quarta-feira, 31 de julho de 2013

O filósofo e a justiça

  Sandel em seu universo, a sala de aula


Por Marcos Coronato
Da Revista Época


O bilionário fundador da Microsoft, Bill Gates, ganha dinheiro tão rapidamente que pode fazer mau negócio se parar para pegar uma nota de US$ 100 que encontre no chão. Numa sociedade com desigualdade crescente como a americana, é justo que Gates ganhe tanto assim? Não seria bom para todos cobrar dele mais impostos, a fim de melhorar a situação dos pobres? Mas transferir para outros o dinheiro que Gates ganha legalmente não equivaleria a obrigá-lo a trabalhar de graça, algo que a sociedade decidiu há muito tempo acabar, ao abolir a escravidão? Se as perguntas despertam em você a vontade de argumentar, aqui vai uma dica: não há resposta certa.

Dissecar dilemas morais e éticos como esse, sem nenhuma preocupação em definir o lado certo e o errado, é um dos programas de verão mais disputados por estudantes da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, desde 2004. À frente da classe, com a mão firme de um cirurgião revelando camadas e mais camadas de cada questão proposta, está Michael Sandel, filósofo, escritor, palestrante, fenômeno de popularidade e – seu papel mais importante – professor que consegue níveis impressionantes de atenção e participação dos alunos.

O curso ministrado por Sandel foi o primeiro da história a ser publicado em vídeo integralmente por Harvard na internet, há três anos. Apelidado de Justice, ou Justiça (seu nome é Razão moral 22), ganhou um site próprio, e as 12 aulas ministradas em 2005 foram reproduzidas no YouTube. A primeira delas, que questiona se um assassinato pode ou não ser moral a depender de seus fins, foi clicada mais de 3,7 milhões de vezes. Se todos os visitantes virtuais a assistem, isso significa que a aula de filosofia chega a um público equivalente a 100 turmas diárias de 40 pessoas.

Ao publicar os vídeos, Harvard apenas reagiu a uma demanda sem precedentes. Desde o início dos anos 2000, havia regularmente mais de 1.000 alunos interessados pelo curso de Sandel, numa universidade em que um quinto desse total já significaria uma procura bem grande. Em 2007, Sandel bateu o recorde de Harvard, com 1.115 estudantes matriculados numa disciplina. O curso dura de setembro a janeiro e, ano após ano, a universidade se vê obrigada a reservar para ele seu maior auditório, o Sanders Theater, anteriormente aberto só para grandes eventos e discursos de personalidades, como o ex-premiê soviético Mikhail Gorbachev ou o primeiro-ministro britânico Winston Churchill (1874-1965). Para 2011 e 2012, a universidade limi-tou a 1.000 o número de matriculados.

As aulas deixaram o professor famoso e se desdobraram em eventos pagos e lotados – Sandel excursionou por Japão, Coreia do Sul e China, onde foi considerado “a mais influente personalidade estrangeira” de 2010 pela edição local da revista Newsweek. Por duas vezes, em 2005 e 2010, ele foi uma das estrelas do TED. Neste mês, dará uma palestra paga na Igreja de Todos os Santos, em Los Angeles, com capacidade para 600 pessoas. O tema será “O limite moral dos mercados”. Em agosto, virá ao Brasil, a convite da consultoria Amana Key, para falar a empresários, executivos, funcionários públicos (com ingresso pago) e estudantes universitários (convidados). “Eu o ouvi em Boston por uma hora. Fiquei impressionado com o jeito de ele tratar de dilemas cheios de áreas cinzentas, que exigem capacidade de julgamento muito refinada”, afirma o consultor Oscar Motomura, responsável pela vinda de Sandel ao Brasil.

O que torna uma aula de filosofia tão atraente para tanta gente? Sandel vem aperfeiçoando o método há quase três décadas. Em 1980, aos 27 anos, pouco antes de se tornar doutor por Oxford, começou a ministrar seu curso de filosofia moral em Harvard. Aos 32, recebeu um prêmio dado anualmente por um comitê de alunos e professores da universidade a três mestres que demonstrem “excelência na capacidade de ensino e preocupação pelos estudantes”. Nos anos 1990, o curso ganhou o formato atual e o apelido que o tornou célebre, Justiça.

Sandel não tem um carisma especial, não faz muitas piadas nem usa recursos tecnológicos para chamar a atenção. Em vez disso, conduz uma aula bem preparada e ensaiada, com uma linha de raciocínio bem clara. Convida os alunos a participar, individualmente ou em grupo, o tempo todo, no melhor espírito socrático. Inclui as contribuições e dúvidas deles no debate e continua a se aprofundar nos dilemas morais e éticos que propõe. Em momentos-chave das aulas, para lidar com situações específicas, traz ao palco o pensamento de gigantes como o grego Aristóteles, o alemão Immanuel Kant ou o americano John Rawls, de maneira simples mas não simplória. Como resultado, cada aula oferece uma gratificante jornada intelectual.

Embora o mais importante nas aulas sejam as questões, é natural que os alunos e os espectadores anseiem por respostas. Sandel não as fornece facilmente. O curso Justice e o livro que dele nasceu, Justiça: o que é fazer a coisa certa (2011, Civilização Brasileira, R$ 39,90), deixam as respostas em segundo plano e se concentram nas virtudes do debate e da reflexão. O grande objetivo de Sandel é exortar cada cidadão – aluno ou internauta – a usar a filosofia como ferramenta para enfrentar seus dilemas e dúvidas, em vez de fugir deles, e assim tomar decisões melhores no dia a dia.

