas semanas dessa utopia exclusivamente feminina, Highsmith, mãe, voltou a Nova York, abandonando a filha sem explicações. Largada por um ano inteiro e sofrido, Patricia nunca superou o sentimento de ter sido traída e rejeitada.

Ela começou a beber quando era estudante no Barnard College, em Nova York. Numa anotação feita em seu diário na década de 1940, escreveu sobre sua ideia de que o álcool seria essencial para o artista, porque a fazia "enxergar outra vez a verdade, a simplicidade e as emoções primitivas". Dez anos depois, descrevia dias em que ia para cama às quatro da tarde com uma garrafa de gim, antes de engolir sete martinis e dois copos de vinho. Nos anos 1960, Highsmith já precisava do álcool para continuar a funcionar e para conseguir sair da cama pela manhã. Ela mentia sobre seu consumo de álcool e também sobre toda espécie de detalhes maiores e menores –sobre ser ótima cozinheira e jardineira, embora seu jardim na época se resumisse a grama ressecada e ela frequentemente vivesse de cereal matinal e ovos fritos.

Muito do que ela sentia e de como se comportava entrou para suas obras, sendo transmitido para seu personagem mais famoso. Tom Ripley nem sempre bebe muito, mas compartilha com o alcoólatra completo a paranoia, o sentimento de culpa e o ódio por si mesmo, a necessidade de apagar seu próprio eu dolorosamente vazio e tênue ou escapar dele. Ripley vive se dividindo e mergulhando em outras identidades mais cômodas, embora esse próprio fato seja por si só vergonhoso e em muitos casos sirva como gatilho dos assassinatos casuais e medonhos que ele comete. Na realidade, toda a carreira de Ripley como assassino imita o alcoolismo, na medida em que é movida por uma necessidade de repetir uma atividade constantemente para apagar o problema que a atividade provocou. E há a atmosfera dos livros, o clima pesado de ansiedade e consciência de que as coisas não vão acabar bem, algo que é reconhecível instantaneamente de um sem-número de obras de alcoólatras. Considere este trecho de "O Talentoso Ripley", em que Tom está em Roma, tentando convencer-se de que não será pego pelo assassinato de Dickie:

"Tom não sabia o que o atacaria, se fosse atacado. Não imaginava a polícia, necessariamente. Tinha medo de coisas sem nome, informes, que assombravam sua mente como as Fúrias. Conseguia caminhar confortavelmente por San Spiridione apenas depois de alguns coquetéis terem nocauteado seu medo. Então ele caminhava com andar confiante, assobiando."

Bastaria trocar o nome para que o trecho pudesse ter saído diretamente de "The Lost Weekend", de Charles Jackson [que inspirou o filme "Farrapo Humano", ou de quase qualquer página dos diários de Tennessee Williams, obcecados pelo álcool.

Não há dúvida de que a infelicidade pessoal é parte da razão por que homens e mulheres criam o hábito de beber, mas essas histórias íntimas deixam de fora algo maior, menos fácil de ser contestado ou enfrentado por qualquer indivíduo. Como era a vida da mulher no Ocidente na maior parte do século 20 é resumido com aptidão e raiva por Elizabeth Young em sua introdução a "Plain Pleasures", coletânea de contos de Jane Bowles. "Até os anos 1970 as mulheres eram descontadas e desprezadas", ela escreve. "Eram, em massa, classificadas como crianças em termos de capacidade, mas, diferentemente das crianças, eram o alvo de virtualmente todas as piadas no repertório dos humoristas. Eram vistas como superficiais, fofoqueiras, vaidosas, pouco inteligentes e inúteis. As mulheres mais velhas eram barangas, megeras, sogras, solteironas. As mulheres eram visíveis no mundo real, o mundo dos homens, apenas enquanto eram sexualmente desejáveis. Depois disso, desapareciam por completo, enterradas vivas pela combinação repugnante de desprezo, aversão e sentimentalismo com que eram vistas."

A título de ilustração, ela conta uma história sobre a escritora que Truman Capote, William Burroughs e Gore Vidal consideravam uma das maiores de sua época –uma gigante do modernismo, não obstante sua produção minúscula. Na meia-idade, depois de sofrer um derrame induzido pelo álcool, Jane Bowles foi encaminhada a um neurologista britânico que lhe disse em tom paternalista: "A senhora não está dando conta, minha cara sra. Bowles. Volte para seu fogão e suas panelas e procure dar conta de sua vida".

Esse pouco-caso intenso com as mulheres, essa incapacidade de compreender os talentos ou a vida interior delas, era típico. Cenários semelhantes podem ser encontrados na vida de quase qualquer escritora notável do século 20. Tome-se o caso de Jean Stafford, que hoje tem mais chances de ser lembrada por ter sido casada com Robert Lowell que por seus contos, que lhe valeram um Prêmio Pulitzer, ou por seu romance extraordinário e selvagem "The Mountain Lion". Esta obra foi publicada em 1947, quando ela se reabilitava do álcool no hospital psiquiátrico Payne Whitney, no interior de Nova York. Ali, seu psiquiatra estava menos interessado nas críticas de seu trabalho que em insistir que ela melhorasse sua aparência pessoal, trocando seus habituais suéter e calças folgadas por blusa, saia e colar de pérolas no jantar, "como uma estudante do Smith College", como Stafford comentou ironicamente.

Não consigo pensar em nenhuma escritora que exprima essas pressões e hipocrisias melhor que a romancista Jean Rhys, que não pode ser descrita como feminista mas, mesmo assim, escreveu tão amargamente e em tom tão sombrio sobre a situação das mulheres que seu trabalho é perturbador, até hoje. Rhys nasceu na ilha de Dominica em 1890 com o nome de Gwen Williams, filha de pai britânico e mãe crioula. Como F. Scott Fitzgerald, foi uma filha de substituição, concebida nove meses após a morte de sua irmã. Como Fitzgerald, tinha uma sensação constante de estar do lado de fora, de não ser inteiramente real ou legitimamente digna de amor. Chegou a Londres aos 16 anos, uma menina bonita e completamente ignorante. Suas expectativas de uma vida nova e glamourosa foram frustradas pelo ar cinzento, o frio inclemente e as pessoas competentes, casualmente cruéis. Seu pai morreu enquanto ela cursava a escola de teatro, mas em vez de voltar para casa ela fugiu da escola, tornando-se bailarina do coro de espetáculos musicais e mudando seu nome para Ella Gray.