O curso todo se desenrola entre duas grandes arenas de pensamento. De um lado, a importância e a fragilidade da liberdade individual, a identidade do cidadão, os direitos fundamentais da pessoa, a força da livre-iniciativa empresarial. Do outro, os direitos difusos, o bem-estar coletivo, a identidade do grupo e os propósitos comuns a uma sociedade. Quem acompanha o curso percebe um vislumbre de qual seria a resposta de Sandel aos problemas que apresenta – a simpatia do professor pende para o segundo conjunto de valores.

Em seu livro mais recente, What money can’t buy (O que o dinheiro não pode comprar, ainda sem título em português, a ser lançado em agosto no Brasil pela Editora Civilização Brasileira), Sandel faz um alerta sobre o que considera excessos na aceitação dos interesses egoístas e na transformação do mundo em mercadoria. Ele se opõe a ideias como as propagadas por seu colega em Harvard, o economista Roland Fryer, que vê benefícios em recompensar com dinheiro a criança que tira notas especialmente boas na escola, ou as do ganhador do Nobel de Economia Gary Becker, que já imaginou a possibilidade de países ricos pagarem a países pobres para admitirem refugiados em seu lugar.

Os alertas de Sandel encontram ressonância no sentimento de grande parte da população, especialmente num momento em que os Estados Unidos mal se recuperam de uma crise nascida no sistema financeiro. A identidade com uma certa indignação das classes média e baixa contribui para tornar o pensamento de Sandel mais difundido, mas certamente não mais original nem provocativo. Se brilha menos como pensador, Sandel faz história como um espetacular profissional de ensino – e essa contribuição é mais que se poderia exigir de qualquer filósofo.

terça-feira, 30 de julho de 2013

A espiritualidade das pedras


Por Luiz Felipe Pondé
Da Ilustríssima

Meu Deus, como ter um "eu" cansa! Os místicos têm razão. Não é necessário ser um "crente" para ver isso, basta ter algum senso de ridículo para ver o quão cansativo é satisfazer o "eu". E a modernidade é toda uma sinfonia (ou melhor, uma "diafonia", contrário da sinfonia) para este pequeno "eu" infantil.

Outro dia, contemplava pessoas num aeroporto embarcando para os EUA com malas vazias para poder comprar um monte de coisas lá.

Que vergonha. É o tal do "eu" que faz isso. Ele precisa comprar, adquirir, sentir-se tendo vantagem em tudo. O "eu" sente um "frisson" num outlet baratinho em Miami. O mundo faz mais sentido quando ele economiza US$10. E o pior é que, neste mundo em que vivemos, faz mesmo sentido. Qualquer outra forma de sentido parece custar muito mais do que US$ 10.

A filosofia inglesa tem uma expressão muito boa que é "wants", para se referir a nossas necessidades a serem satisfeitas. Poderíamos traduzir de modo livre por "quereres". O "eu" é um poço sem fundo de "wants". Isso me deprime um tanto.

Como dizia acima, a modernidade é toda feita para servir ao pequeno autoritário, o "eu": ele exige mais sucesso, mais autoestima, mais saúde, mais dinheiro, mais beleza, mais celulares, mais viagens, mais consumo, mais direitos, mais rapidez, mais eficiência, mais atenção, mais reconhecimento, mais equilíbrio, melhor alimentação, mais espiritualidade para que ele não se sinta um materialista grosseiro.

Outra demanda do "eu" que enche o saco é querer se conhecer. Você conhece coisa mais chata do que alguém que tira um final de semana para fazer um workshop de autoconhecimento e aí vai para jardins "fakes" na Raposo? E pior, quem tira seis meses para se conhecer depois dos 40 anos e acha legal? O autoconhecimento só é sério quando deságua em autoironia.

O império do "eu" se revela quando vivemos pela angústia de torná-lo "resolvido". Nada é mais típico dessa angústia estéril do que alguém sempre atento às próprias dores.

Outra armadilha típica do mundinho do "eu" é a idolatria do desejo. A filosofia sempre problematizou o desejo como modo de escravidão, e isso nada tem a ver com a dita repressão cristã (que nem foi o cristianismo que inventou) do desejo. Problematizar o desejo tem mais a ver com um conhecimento sutil, fruto da experimentação que a realização do desejo sem idealizá-lo traz. A idealização do desejo é marca da condição adolescente ou reprimida.

O "eu" falante inunda o mundo com seu ruído. O "eu" mais discreto tece um silêncio que desperta o interesse em conhecê-lo. Mas hoje vivemos num mundo da falação de si, como numa espécie de contínuo striptease da alma. O corpo nu é mais interessante do que a alma que se oferece. Por isso toda poesia sincera é ruim (Oscar Wilde). O "eu" deve agir como as mulheres quando fecham as pernas em sinal de pudor e vergonha.

A alta literatura espiritual, oriental ou ocidental, há muito compreende o ridículo do culto ao "eu". Uma leveza peculiar está presente em narrativas gregas (neoplatonismo), budistas (o "eu" como prisão) ou místicas (cristã, judaica ou islâmica).

Conceitos como "aniquilamento" (anéantissement, comum em textos franceses entre os séculos 14 e 17), "desprendimento" (abegescheidenheit, em alemão medieval) e "aphalé panta" (grego antigo) descrevem exatamente esse processo de superação da obsessão do "eu" por si mesmo.

A leveza nasce da sensação de que atender ao "eu" é uma prisão maior do que atender ao mundo, porque do "eu" nunca nos libertamos quando queremos servi-lo. Ele está em toda parte como um deus ressentido.

Por isso, um autor como Nikos Kazantzakis, em seu primoroso "Ascese", diz que apenas quando não queremos nada, quando não desejamos nada é que somos livres. Muito próximo dele, o filósofo epicurista André Comte-Sponville, no seu maior livro, "Tratado do Desespero e da Beatitude", defende o "des-espero" como superação de uma vida pautada por expectativas.

Entre as piores expectativas está a da vida eterna. Espero que ao final o descanso das pedras nos espere. Amém.



segunda-feira, 29 de julho de 2013

Marca de luxo é ligada a trabalho degradante



Por Claudia Rolli
Da Folha de São Paulo

Uma fiscalização, realizada em junho em São Paulo, encontrou 28 bolivianos em condições de trabalho análogas à escravidão em três oficinas que confeccionavam roupas das grifes Le Lis Blanc e Bo.Bô (Bourgeois e Bohême).

As marcas pertencem à Restoque, grupo com 212 lojas no país e que encerrou o primeiro trimestre com receita líquida de R$ 195 milhões.

À Folha a empresa informou que não tem relação com as oficinas fiscalizadas.

Após blitz feita em 18 de junho em oficinas de costura clandestinas por força-tarefa do Ministério do Trabalho, Ministério Público do Trabalho e Receita Federal, a grife foi autuada e pagou R$ 600 mil de indenização aos estrangeiros, a maior parte em situação irregular no país.

Cada trabalhador recebeu, em média, R$ 21 mil.

A empresa também recebeu 24 autos de infração pelas irregularidades cometidas. Os valores das autuações ainda estão sendo calculados, mas apenas uma das multas (por práticas discriminatórias por origem ou raça) deve chegar a R$ 250 mil.

Trabalho análogo à escravidão é a submissão a condições degradantes, como jornada exaustiva (acima de 12 horas), servidão por dívida e com riscos no ambiente de trabalho.

Produção exclusiva

Nove de cada dez peças fabricadas pelos 28 trabalhadores resgatados (18 homens e 10 mulheres) eram encomendadas pela Le Lis Blanc por meio de dois fornecedores intermediários: as confecções Pantolex e Recoleta (veja quadro na página 2).

As confecções intermediárias encomendavam as peças às oficinas e depois as entregavam prontas para a grife.

"Ficou evidente a dependência da empresa com o sistema de produção das oficinas e a responsabilidade do grupo", diz o auditor fiscal Luís Alexandre Faria.

Sem carteira assinada, os costureiros faziam jornada de 12 a 14 horas em três oficinas na zona norte de São Paulo.

Eles trabalhavam e moravam nesses estabelecimentos considerados pelos fiscais em condições precárias de segurança e de higiene. Os cômodos eram separados por tapumes, e os banheiros, coletivos.

Alguns deles relataram que tinham de pedir permissão para deixar o local, apesar de terem a chave do portão e não ficarem trancados.

Cadernos de contabilidade mostram indícios de descontos de dívidas contraídas com os gerentes das oficinas para pagar o valor das passagens de vinda da Bolívia.

"Pegamos vales para pagar nossas contas e depois descontam nas faturas", diz M., 37, que trabalha como costureiro há um ano. O salário é de R$ 800 a R$ 900, após o desconto até do wi-fi.

O gerente de uma das oficinas, H., diz que recebeu dos fornecedores de R$ 12 a R$ 15 por calça ou blazer costurado dependendo do grau de dificuldade, mas admite que apenas parte desse valor parte é repassada ao costureiros.

"Do valor de cada peça é tirado um terço para quem costura, um terço para o lucro e um terço para despesas de aluguel, água e comida."

Outro lado

A Restoque, dona das marcas Le Lis Blanc e Bo.Bô (Bourgeois e Bohême), ´disse que não tem relacionamento com as empresas citadas na fiscalização do Trabalho e que irá se defender.

Em nota, a empresa disse que recebeu "em 22 de julho de 2013 autuação do Ministério do Trabalho e Emprego envolvendo empresas que não conhecemos e com as quais não temos relacionamento". Segundo a empresa, a autuação envolve valores entre R$ 50 mil e R$ 150 mil.


"Cumprimos integralmente a legislação trabalhista nas relações com nossos colaboradores e tomamos os mesmos cuidados com nossos fornecedores", informou a Restoque, acrescentando que, após analisar as autuações, irá apresentar defesa.

As duas confecções citadas pelo Ministério do Trabalho -Recoleta e Pantolex- disseram desconhecer a exploração de trabalho escravo nas oficinas subcontratadas.

Segundo o advogado Alexandre Venturini, que representa as duas marcas, a entrega de parte do serviço a oficinas menores é prática "esporádica" nas confecções.

"Grande parte da produção é feita internamente e pontualmente são contratadas outras empresas, essas oficinas -que normalmente são compostas por estrangeiros, bolivianos-, para quando não é possível cumprir determinada meta de produção."

Segundo Venturini, as confecções desconheciam a irregularidade nas oficinas.

"Não tinham conhecimento a propósito dessa exploração de trabalho", disse. Os contratos das duas confecções com as oficinas fiscalizadas foram cancelados, afirmou.

De acordo com o advogado, a Recoleta contratou pela primeira vez a oficina onde os fiscais detectaram a exploração de bolivianos.