Ella Gray, Ella Lenglet, Jean Rhys, sra. Hamer: fosse qual fosse o nome que estivesse usando, Rhys estava sempre a ponto de se afogar, sempre desesperada para encontrar um homem que a salvasse e a levasse para o tipo de mundo de segurança e luxo pelo qual ansiava. Não acostumada a receber amor, ela escolheu mal, ou talvez simplesmente tenha tido má sorte, apostando em homens que a deixaram ou que de algum modo foram incapazes de lhe dar a espécie de segurança financeira e emocional pela qual ansiava. Ela teve um aborto, se casou, teve uma filha, teve um bebê que morreu e uma filha, Maryvonne (que passou a maior parte da infância sendo cuidada não apenas por outra pessoa, mas em outro país), casou-se uma segunda e uma terceira vez, e, ao longo de todas essas aventuras malfadadas, sempre esteve à beira da miséria.

O álcool não demorou a tornar-se uma maneira de ela enfrentar os problemas e a confusão, de apagar os elementos mais sombrios, preenchendo temporariamente um insuportável buraco negro de carência. Como diz sua biógrafa Carole Angier: "Seu passado a atormentava tanto que ela teve que escrever sobre ele, e então o escrever a atormentou: ela precisava beber para escrever e precisava beber para viver".

Mas o que emergiu da confusão toda foi uma série de romances milagrosamente lúcidos: estranhas e escorregadias maravilhas do modernismo, sobre mulheres alienadas, desenraizadas, à deriva no "demi-monde" de Londres e Paris. Esses livros –"Quartet", "After Leaving Mr. Mackenzie", "Voyage in the Dark" e "Bom Dia, Meia Noite"– mostram o mundo como se apresenta desde a perspectiva dos despossuídos. Eles tratam de depressão e solidão, sim, mas também de dinheiro: dinheiro, classe social, esnobismo, e o que significa não ter dinheiro para comer, ou quando seus sapatos estão ficando gastos e você não consegue mais manter as pequenas aparências burguesas; as maneiras de se virar, de ser aceita na sociedade. Rhys é brutal no retrato que faz de uma sociedade em que não existe rede de segurança para uma mulher sozinha e que está envelhecendo, vendo esgotar-se a única moeda confiável que possui.

No magnificamente instável "Bom Dia, Meia Noite", ela mostra precisamente por que uma mulher como essa pode voltar-se ao álcool, diante das opções limitadas de trabalho ou amor. Ao mesmo tempo, e como seu quase contemporâneo Fitzgerald, Rhys emprega a embriaguez como técnica do modernismo. O livro é escrito numa primeira pessoa maravilhosamente flexível, deslizando e escorregando entre os mutantes estados de ânimo de Sasha. "Já estou farta destas ruas que transpiram um lodo frio e amarelo, de pessoas hostis, de chorar até pegar no sono todas as noites. Estou farta de pensar, chega de recordações. Quero uísque, rum, gim, xerez, vermute, vinho com garrafas rotuladas 'dum vivimus, vivamus ' Beber, beber, beber... Assim que fico sóbria, recomeço. Às vezes tenho que me forçar para engolir. Não sei por que não fico com 'delirium tremens' ou algo assim."

Rhys desapareceu das vistas públicas novamente durante a guerra, reemergindo em 1956, depois que a BBC transmitiu um anúncio buscando informações sobre a escritora, que se acreditava que tivesse morrido. Passou a década de 1960 isolada num vilarejo em Devon, vivendo com seu terceiro marido, o nevrálgico Max Hamer, que tinha cumprido pena de prisão por fraude e se tornara inválido após um derrame. Nesse período tenebroso, Rhys foi atormentada por extremos de pobreza e também por seus vizinhos, que a julgavam bruxa. Chegou a ser internada brevemente num hospital psiquiátrico, depois de atacar um deles com uma tesoura. As bebedeiras continuaram, piores que antes. Mesmo assim, ela estava trabalhando sobre um novo romance, "Vasto Mar de Sargaços", uma "prequela" (que relata a história anterior a) de "Jane Eyre", inspirada em sua infância no Caribe, seu sentimento de ser uma "outsider", isolada pelos frios e impenetráveis ingleses.

Diana Athill escreve em "Stet": "Ninguém que tivesse lido os quatro primeiros romances de Jean Rhys poderia imaginar que ela fosse muito boa em viver a vida, mas ninguém que a conhecesse pessoalmente poderia saber até que ponto ela era ruim nisso". Athill tornou-se editora de Rhys nessa época, virando sua amiga, como também fizeram Sonia Orwell e Francis Wyndham, protetoras e guardiãs de seu renascimento, o sucesso que chegou tarde demais e após sofrimento demais para fazer uma diferença real para o devastado mundo interior de Rhys.

Em seus escritos sobre Rhys, Athill debate internamente aquela que pode ser a questão central do escritor alcoólico, ou seja, como é que alguém que é tão incompetente quando se trata de viver, tão incapaz de encarar os problemas e assumir a responsabilidade por seus próprios erros, pode ser tão bom em escrever sobre isso, em focar a atenção diretamente sobre algo que, de outro modo, seriam pontos de total cegueira. "Seu credo –tão simples de declarar, tão difícil de seguir– era que ela devia dizer a verdade; devia colocar as coisas no papel como realmente eram. Esse empreendimento ferrenho lhe possibilitou chegar pela escrita à compreensão de sua própria natureza ferida."

Esse caráter férreo está presente em toda parte na obra de Rhys, convertendo a autopiedade em crítica impiedosa. Ela mostra como funciona o poder e como as pessoas podem ser cruéis com aquelas que estão abaixo delas, revelando, também, como a pobreza e as regras sociais amarram as mulheres, limitando suas opções, até que uma cela no presídio de Holloway e um quarto de hotel em Paris tornam-se praticamente indistinguíveis. Não é de maneira alguma um feminismo de tipo triunfal, uma afirmação de independência e igualdade, mas um relato selvagem e obsessivo de manipulação, censura e injustiça que podem levar mesmo a mulher mais lúcida a beber, beber e beber.