Já a Pantolex mantinha contratos com as outras duas oficinas em situação irregular havia cerca de um ano, diz. As oficinas não tiveram seus nomes divulgados pelo ministério para evitar a exposição dos trabalhadores bolivianos.

A gente não pode fazer nada', diz gerente de oficina sobre preços das roupas

Há 16 anos no Brasil, o boliviano Z.G.C., 32, gerente de uma das oficinas interditadas diz que começou no ramo após trabalhar como "piloteiro" de um grande estilista brasileiro.

"Eu levava a peça piloto para as confecções terceirizadas. Era chamado de piloteiro no atelier, em Pinheiros. Montei até um site divulgando o meu trabalho no boca a boca. Tive muito trabalho,em confecções e outras oficinas. Depois de um tempo montei a minha e chamei meus conterrâneos para trabalhar", diz Z..

Para ajudar os cinco trabalhadores que estão com ele na produção de peças para a grife Les Lis Blanc, emite vales e faz os descontos "aos poucos" dos colegas.

"Tem gente que precisa de um celular novo, ou comprar algo então não tem problema, parcelamos e ajudamos os costureiros", afirma.

Dois dias antes da fiscalização, Z. diz ter rejeitado uma encomenda para fabricar um lote de peças para outra grife masculina. "Queriam me pagar R$ 7 por peça, é muito pouco. Porque desse valor ainda tem de dividir por três para pagar o costureiro. E ninguém mais aceita tão pouco."

Seu maior orgulho, diz, foi ter assistido, durante uma edição do São Paulo Fashion Week, a modelo Gisele Bunchen desfilar uma jaqueta que havia sido costurada na oficina em que trabalhava. "Também vi a atriz Carolina Dieckmann com um blazer da grife para a qual eu costurei".

"Cada pessoa tem seu talento, e esse é o meu desde os 16 anos, gosto de costurar", diz. "Desde que estou no Brasil não gastei R$ 1 com bebida. Quero voltar a La Paz um dia, tudo isso para que meus pais sintam orgulho de mim", diz Z.

Ao ver que a mesma calça que costurava em sua oficina por cerca de R$ 15 era vendida no site da grife Le Lis Blanc, no dia 18 de junho, por cerca de R$ 400, o costureiro foi categórico: "É um absurdo, mas a gente não pode fazer nada." 


sexta-feira, 26 de julho de 2013

Como funciona o coletivo de mídia NINJA


Por Ronaldo Bressane
Da Revista Piauí

À uma da manhã de 18 de junho, um painel da Coca-Cola com centenas de latas vazias ardia em chamas na avenida Paulista, em São Paulo. Do lado esquerdo da peça, o fogo avançava sobre a mensagem publicitária: “Vamos juntos colorir o Brasil.” Do outro lado, um catador recolhia as latas arrancadas do painel, ao lado do novo slogan rabiscado sobre o fundo vermelho: “queima copa.” Além do agente da reciclagem e do fogo vândalo, a cena guardava um protagonista oculto: o repórter ninja que documentou tudo.

Mas não se tratava de um guerreiro oriental: a expressão designa o coletivo de mídia Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação, ou simplesmente NINJA. Naquela noite, Filipe Peçanha, integrante do grupo, era o único jornalista a cobrir ao vivo o protesto na esquina da Paulista com a rua da Consolação.

A transmissão via internet alcançou 80 mil acessos, o equivalente a pouco mais de 1 ponto no Ibope. Nenhum canal de tevê mostrava em tempo real o tumulto das manifestações. Os protestos haviam começado pacificamente na Sé, se convulsionaram no ataque ao prédio da prefeitura e terminaram sob bombas da polícia na Paulista.

Peçanha tem 24 anos e nasceu em Machado (MG), mas é conhecido como Carioca – culpa de uma temporada em que viveu entre Petrópolis e Teresópolis. Enquanto cobria outra manifestação na Paulista, alguns dias depois, ele se lembrou de como registrou a imagem do painel queimando, que se alastrou pelas redes sociais. Carioca viu uns quinze manifestantes brigando com seguranças junto ao painel publicitário. “Derrubaram o gradil e veio a polícia, que caiu de cassetete em cima de todo mundo. Eles se dispersaram e, nos vinte minutos que se passaram até uma viatura chegar, alguém meteu fogo”, contou.

Carioca disse que percebeu o gesto como “uma conquista do movimento”. Em vez de vandalismo, ele preferiu enxergar na cena um reflexo do “caos sígnico” que varreu as ruas brasileiras nos idos de junho. “Quando os caras atacam um signo de poder econômico que ocupava o espaço público, fazem um sequestro do simbólico”, avaliou. “Mas o poder segue vivo, como se vê no catador pegando as latinhas.”

A cobertura engajada e em tempo real de questões sociais é a marca do NINJA. O grupo atua há um ano e meio e funciona como uma espécie de braço audiovisual do Circuito Fora do Eixo – rede de coletivos catalisados pela figura magnética do ativista Pablo Capilé. A iniciativa nasceu de uma série de discussões políticas que levou à criação da Póstv, canal audiovisual de transmissão ao vivo pela internet. O primeiro tema abordado pelo NINJA foi a Cracolândia do Centro paulistano. Depois disso, o coletivo esteve presente nas marchas da maconha, em blocos de rua e eventos como o “Existe Amor em SP”. Sua missão mais ambiciosa foi o envio de dois correspondentes a Mato Grosso do Sul, para conferir se de fato os índios guarani-kaiowá estavam prestes a praticar suicídio coletivo.

O líder natural do NINJA é o carioca Bruno Torturra, de 34 anos, que foi repórter, colunista e diretor da revista Trip por dez anos. Seu texto inventivo, povoado de trocadilhos e imagens bizarras, fornece a alta octanagem política e conceitual que move o coletivo. Enquanto caminhava pela Paulista fechada e vazia, à espera da próxima manifestação, Torturra explicou que o ativismo não funciona se for movido pela raiva, e que por isso defende transmissões bem-humoradas. “A disputa política não pode ser feita com medo ou dedos em riste”, argumentou. “Não é assim que se fecundam mentes. Tem que ser com humor.”

O NINJA se vale da facilidade com que as bandeiras sociais circulam na internet para impulsionar sua cobertura. “A rede e a rua se fundiram”, explicou Torturra. “A guerra agora é memética, de imaginários.” O jornalista se referia aos memes, nome dado aos vídeos, fotos, montagens e frases de efeito que se espalham de forma viral pelas redes. Originalmente, o conceito de meme foi proposto pelo biólogo Richard Dawkins como um análogo cultural dos genes. Assim como a seleção natural favorece a transmissão de alguns traços biológicos, a inteligência coletiva da internet define quais memes sobreviverão: “Passe livre”, “Vamos colorir o Brasil”, “Queima Copa”.

O responsável por criar o “imaginário NINJA” é o fotógrafo e designer Rafael Vilela, que os colegas chamam de Pira (“Por ter morado em Piracicaba e também por ser meio pirado”). É ele quem edita fotos e vídeos e atualiza a página no Facebook com as imagens clicadas numa Canon 6D. Naquela noite, Pira estava publicando fotos do ato contra o deputado Marco Feliciano na praça Roosevelt. Dez minutos depois de postada, uma imagem já tinha sido curtida 400 vezes e compartilhada outras 200.

Enquanto postava as fotos, Pira disse que ativismo e comunicação são inseparáveis. “Por isso entramos em lugares que a mídia convencional não vai. Damos voz direta aos personagens, sem intermediários”, explicou. Com os protestos, foram parar inclusive na mídia convencional, entrevistados por revistas e jornais brasileiros, pelo New York Times, peloWashington Post e pela rede árabe de tevê Al Jazeera.

Para as situações de rua, um ninja tem dois kits: o individual e o de equipe. No primeiro, um celular com internet, um laptop funcionando e outros que servem como bateria, todos levados numa mochila. O segundo consiste num carrinho rosa-choque carregado com duas câmeras, mesa de corte, microfones, gerador e caixas de som. Tudo da Apple e comprado coletivamente (menos o carrinho, apropriado de um supermercado), com o dinheiro captado pelo Fora do Eixo nos festivais de música que promove pelo Brasil – e nos editais de cultura de que participam.

Para praticar jornalismo colaborativo, é preciso compartilhar existências. À exceção de Torturra, o núcleo duro – que inclui ainda o cinegrafista cuiabano Thiago Dezan – mora todo ele na Casa Fora do Eixo, no bairro do Cambuci. “A vida coletiva faz com que você nunca fique em zona de conforto”, defendeu Pira. “Como estamos sempre em bandos, criamos canais o tempo todo”, explicou Carioca. “Somos mais porosos ao que acontece. Um ninja nunca está sozinho”, concluiu, pouco antes de se dissolver na multidão.


quinta-feira, 25 de julho de 2013

Contra a internet

Por Álvaro Pereira Júnior
Da Ilustrada


No auge, a Kodak empregava mais de 140 mil pessoas e valia cerca de R$ 50 bilhões. Quando o Instagram foi vendido por R$ 2 bilhões ao Facebook, ano passado, tinha só 13 funcionários.

Para Jaron Lanier, um "insider" do Vale do Silício, esse exemplo resume tudo o que há de errado com a economia da rede. Sob a fachada de escolhas infinitas e liberdade total, esconde-se um modelo concentrador. "A internet destruiu mais empregos do que criou", fulmina.

A tese está exposta no livro mais recente de Lanier, "Who Owns the Future?" (a quem pertence o futuro?), lançado em maio nos EUA e ainda inédito no Brasil. Não é pouco o barulho que causou.

Com seus longos dreadlocks e gosto por música da Antiguidade, Lanier passaria facilmente por mais um freak californiano adepto de ideias exóticas.

Na verdade, ele é um dos maiores expoentes da internet. Também foi um dos criadores da realidade virtual.

No Vale do Silício (região da Califórnia que concentra os gigantes da web), já fez de tudo. Hoje, trabalha em uma divisão de vanguarda na Microsoft, onde estuda, entre outras coisas, a construção de elevadores para o espaço.

A encrenca da internet, na visão de Lanier, vem do perfil de seus criadores, nos anos 70 e 80. Com bom humor, diz que eram de dois naipes: "Ou maconheiros liberais, ou conservadores do tipo que usam rádios da faixa do cidadão para monitorar a polícia e escapar dela". Essas duas tribos, tão diferentes, coincidiam no seguinte: para ambas, "o anonimato era a coisa mais bacana".

Assim, criou-se intencionalmente uma web em que as informações vão se dissipando, como partículas perdidas em um universo em expansão. Ninguém sabe o que veio de onde, nem quem criou o quê. E a informação circula gratuitamente, também porque é "cool".

Bem, se ninguém quer pagar por nada on-line, é preciso criar um modo de fazer dinheiro. E aí, em busca de um caminho sustentável, a internet, tão "rebelde", adotou o modelo de negócios mais tradicional: vender anúncios.