Olivia Laing é autora de "The Trip to Echo Spring: On Writers and Drinking" (Picador).

quarta-feira, 25 de junho de 2014

A Ciência Gordurosa


Gargantua, por Gustave Doré


Por João Pereira Coutinho
Da Folha

Vou ao supermercado e fico pasmo com os produtos nas prateleiras. Não falo da quantidade de iogurtes, bolachas, pastas dentifrícias ou papel higiênico que me transformam no famoso burro de Buridan -o asno do paradoxo filosófico que morre de fome por não saber qual dos pedaços de feno escolher. De fato, tanta variedade paralisa qualquer um.

Falo de outro fenômeno igualmente agônico: a quantidade de produtos alimentares que parecem diretamente saídos de um consultório médico.

Um iogurte não é um iogurte, com um determinado sabor e uma determinada textura. É quase um remédio de farmácia que promete diminuir o colesterol e controlar 50 outros indicadores orgânicos igualmente importantes para a saúde do sujeito.

E quem fala em iogurtes, fala em sucos (com seu cortejo de vitaminas), batatas fritas (com reduções heroicas na quantidade de sal) e até chocolates (alguns deles prometem melhorar o fluxo arterial). Como se chegou a isto?

Verdade: com a morte de Deus e o fim de uma vida transcendente, cuidar do corpo transformou-se na única religião dos homens modernos. De tal forma que nem a gastronomia está a salvo: antes do prazer ou da mera fome, está primeiro a saúde. Hoje, não se come mais para viver. Come-se para viver até aos cem -uma importante revolução civilizacional.

Honestamente, nem sei por que motivo não se abrem restaurantes em hospitais, com refeições cozinhadas por médicos e servidas por enfermeiros. No final, o cliente faria análises ao sangue e só pagaria a conta se tivesse o número certo de triglicerídeos.

O problema é que nem no hospital o cliente estaria a salvo. Desde logo porque é cada vez mais difícil saber o que comer: existem estudos, publicados a um ritmo demencial, que dizem uma coisa e o seu contrário. Às vezes, na mesma semana -ou até no mesmo dia.

A carne vermelha é má, defendem uns. A carne vermelha é ótima, garantem outros. Sobre os laticínios, há opiniões para todos os gostos: são puro veneno; são simplesmente insubstituíveis. E até as gorduras, que deveriam ser um inimigo consensual, parece que não são tão inimigas assim.

A revista Time, aliás, dedicou matéria especial ao fenômeno: durante décadas, o país declarou guerra às gorduras. Que o mesmo é dizer: incluiu no Index da dieta nacional a carne vermelha, os ovos, os laticínios, a manteiga. A mensagem era simples: conservar um coração saudável implicava dizer adeus a todo esse lixo. Conclusão?

Os americanos foram dizendo adeus ao lixo, optando por aves, leite magro ou cereais. Infelizmente, a mudança na dieta não os tornou mais saudáveis. Pelo contrário: o país está mais doente do que nunca.

A diabete de tipo 2 aumentou 166% entre 1980 e 2012. Os problemas do coração continuam no topo da lista -e das mortes. E, sobre a obesidade, estamos conversados: falar dos Estados Unidos é imaginar uma nação disforme de glutões disformes. Explicações?

Não, a gordura não é o papão que se imaginava, explica a revista. Não entro em termos técnicos, até porque eles são demasiado gordurosos para mim. Mas parece que a gordura do peixe e dos vegetais é boa para o coração. E até a gordura suspeita de um bom filé (cozinhado com manteiga, claro) tem vantagens respeitáveis na limpeza do mau colesterol.

Os verdadeiros inimigos, hoje, são os carboidratos presentes nos açúcares, nos doces, nos farináceos. Isso, claro, enquanto não surgir um novo estudo a defender precisamente o contrário -ou, pelo menos, a colocar as coisas na suas devidas proporções.

E eu? Que fazer perante essa selva de alarmes contraditórios?

Nada. Rigorosamente nada. Perdido no supermercado, vou retirando das prateleiras os alimentos que a ciência aprova e desaprova nos dias pares e ímpares, respectivamente.

E confesso que as gorduras continuam a ter espaço generoso na minha dieta animalesca. Não que eu me orgulhe disso, cuidado. Mas enquanto não existirem estudos definitivos sobre o assunto, prefiro seguir as recomendações da minha ilustre dra. Gula.


segunda-feira, 9 de junho de 2014

Dolores nunca sai de moda



Por Danilo Casaletti
Fotos Diler e Divulgação
Da Revista da Cultura

35 canções compostas e pelo menos dez clássicos eternizados na história da música popular brasileira. A noite do meu bem, Solidão, Se é por falta de adeus, Castigo, Ternura antiga, Por causa de você, Estrada do sol... Assim pode ser resumida a breve carreira da cantora e compositora Dolores Duran, que morreu em 1959, com apenas 29 anos de idade.

Nascida no centro do Rio de Janeiro e criada no subúrbio da cidade, Dolores – que na verdade se chamava Adiléia Silva da Rocha – começou a cantar e atuar no teatro ainda menina. Enfrentou o exigente Ary Barroso e foi aprovada em seu programa de calouros na Rádio Tupi. Autodidata, cantava perfeitamente em alemão, espanhol, esperanto, francês, inglês e italiano, o que lhe garantiu passe livre para os palcos das melhores boates do Rio de Janeiro da década de 1950.

Mulher à frente de seu tempo, não só pela maneira como se manifestava em suas letras, mas também no comportamento, Dolores ignorava os problemas no coração adquiridos depois de uma febre reumática, aos 8 anos de idade. Fumava três maços de cigarro por dia e adorava virar a noite bebendo e batendo papo com os amigos. Depois de uma noitada dessas, chegou em casa às sete da manhã de 24 de outubro de 1959. Brincou um pouco com a filha adotiva Maria Fernanda e, antes de se deitar, recomendou para a empregada: “Não me acorde, estou cansada. Quero dormir até morrer”. Foi o que aconteceu. Dolores morreu dormindo, vítima de um infarto fulminante.

Ao longo dos anos, suas canções foram revisitadas por diversos nomes da música brasileira. Por causa de você, um de seus maiores sucessos, parceria com Tom Jobim, foi vertida para o inglês e gravada por Frank Sinatra com o título de Don’t Ever Go Away. A obra de uma das primeiras letristas da música brasileira, que antecipou a bossa nova, jamais caiu no esquecimento, ao contrário de alguns de seus contemporâneos. Em todas as décadas após a sua morte, pelo menos um tributo lhe foi prestado. É a compositora mulher mais gravada no Brasil, superando Rita Lee.