Nessa hora, ninguém pode com gigantes como Google e Facebook. Lanier os chama de "servidores-sereias", pela capacidade irresistível de atrair usuários.

Quem vende o anúncio mais eficiente possível --e portanto pode cobrar muito por ele-- é quem sabe tudo sobre seu usuário. Ou porque rastreia toda a atividade on-line, como o Google; ou porque usa as informações fornecidas, voluntária e gratuitamente, pelo "internauta", como o Facebook.

Para processar essa quantidade colossal de dados, são necessários computadores muito poderosos. Que só portentos como Google, Facebook, Apple e Amazon podem comprar.

E assim se completa o modelo concentrador que Jaron Lanier combate. Bilhões de usuários fornecem informações e produzem conteúdo, sem cobrar, para os "servidores-sereias". Estes têm uma capacidade de processamento única, e transformam essas informações em trunfos para vender anúncios. Anúncios que vão atingir as mesmas pessoas que estão trabalhando de graça sem perceber.

É um modelo de tudo para uns poucos, e nada para muitos. Não forma uma classe média --só magnatas e proletários. Por isso, na visão de Lanier, não vai se sustentar.

Como alternativa, o autor apresenta uma solução polêmica: os micropagamentos. E dá o exemplo dos programas de tradução automática, como o Google Translate e o velho BabelFish.

São serviços prodigiosos. Fornecem traduções imediatas em dezenas de idiomas, mesmo os mais obscuros. Só que não funcionam por milagre. São abastecidos por traduções reais, feitas por seres humanos em algum lugar do passado.

Quando você pergunta ao Google Translate como se diz "quero comer um bife com batata frita" em polonês, o que ele faz é consultar um número astronômico de traduções "humanas" em seu banco de dados, e deduzir a resposta. No caso, "Chcę zjeść stek z frytkami".

Pelo modelo de Lanier, os seres humanos que, lá atrás, fizeram as traduções receberiam micropagamentos cada vez que seu trabalho fosse usado numa tradução on-line.

É um modelo complicado e utópico. Mesmo outros críticos da internet, como Evgeny Morozov, o atacaram violentamente (vale ler Morozov espinafrando Lanier: is.gd/EtiO2P).

Ainda que não se concorde com as propostas de Jaron Lanier, não dá para negar a clareza de suas análises. Que o livro saia logo no Brasil.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

O Elogio da Solidão



Por Paulo Nogueira
Do Diário do Centro do Mundo


O homem sábio basta a si mesmo, escreveu o filósofo grego Aristóteles. É um pensamento ao qual constantemente se agarram diversas escolas filosóficas ocidentais.

A solidão é um caminho para a sabedoria.

E no entanto vivemos num mundo em que a introspeção parece uma praga da qual todos fugimos.

A solidão como que embaraça e envergonha. Tente se lembrar de uma campanha publicitária baseada em alguém só. Ou de um filme americano em que o personagem na solidão não seja um atormentado.

As tradições orientais, do taoísmo ao hinduísmo, também sublinham a solidão como uma etapa indispensável para o autoconhecimento.

Na China e no Japão antigos, os homens poderosos se recolhiam à solidão monástica no final da vida em  busca da elevação espiritual.

Cícero resumiu isso assim: “Quem depende apenas de si mesmo e em si mesmo coloca tudo tem todas as condições de ser feliz”.

Arthur Schopenhauer, o grande pensador alemão do século 19, se deteve longamente neste tema, o da solidão.

No final de sua vida, morava em Frankfurt na companhia de Atma, seu cão poodle. Tinha poucos amigos e jamais se casou. Mais que pregar a reclusão, ele a praticou.

Os ecos de sua voz se ouvem em múltiplos lugares. Movimentos como o existencialismo e artistas como Tolstói, Proust e Wagner sofreram intensa influência da voz pessimista, ou simplesmente realista, de Schopenhauer. Todo homem digno, segundo ele, é retraído. “O que faz dos homens seres sociáveis é a sua incapacidade de suportar a solidão e, nesta, a si mesmos.”

As pessoas retraídas, numa cultura que supervaloriza a tagarelice vazia e a “desenvoltura” social, podem sentir-se diferentes das outras, e para pior.

Se lerem Schopenhauer, terão uma outra visão de si próprios, francamente mais positiva.

Numa obra já da maturidade, Aforismos para a Sabedoria de Vida (Martins Fontes), ele produziu reflexões memoráveis sobre a convivência entre as pessoas.

Não há doçura nessas reflexões, não há indulgência e nem modos polidos, mas uma agudeza mordaz que ao mesmo tempo incomoda e encanta.

“A chamada boa sociedade nos obriga a demonstrar uma paciência sem limites com qualquer insensatez, loucura, absurdo. Os méritos pessoais devem mendigar perdão ou se ocultar, pois a superioridade intelectual fere por sua mera existência. Eis por que a sociedade, chamada de boa, tem não só a desvantagem de pôr-nos em  contato com homens que não podemos amar nem louvar, mas também a de não  permitir que sejamos nós mesmos, de acordo com a nossa natureza. Antes, nos obriga a nos encolhermos ou a nos desfigurarmos. Discursos ou idéias espirituosas, na sociedade ordinária, são francamente odiados.”

Schopenhauer exagera? É possível. Ele tinha um estilo veemente de expor suas idéias.

Mas reflita com calma sobre a passagem acima. Tire o que possa parecer exagerado. Faz sentido ou não?