Nina Becker – ex-Orquestra Imperial – é a mais nova a se aventurar pelo repertório da compositora. No recém-lançado Minha Dolores, a cantora enfileira 14 canções compostas ou gravadas por Dolores ao longo de sua pequena carreira. O trabalho destoa dos tributos prestados por outros artistas e deixa de fora os grandes sucessos, valorizando o lado menos conhecido de Dolores. “Não queria fazer um songbook. Cantei as canções que mais gostava de ouvir na voz dela”, diz a cantora, que assina a direção musical do projeto. Entre as preferidas de Nina estão Tradição, Estatuto de boate e Carioca 1954. Da safra mais famosa, entraram apenas Solidão e Estrada do sol, que será distribuída como faixa bônus no iTunes.

Nina optou pelo acompanhamento de apenas dois músicos: Lucas Porto (violão 7 cordas) e Luís Barcelos (bandolim). “Queria trazer para o disco o clima do samba e do choro. Eles preencheram as melodias. Parece que estou cantando com uma orquestra”, diz.

A relação de Nina com Dolores é antiga. Vem desde a sua infância, quando, por influência do padrasto, o maestro Roberto Gnatalli, começou a ouvir as cantoras da era pré-bossa nova, como Aracy de Almeida, Dalva de Oliveira e Elizeth Cardoso. “Muita gente acha o samba-canção cafona. Eu adoro”, diz Nina, de 39 anos, que há tempos canta uma ou outra canção de Dolores em seus shows, e que faz questão de amenizar o peso que dão à obra da compositora. “Mesmo na tristeza, Dolores tinha senso de humor. ‘Ai, a solidão vai acabar comigo’. Tem algo de não se levar muito a sério, não é?”, diz.

Fossa não, poesia!

O jornalista e pesquisador Rodrigo Faour também enxerga Dolores muito além das letras de suas canções e das esfumaçadas boates de Copacabana dos anos 1950. Autor da biografia Dolores Duran – A noite e as canções de uma mulher fascinante, Faour, ao entrevistar dezenas de amigos e companheiros de trabalho da cantora e compositora, tomou contato com a personalidade da artista. “Era alegre, de bem com a vida, contava piadas. Não era uma coitadinha”, diz, reforçando o desejo de uma amiga muito próxima de Dolores, a também cantora Marisa Gata Mansa (1938-2003), que certa vez declarou: “Temos que parar de defini-la como ‘a imperatriz da tristeza’. Ela era uma poeta sensível”.

A atriz Soraya Ravenle protagonizou, em 1999, o musical Dolores, que ficou um ano e três meses em cartaz no Rio de Janeiro e em São Paulo, e concorda que a imagem que fazem da compositora é errada. Para compor a personagem, ela mesma foi entrevistar amigos e parceiros de Dolores, como a cantora e atriz Julie Joy (1930-2011) e o compositor Billy Blanco (1924-2011). “Descobri que ela era uma pessoa leve, imitava tipos para os amigos”, diz. “Dolores tinha consciência de seus problemas, mas não fazia deles um fardo para a vida”, completa Soraya.

Se a música de Dolores falava de amores rompidos, abandono e solidão, é porque a época pedia, mas isso não definia exatamente o seu estado de espírito. “O Tito Madi compôs o clássico Chove lá fora com um sol de meio-dia na rua”, conta Faour, fazendo uma comparação com um compositor contemporâneo de Dolores, cujo maior sucesso de carreira traz os versos “A noite está tão fria/Chove lá fora/E essa saudade enjoada/Não vai embora/Queria compreender por que partiste/Queria que soubesses como estou triste”.

Era isso que os boêmios procuravam nas noites cariocas, entre uma tragada e outra de cigarro e, claro, uma boa dose de whisky. E, embora à época ainda houvesse preconceito com esse tipo de ambiente, eram os mesmos sambas-canção ouvidos nas boates que eram admirados nos ditos lares de família, em um tempo no qual os casais gostavam de dançar juntinhos, mesmo que fosse na sala de casa.

Dolores soube muito bem explorar esse universo. Na sua pequena discografia – foram apenas quatro discos oficiais de carreira, além de alguns compactos – há os LPs Dolores canta para você dançar (volumes 1 e 2), lançados em 1957 e 1958, respectivamente, nos quais interpreta músicas de compositores brasileiros como Noel Rosa, Billy Blanco e David Nasser, além de sucessos internacionais, entre eles o italiano Volare (Nel blu dipinto di blu) e o americano An Affair To Remember, tema do filme Tarde demais para esquecer (1957). Foi no primeiro volume de Dolores canta para você dançar que ela gravou pela primeira vez uma composição sua, Por causa de você, feita em parceria com Tom Jobim.

A obra completa de Dolores foi lançada por Faour na caixa Os anos dourados de Dolores Duran, produzida em 2010. O produto, segundo o biógrafo da artista, surpreendeu pela procura, sobretudo por ter sido lançado em uma época na qual as venda de CDs já cumpriam uma trajetória de queda e por não se tratar de grande mídia. Nos três primeiros meses após o lançamento, 1.500 unidades foram vendidas. “Até a gravadora ficou surpresa. Tudo o que faço sobre Dolores tem boa procura. Ela é muito querida”, diz.

Faour prepara mais um lançamento sobre a artista: CD e DVD gravados ao vivo com convidados interpretando a obra da compositora, entre eles o músico João Donato, que foi noivo de Dolores, e Ângela Maria, para quem a amiga chegou a prometer a canção A noite de meu bem. A previsão é de que esteja no mercado no segundo semestre deste ano.

Homenagem para superar o trauma

O primeiro grande tributo à obra de Dolores foi lançado em 1960, um ano após a sua morte. Denise Duran, sua irmã mais nova e cantora bissexta, juntou-se a Marisa Gata Mansa em Canções e saudades de Dolores. O disco trazia faixas como Tome continha de você, Noite de paz e Não me culpe. Uma raridade da música brasileira, jamais reeditada em CD ou digitalmente.

O disco, durante muitos anos, ficou ‘proibido’ de tocar na casa de Denise. Assim como qualquer outro de Dolores. Era difícil para ela conviver com a falta da irmã. Vez ou outra, o marido de Denise, o músico Dave Gordon, insistia para ouvir alguma faixa.

A superação veio em 2005, quando a filha de Denise, a cantora Izzy Gordon, recebeu um convite para gravar seu primeiro CD. A proposta era fazer um tributo a Dolores. Foi preciso pesquisar repertório e tomar intimidade com as canções. Izzy, claro, sabia sobre a obra e a importância da tia, que não chegou a conhecer, mas contou com a ajuda da mãe, que, inclusive, concordou em acompanhá-la na faixa Pela rua. O álbum, chamado Aos mestres com carinho: Homenagem a Dolores Duran, recebeu uma pré-indicação ao Grammy Latino. “Já cantava havia muitos anos, mas essa foi minha estreia em disco. Foi uma felicidade. Deu-me boa sorte na carreira”, diz Izzy, que, depois desse trabalho, já lançou outros dois e cantou para Bono e Paul McCartney.

Com isso, Denise passou, aos poucos, a se reaproximar mais não só das músicas, como também da história de Dolores. Além de dar depoimentos para a biografia escrita por Rodrigo Faour, leu todo o texto antes da publicação, colaborou com o máximo de informações que tinha e, em 2010, participou de um disco tributo concebido pelo produtor Thiago Marques Luiz, no qual interpretou Minha toada.

Amigos, discípulos e novas leituras

A lista de artistas que interpretaram Dolores Duran ao longo dos anos é enorme: Nora Ney, Ângela Maria, Nelson Gonçalves, Elizeth Cardoso, Maysa, Elis Regina, Clara Nunes, Carlos Lyra, Gal Costa, Nara Leão, Maria Bethânia, Alcione, Sylvia Telles, Marina Lima, Milton Nascimento, Roberto Carlos, Leny Andrade, Leila Pinheiro, Simone, Zizi Possi, Fafá de Belém, Paulinho Moska, Vanessa da Mata e Fernanda Takai, só para citar alguns nomes.

Pouco tempo depois da morte da compositora, Lúcio Alves (1927-1993) começou a gravar uma homenagem para a amiga de noites cariocas. Em 1960, lançou A noite do meu bem, já reeditado em CD, no qual cantava acompanhado por uma turma de ouro da música brasileira, como o violonista Baden Powell (1937-2000), que havia sido namorado de Dolores, e o pianista Luís Carlos Vinhas (1940-2001).

Em 1969, o pianista Ribamar (1919-1987), parceiro de palco de Dolores e coautor dos clássicos Pela rua, Quem sou eu?, Ideias erradas e Ternura antiga, esta última póstuma, também prestou a sua homenagem. No mesmo ano, a cantora paulistana Isaura Garcia (1923-1993) fez a inusitada junção de Dolores e Martinho da Vila, este em início de carreira, em um mesmo disco. Fazendo jus à alcunha de ‘a personalíssima’, Isaurinha alternou faixas como o samba Casa de bamba, de Martinho, com a sofrida Solidão, de Dolores.

As canções dela também foram parar no teatro. Em 1970, a peça Brasileiro profissão esperança, com o ator Ítalo Rossi (1931-2011) e a cantora Maria Bethânia, tinha como base as criações da compositora e de Antônio Maria (1921-1994). Quatro anos depois, Clara Nunes e Paulo Gracindo remontaram o espetáculo com grande sucesso, o que valeu um registro em disco. Na década de 1990, mais uma versão, dessa vez com Bibi Ferreira e Gracindo Jr. como protagonistas, e mais um álbum, que acaba de ser relançado.

Em 1994, foi a vez de Nana Caymmi lançar seu olhar para as composições de Dolores. Batizado de A noite do meu bem – As canções de Dolores Duran, o álbum é um dos grandes sucessos da carreira da cantora carioca. Com o repertório bem parecido ao dos demais tributos, o trabalho se destaca pela emocionada interpretação de Nana e pelos arranjos de Dori Caymmi em algumas faixas, além da participação de Tom Jobim ao piano em Por causa de você, uma de suas três parcerias com a artista.

A obra de Dolores, apesar de ter sido feita antes da bossa nova, o grande marco da modernização da música popular brasileira, não envelheceu. Já recebeu ares pop, como o registro feito por Marina Lima, em 1979, que abriu seu primeiro disco de carreira, Simples como fogo, com uma versão de Solidão. Uma espécie de aviso: uma nova compositora mulher na música brasileira que, assim como Dolores, não teria medo ou receio de julgamentos ao expor seus sentimentos. Luiza Possi fez algo parecido com a mesma música em 2013, no CD Sobre o amor e o tempo, seu mais recente trabalho.

“Posso falar em nome da minha mãe, da minha família: ficamos muito contentes cada vez que um artista da nova geração grava Dolores. É sinal de que a obra dela está viva e que permanecerá assim por muito tempo”, diz Izzy Gordon.

Mas por que as canções de Dolores continuam a despertar sentimentos mais de meio século após a sua morte? “Ela era direta. Tinha uma maneira muito coloquial de passar suas mensagens. E, apesar de compor sambas-canção, fez tudo com muita leveza. Mesmo as pessoas gravando sempre as mesmas canções, não enjoa”, analisa Rodrigo Faour. “Talvez possamos compará-la com Rita Lee, mas esta trouxe, além do coloquialismo, o humor. Já Dolores não teve tempo de desenvolvê-lo em suas letras”, completa.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Metamorfose contemporânea


Por Gabriela Soutello
Da Revista Cult

Alguém certamente teria caluniado Franz Kafka – caso ele ainda fosse vivo –, pois uma manhã ele foi acusado sem ter feito mal algum. A estrutura da modernidade sobre a qual escrevia o autor há cerca de cem anos acabou por se refletir em páginas atuais, no mundo contemporâneo, em um estado de presença provavelmente parecido com o realista do século XX – tanto menos ou mais absurdo. A sentença a ser cumprida por Kafka, 90 anos após sua morte, é a de continuar sendo lido como o anunciante do novo século.