Você pode concordar com Schopenhauer ou discordar. Amá-lo ou odiá-lo. O que não dá é para não reconhecer a força colossal duradoura de seus pensamentos.


terça-feira, 23 de julho de 2013

Obras de arte saqueadas pelos nazistas são alvo de disputa entre herdeiros e museus

 Há anos a família do artista George Grosz luta para recuperar três peças do Museu de Arte Moderna de Nova York


Por Patricia Cohen
Tradução de Paulo Migliacci
Do New York Times



Foi apenas em 1998, quando 44 países, dentre os quais os Estados Unidos, assinaram um acordo histórico chamado "Príncipios de Washington sobre Arte Confiscada pelos Nazistas", que governos e museus de todo o mundo acataram formalmente a ideia de que tinham responsabilidade especial por reparar os danos causados pelo saque generalizado das obras de arte que eram propriedade dos judeus, nos anos do Terceiro Reich (1933-1945).

Agora, passados 15 anos, historiadores, especialistas jurídicos e organizações judaicas dizem que alguns museus norte-americanos recuaram de sua promessa de satisfazer reivindicações de recuperação relacionadas ao Holocausto e vêm recorrendo a táticas judiciais e outros mecanismos para impedir que sobreviventes do nazismo ou seus herdeiros busquem recuperar as obras.

Nos últimos anos, juízes rejeitaram diversos casos depois que museus alegaram que as reivindicações de recuperação haviam sido feitas fora do prazo. Os legisladores da Califórnia ficaram tão incomodados com um desses pedidos rejeitados que, em 2010, aprovaram uma lei que ajuda queixosos da era nazista e outros interessados a evitar problemas devido a prazos legais de prescrição.

Em alguns dos casos, museus como o Detroit Institute of Arts, o Toledo Museum of Art (em Ohio), o Museum of Fine Arts de Boston e o Solomon R. Guggenheim Museum, de Nova York, tentaram impedir processos judiciais de reivindicação recorrendo primeiro à Justiça e solicitando que os juízes decretassem que os museus eram legítimos proprietários das peças em questão.

Os críticos também acusam os museus de não seguir as próprias diretrizes, que os instam a oferecer informações de proveniência que ajudem as pessoas a traçar o histórico de uma obra de arte em disputa.

"A resposta dos museus foi realmente lamentável", disse Jonathan Petropoulos, ex-diretor de pesquisa para arte e propriedades culturais na Comissão de Consultoria Presidencial sobre Ativos do Holocausto, e mais tarde contratado por queixosos para realizar estudos sobre a história de peças contestadas. "Hoje, ficou muito difícil para um herdeiro levar adiante a sua reivindicação."

Reputação

A questão quanto à atitude dos museus sobre as reivindicações voltou recentemente a atrair atenção devido a uma série de artigos em publicações jurídicas, discussões em listas judiciais e decisões da Justiça nos Estados Unidos e no exterior. O que está em jogo nesse debate é o destino de obras de arte valiosas, a reputação de importantes instituições culturais e uma disputa sobre a capacidade do sistema judicial norte-americano para tratar das reivindicações.

Tanto a Associação dos Diretores de Museus de Arte norte-americanos quanto a Aliança Americana de Museus sustentam que seus membros sempre respeitam as normas éticas de responder "rápida e escrupulosamente" aos pedidos de restituição.

Christine Anagnos, diretora executiva da associação dos diretores de museus, diz que os membros da organização têm o compromisso de "resolver questões sobre a situação dos objetos em sua custódia". A maioria dos casos é resolvida por negociação antes que os queixosos se sintam forçados a recorrer à Justiça, ela diz.

Os dirigentes de museus também dizem que recorrem a táticas processuais como invocar prazos de prescrição apenas depois de pesquisar cuidadosamente uma reivindicação e determinar que ela é inválida.

Mas Stuart Eizenstat, ex-enviado especial do Departamento de Estado que negociou os Princípios de Washington, diz que os museus adotaram linha mais dura nos últimos sete anos ou pouco mais, em parte como resposta a vitórias judiciais de instituições de arte e devido à redução na pressão do governo.

"A essência dos Princípios de Washington pode ser resumida em uma sentença", ele diz. "Que as decisões do caso sejam tomadas por mérito e não com base em argumentos técnicos de defesa."

Ninguém contesta que, mesmo que haja bancos de dados que listam as peças de arte saqueadas, rastrear as obras de arte roubadas pelos nazistas de territórios ocupados, cujos históricos de proveniência em geral apresentam furos consideráveis, requer esforço e dinheiro.

Também é consenso que nem todas as reivindicações são válidas, o que requer que os diretores de museus respondam cautelosamente a fim de preservar suas coleções.

Simon Frankel, advogado do Museum of Fine Artes de Boston, menciona em recente artigo para uma publicação jurídica que, depois de 2010, quando o museu recorreu à Justiça para bloquear uma reivindicação de restituição de obra de arte roubada pelos nazistas, a instituição chegou a acordo com os herdeiros de dois negociantes de arte judeus e devolveu uma tapeçaria do século 14 a um museu de Trento, Itália.

Nenhum dos lados concorda quanto ao número de pessoas que abordaram museus norte-americanos buscando restituição de obras. A associação dos diretores de museus, que enfatiza que poucos casos chegaram aos tribunais, menciona duas dúzias nos quais instituições, dentre as quais o Detroit Institute of Arts, retornaram obras a herdeiros sem ir aos tribunais.