Ao lado de Marcel Proust e James Joyce, Franz Kafka foi um dos maiores autores realistas do século passado. Imagético, expressionista e neurótico, escreveu efervescentes obras em um alemão límpido e protocolar diante da atmosfera pré-fascista que se estabelecia na Europa. Não havia espaço para discutir direitos humanos e a liberdade era, ao mesmo tempo que essencial e requisitada, frágil. Kafka nos mostra a partir de seus personagens, quase sempre subalternos a engrenagens autoritárias cujas ordens não conseguem compreender, uma realidade mecânica na qual prevalecem o automatismo raso, o medo e a perda de identidade. Humilhado e anônimo, resta ao heroi kafkiano o esforço de compactuar com esse universo onde viver é como arrastar-se sobre um pesadelo. A tentativa, no entanto, resulta na ilusão: frustrados e inadaptáveis, os personagens são incapazes de entrar em compromisso.

Diferentemente de Joyce, Kafka explora o panorama desse mundo intranquilo por meio do simbólico. Por isso, é comum encontrar em suas obras imagens que não dizem, mas que querem dizer, e forram na narrativa uma atmosfera  enigmática. Para Modesto Carone, escritor bastante influenciado por Kafka, de quem traduziu todas as obras de ficção para a editora Brasiliense – com exceção das duas primeiras, as quais ele considera “pré-kafkianas”-, a postura do narrador se dá por uma técnica admirável: “É um narrador que não sabe como nem por que motivo as coisas acontecem, e ele obriga o leitor a também não entender o sentido daquilo”.

Legado onipresente
Ainda que os fatos narrados por Kafka sejam oníricos, o autor os expõe de maneira óbvia, dada sua própria linguagem burocrática. É por isso que, em A Metamorfose (1915), ser uma barata acaba não parecendo tão monstruoso assim. Carone explica: “Kafka é um paradigma da literatura moderna porque retrata aquilo que todos nós conhecemos: a nossa própria alienação, o deslocamento do homem no mundo contemporâneo”. Marcelo Backes, escritor e também tradutor das obras do autor, mas para a LP&M pocket, afirma que Kafka percebe esse estado universal de alienação e o descreve com suposto descaso em seu diário: “A Alemanha declarou guerra à Rússia. À tarde, escola de natação”. Para o tradutor, “a indiferença parece extrema, mas a compreensão do mundo, ainda assim, é a maior imaginável”.

“Ele tem uma escrita límpida e inteligível que se encaminha para o que é inteiramente obscuro, indevassável”, afirma Carone. O tradutor reitera a prosa kafkiana, repleta de advérbios, como “seca, mas carregada de sentido e de uma intensidade excepcional”. Backes, por sua vez, considera Kafka “um desses escritores que concedem seus olhos para que possamos ver melhor inclusive dentro de nós mesmos, entendendo a alma aqui dentro e o mundo lá fora, em processos de perturbação”.

Uma trágica história (familiar)
Nascido em Praga no ano de 1883, no império Austro-Húngaro, atual República Tcheca, Franz Kafka tinha dificuldade de se relacionar e costumava sentir-se à parte do mundo. Formou-se em direito porque seu pai não permitiu que cursasse filosofia, e trabalhou como funcionário público em uma companhia de seguros por anos, até se demitir quando contraiu tuberculose. Com o repertório concebido a partir da advocacia, Kafka era um assíduo observador de (in)justiças, fossem elas nos tribunais ou em qualquer relação não horizontal, como era dentro de sua própria casa.

Seu pai foi um dos maiores – se não o maior – exemplos diretos de autoridade, atingindo sua obra e certamente sua vida. Hermann Kafka é descrito pelo filho como egoísta e exigente e, segundo Modesto Carone, a relação dos dois sempre foi conflitante. “Isso lhe serviu para mostrar que o homem autoritário dos nossos tempos pode resultar em um líder fascista”, afirma o tradutor. “Ele viveu essa repressão dentro de casa, mas o particular tornou-se universal: Hoje o autoritarismo continua presente, em plena luz do dia”. Essa conturbada relação com o pai pode ser observada na maioria das obras do autor, entre elas O Veredicto (1912), O Processo (1925), O Castelo (1926) e Carta ao Pai, escrita em 1919, onde o escritor descreve essa convivência em intensa exposição. É Sigmund Freud quem diz que adoraria ter curado Kafka da relação obsessiva de amor e ódio que ele exercia com o pai.

Tímido, confuso e crítico, o autor chegou a se relacionar com algumas mulheres e inclusive a noivar, mas, a cada vez que se sentia cobrado, se afastava. Sua vida foi um infortúnio de frustrações frente a um mundo administrativo, e era na literatura que ele se depositava, explorando a existência. “Kafka sempre viveu sozinho, fechado dentro de si”, afirma Backes. Enquanto vivo, sua obra foi pouco descoberta, já que a maioria de seus clássicos acabou sendo publicada somente após sua morte, por Max Brod, escritor, jornalista e amigo próximo do autor, a quem ele teria pedido que queimasse todos os seus manuscritos.

“Era uma exclusão total”, adverte Carone. Certa vez, em uma carta enviada à escritora Milena Jesenska, com quem se relacionou, Kafka escreve: “Creio realmente estar perdido para a convivência com os seres humanos”. O autor também dizia que tudo o que não fosse literatura o aborrecia. Esse sentimento de exclusão, quando refletido em sua obra, como afirma Carone, reitera a atualidade do autor: “é uma experiência muito humana e muito moderna. Todos nós parecemos estar aqui sem saber bem por quê”.

“Kafka é feito um homem que esquia no cascalho, para provar com cambalhotas e arranhões àqueles que pretendem que o cascalho é neve, que não se trata, realmente, de outra coisa senão cascalho”, diz o jornalista e filósofo alemão Günther Anders, que classifica o autor como um “artista da neurose contemporânea”. Marcelo Backes acredita que a exposição de Anders “define com precisão o realismo doloroso da arte literária de Kafka, que tem um forte índice de invocação interior, inclusive no mal-estar que desperta em nós”. Para Modesto Carone, o fato de Kafka não nos dar soluções, mas levantar problemas é uma importante característica literária do escritor. “E há mais”, ele ressalta: “talvez Kafka seja o último dos escritores que nos faça sofrer. Porque todos nós sofremos com o destino de Gregor Samsa em A Metamorfose. Afinal, aquele inseto existiu ou não?”.

Kafka morreu em 3 de junho de 1924. Se, para Clarice Lispector, em A paixão segundo GH (1964), comer a massa branca e viva de uma barata era necessário para o encontro consigo mesma, para Kafka a transformação metafórica no grotesco é também um passo para o próprio conhecimento ontológico: sentindo o incômodo de um corpo estranho de inseto e a inadequação em um mundo de desumanos, Gregor Samsa incorpora a metáfora e é, ele mesmo, a barata. Carone afirma que “o centro de irradiação dos conteúdos de verdade de sua obra surge a partir da existência humana, e não da fixação cósmica”. Para ele, Kafka é um grande realista do nosso mundo, que transcende os séculos para continuar sendo interpretado. O próprio Carone assume que ainda hoje se surpreende com os livros de Kafka. “Sua obra é como uma folha de aço, fina e flexível, capaz de romper a parede que nos separa da verdade. E é por isso que nós continuamos falando dele hoje”, diz.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Jogos e joias na obra de Chico Buarque


Da Ilustríssima
Por Carlos Rennò


RESUMO Ao longo de sua carreira como compositor-letrista, Chico Buarque fez uso constante do recurso poético da aliteração, tanto em seus sambas de conteúdo social quanto nas canções sensuais. Mas seus jogos de palavras vão além, e se assemelham ora a dribles do futebol-arte, ora a canções de trovadores da Idade Média.


*
Chico Buarque sempre foi um grande cultor das aliterações. Desde o início do seu longo percurso de compositor-letrista fora de série, ele se notabilizou pela mestria no emprego delas, como comprova um de seus primeiros sambas de conteúdo social e grande expressão, Pedro Pedreiro (1965).

A luxuriosa Não Existe Pecado ao Sul do Equador, parceria com Ruy Guerra de um pouco mais tarde (1972), clássico que integra outra vertente importante da obra de Chico, a das canções sensuais, ricas em sugestões sexuais, também é balizada por palavras aliterantes.

Embora com o tempo as aliterações tenham se tornado menos frequentes em sua obra, nem por isso Chico deixou de praticá-las com assiduidade. Na verdade, economizou esteticamente o seu uso.

Assim, por exemplo, Iracema Voou (1998) apresenta, sobre a suavidade das frases melódicas, duas passagens assinaladas respectivamente por delicados eles (levemente entremeados de pês) e chs. Ambos muito apropriados para colaborar para a transmissão do sentimento de ternura, investida de alguma ironia, para com a personagem do título: Leva roupa de lã/ E anda lépida/ [...] Lava chão numa casa de chá.



Desde que o linguista e crítico Roman Jakobson, ao lado de outros nomes do formalismo russo, se dedicou sistematicamente ao estudo dos efeitos sonoros na poesia, as aliterações e outros jogos de palavras e sons se constituem como recursos definidores da especificidade da linguagem poética.

Se isso vale para toda poesia, é ainda mais válido quando se trata da melopeia, a modalidade em que a seleção vocabular se orienta pela propriedade musical dos termos, em que eventos sonoros como paronomásias, rimas inclusas, desempenham papel fundamental.

Normalmente, no entanto, tem-se uma concepção bastante limitada da qualidade estética das aliterações. Para a maioria, elas são indistintamente vistas tão só como uma proliferação ornamental de fonemas com sons idênticos ou parecidos. Na obra de Chico, porém, há uma abundância de demonstrações do emprego artístico superior desse procedimento.

As aliterações podem vir com anagramas, como em A Rita (1965): [Levou seu retrato,] seu trapo, seu prato. Ou na citada Iracema Voou (de um período em que as aliterações, como as rimas, já se rarefaziam e se refinavam): Não domina o idioma inglês (imperfeito, sim, mas bom).



Ou então se constituir de palavras de um mesmo campo semântico, estabelecendo o que poderia ser visto como aliterações de som e de sentido. Veja-se este verso, de Mambembe (1972): Mendigo, malandro, moleque, mulambo, bem ou mal. Ou estes, de Ana de Amsterdam (1972/3): Sou Ana do dique e das docas; Da cama, da cana, [...] bacana (sacana). De Jorge Maravilha (1974), [Ela gosta do tango, do dengo,] do mengo domingo.... Ou, de Feijoada Completa (1977), este: Uca, açúcar, cumbuca de gelo, limão. Perfeitos, não?

Mas o grau de complexidade e originalidade na aplicação desse recurso não fica por aí, havendo ocasiões em que os sons dos trechos aliterantes chegam a remeter ao significado deles, promovendo um isomorfismo de especial valor.



O povaréu sonâmbulo/ Ambulando/ Que nem muamba/ Nas ondas do mar: nessa passagem de Carioca (de 1998) podemos ver (tendo como referência as latas de maconha que tinham sido descobertas boiando nas águas do Rio, os versos, além do mais, são de uma força imagética a toda prova) as pessoas, de manhãzinha, a perambular ante nossos olhos ainda não plenamente despertos.

E o que dizer das linhas de Morena de Angola (1980)? Quase toda ela chiante, a letra, literalmente, efetivamente, chocalha do começo ao fim, tal e qual a musa sensual e militante que ela canta e que leva o chocalho amarrado na canela, deixando o poeta indeciso se ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela.


RIMA

Chico trata a palavra cantada como o craque de futebol trata a bola; com o mesmo carinho, a mesma classe. E nesse tratamento explora as imensas possibilidades sonoro-criativas da nossa língua, o português brasileiro.

Um artífice da palavra do quilate de Chico Buarque não apresentaria uma concepção comum de rima. Nesse sentido, alguns exemplos são bastante ilustrativos, constituindo pequenas joias a descobrir em sua obra.

Observe-se o que sucede na já referida Iracema Voou, canção que refletiu a onda da mudança de brasileiros, na segunda metade da década de 90, para o exterior, mais precisamente para os Estados Unidos. Muito a propósito, Chico escolheu para a sua imigrante o nome, anagrama de América, da personagem do romance romântico de José de Alencar.

A letra, toda ela composta com rimas imediatamente identificáveis, finaliza, contudo, com uma que, a princípio, se hesitaria em classificar como tal: Me liga a cobrar/ - É Iracema da América. Porém, no plano da canção, da palavra cuja razão de ser é ser cantada e ouvida, os vocábulos rimam porque o final da frase musical sobre o qual se justapõe o termo América impõe uma acentuação não só sobre a antepenúltima sílaba do topônimo, mé, mas também sobre a última, ca. Na prática, o que se canta é Américá.

Tal tipo de rima, entre oxítona e paroxítona, não é usual em canções em português, mas em inglês é -tanto em letras de música quanto em poemas. Não é interessante que, numa canção popular tematizando a vida que uma cearense está levando na maior nação do mundo em que se fala o inglês, a última rima, e justamente a última, seja de uma espécie incomum no nosso idioma e comum em canções e poemas daquele?

Vejamos agora uma outra canção do repertório de Chico, relacionada com outro território e a outra língua: Cuba; o espanhol.

Loa ao país da revolução conduzida por Fidel Castro pelo ideal de justiça social que inspirava, Maravilha (1977), baseada em rimas completas, consoantes, apresenta excepcionalmente no final uma rima toante, incompleta: primavera/ terra. Ou seja, fecha com uma rima típica da poesia em língua espanhola, encontrável em centenas de canções cubanas, em que a toante é rima convencional, muito antes que no nosso português; antes de João Cabral, das letras do tropicalismo (Capinan, Caetano) e do rock dos anos 80.

(Um detalhe a mais: em espanhol, as palavras primavera e tierra formam uma rima consoante, como as demais da letra.)

TROVADOR

Esquemas rímicos como os adotados por Chico em Paratodos (1993) e A Rosa (1979) fazem pensar em poemas trovadorescos, da Idade Média (os quais, aliás, eram todos cantados, razão pela qual recebiam o nome de canções). Nenhum exemplo, no entanto, se compara, em sofisticação, ao sistema empregado em O Futebol (1989). A singularidade dessa canção, até onde sei não tem, pela radicalidade da aplicação, paralelo no campo das letras de música popular, só encontrando referência, de novo, na erudição dos trovadores medievais.



Sem contar o quarteto final, que faz as vezes de coda, a canção se divide em três estrofes de 14 versos, nas quais os 8 primeiros têm rimas cruzadas (ABABCDCD) e os 6 seguintes parecem não rimar.

De fato, metade destes não rimam dentro da estrofe, mas sim entre uma e outra, na mesma posição (o som do final do nono verso de uma estrofe ecoando no final do novo verso das estrofes seguintes, e por aí vai). Tais rimas, chamadas separadas ou isoladas, para as quais se exige uma perícia maior, foram postas em prática pioneiramente por Arnaut Daniel, poeta provençal que Dante Alighieri considerou o melhor dos trovadores.

É óbvio que a percepção dessas rimas, pela distância em que se acham seus termos um do outro, não se faz normalmente de uma primeira ouvida, nem sequer de uma primeira lida, no papel. Mesmo assim não é fácil fazer a descoberta de um detalhe a mais que o artista parece ter deixado, caprichosamente, para o final.

Do 9º ao 14º verso, três finais de versos rimam com outros interestroficamente; as exceções ficam por conta do 10º (sempre concluído com um nega na função de vocativo), do 12º (que termina sempre com um gol) e do 14º. Entre este e o 10º, no entanto, estabelece-se uma rima, de mais difícil detecção -mais exatamente entre a última palavra do verso 14 e, quase ocultamente, a penúltima do verso 10 (que vem sempre seguida do termo nega).

Na primeira estrofe esse par é formado por pinacoteca, [nega] e seca. Na segunda, entre minha [nega] e linha. Na terceira, contudo, nos defrontamos, nos mesmos pontos, com as palavras capenga, [nega] e ginga, o que, de cara, pode causar um estranhamento. Afinal, numa letra inteiramente feita de rimas perfeitas, uma imperfeita no final soaria como uma peça com defeito numa máquina poética que até então se mostrou sem falha.

Mas aí é que está: dando-se entre ginga e capenga, a própria rima afirma-se e se assume, na sua concretude e materialidade mesma, capenga, manca, defeituosa. O que a justifica plenamente, em termos estéticos. Um nome para isso -usado, aliás, na cobertura futebolística- é preciosismo.

Só que esta constitui apenas uma entre várias outras firulas poéticas que, para tirar efeito igual/ ao jogador,/ qual/ compositor (Qual, verso monossilábico rimado: mais um drible!), Chico faz nessa letra. E todas elas justificadas, por se tratar afinal de uma canção sobre o futebol brasileiro, mitologicamente considerado o futebol-arte, o futebol-poesia, como Pasolini o classificou.

Outra mais? Palavra-chave no texto -assim como no próprio esporte (como a canção vem nos revelar), em que a bola é sempre passada de um jogador para o outro-, para aparece, seja como preposição, seja como antepositivo de verbo ou substantivo (parafusar, paralela, parábola, paralisando), 13 vezes nas 3 estrofes, mais 8 vezes na coda (Para Mané para Didi para Mané...) e uma na dedicatória (Para Mané, Didi, Pagão, Pelé e Canhoteiro, o ataque dos sonhos de Chico): ou seja, 22 vezes na soma, o mesmo número total de jogadores de uma partida...

O nível do desempenho técnico, bem como o grau de criatividade e fantasia poéticas exibidas em O Futebol, estende-se ainda à seleção e organização das peças vocabulares que se juntam na letra.

Trata-se de um apanhado de termos e expressões provenientes da semântica do jogo, da crônica esportiva inclusive: estufar o filó, Rei (Pelé), efeito, firula, pintura, folha seca, joão (como Garrincha chamava seus marcadores), lateral, finta, contrapé, avançar, corredor, homem-gol, rasgando, costurando, linha, chapéu, gerais (que não existem mais nos estádios, agora arenas em cujas arquibancadas mal se veem pretos e não se veem pobres), catimba, ginga...

Nota
Este texto é uma versão adaptada para a Ilustríssima de ensaio inédito sobre Chico Buarque. O texto original estará em O Voo das Palavras Cantadas (Dash, R$ 42, 320 págs.), coletânea em que Carlos Rennó reúne artigos sobre canção. O livro será lançado em São Paulo no dia 11, às 19h, na Livraria Cultura do shopping Iguatemi.


CARLOS RENNÓ, 58, letrista e jornalista, é autor de versões brasileiras de canções de Cole Porter, como Façamos (Vamos Amar), gravada por Chico Buarque e Elza Soares, e do livro Cole Porter - Canções, Versões (Pauliceia).