Circunstâncias nebulosas

Mas críticos da postura dos museus, dentre os quais o Projeto de Restituição de Arte do Holocausto, viram problemas em casos menos claros, nos quais falta documentação ou não se sabe se proprietários judeus cederam uma obra de arte por livre vontade ou foram forçados pelas autoridades nazistas a vendê-las por valores ínfimos.

Eizenstat está entre as pessoas que argumentam há muito que os tribunais não são o foro correto para resolver casos de restituição, e que para evitar litígios os Estados Unidos deveriam criar um conselho independente de mediação, como os que existem em diversos países europeus. No segundo trimestre deste ano, a divisão de Nova York da Associação Federal de Advogados dos Estados Unidos propôs uma resolução que criaria uma comissão norte-americana desse tipo.

Douglas Davidson, enviado especial do Departamento de Estado para questões referentes ao Holocausto, declarou em uma conferência em Haia em novembro que "alternativas ao litígio judicial são preferíveis", mas reconheceu que era improvável que uma comissão desse tipo seja constituída nos Estados Unidos. Um importante obstáculo é que, ao contrário da Europa, onde os museus em geral são estatais, a maioria dos museus norte-americanos é privada, o que torna difícil forçá-los a cumprir as decisões mediadas.

Esse tipo de órgão não necessariamente escapa a críticas, aliás. O Comitê de Restituições holandês, por exemplo, atraiu críticas no mês passado ao decidir que o interesse de dois museus em reter peças de seus acervos superava o dos herdeiros em tê-las restituídas.

Raymond Dowd, sócio do escritório de advocacia Dunnington, Bartholow & Miller, em Nova York, que costuma trabalhar em casos de restituição, queixa-se de que os museus muitas vezes revisam provas e decidem sozinhos se um caso é ou não válido. Em muitas ocasiões, os museus não oferecem aos queixosos acesso às suas pesquisas originais sobre a proveniência de uma obra, e não submetem os resultados a revisão profissional ou crítica acadêmica, acrescenta.

Ele menciona o caso de uma família que está buscando recuperar obras de arte que eram propriedade de Fritz Grunbaum, um popular artista vienense que morreu em um campo de concentração. Ele diz que dez museus norte-americanos, dentre os quais o Allen Memorial Art Museum, no Oberlin College, Ohio, têm obras de Egon Schiele que constavam de um inventário de propriedades preparado pelo governo alemão em 1938 depois que Grunbaum foi enviado a Dachau. Alguns dos museus não ofereceram informações completas sobre a proveniência das peças, ele diz, e o Allen não mencionava Grunbaum em sua pesquisa sobre a origem de um quadro de Schiele.

Andria Derstine, diretora do Allen, afirma em e-mail que o museu cooperou com os pedidos de informação de Dowd e que havia concluído, em investigação interna, que a reivindicação não tem mérito. O museu alterou seus registros online no mês passado para incluir a informação de que o quadro de Schiele pertenceu um dia a Grunbaum.

Há anos a família do artista George Grosz luta para recuperar três peças do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), alegando que foram sujeitas a venda forçada depois que Grosz fugiu dos nazistas em 1933.

Um juiz federal rejeitou os processos da família Grosz em 2011, mencionando o prazo legal de prescrição. Antes de o caso chegar ao tribunal federal, o museu contratou pesquisadores da Universidade Yale e o ex-secretário federal da Justiça Nicholas Katzenbach (morto em 2012) para revisar as provas. Katzenbach concluiu que Alfred Flechtheim, o negociante de arte judeu que administrava as peças de Grosz, tinha direito legal a elas e as vendeu sem compulsão. Mas os especialistas contratados pelos Grosz contestam o relatório e afirmam que Flechtheim foi forçado a fugir da Alemanha depois que a galeria de arte que ele dirigia em Düsseldorf foi "arianizada" em 1933 e dada a um membro do partido nazista.

Essa interpretação foi reafirmada em abril por uma decisão da comissão consultiva do governo alemão sobre arte saqueada, em um caso separado envolvendo o Ludwig Museum de Colônia. Embora haja "falta de provas concretas", a comissão concluiu que seria justo "presumir que Alfred Flechtheim foi forçado a vender o quadro em disputa porque foi vítima de perseguição".

Margaret Doyle, porta-voz do MoMA, declarou que o museu não tem interesse em reter peças sobre as quais não tenha direitos claros. "Depois de anos de pesquisa extensa", ela afirmou, "o que inclui numerosas conversações com o espólio de Grosz, ficou evidente que de fato tínhamos direito às peças de Grosz que constam de nossa coleção e portanto a obrigação junto ao público de defender nossa propriedade devidamente."

Mas Martin Grosz, 83, filho do pintor, cita uma carta que seu pai escreveu em 1953 depois de ver um dos seus quadros, "O Poeta Max Herrmann-Neisse", exibido no MoMA. "O Museu Moderno está expondo um quadro que me foi roubado (nada posso fazer contra isso). Eles o compraram de alguém que roubou a peça".

"Lembro-me do meu pai falando disso", diz Martin Grosz.

"Ele relutava muito em contestar ou se queixar, de qualquer maneira, do tratamento que recebesse de qualquer pessoa nos Estados Unidos", diz Grosz para explicar por que seu pai nunca lutou para recuperar o quadro.

Quando refugiados se queixavam, diz Martin Grosz, seu pai costumava responder que "vocês deveriam beijar o chão que estão pisando, porque eles nos receberam".


segunda-feira, 22 de julho de 2013

Invasão de privacidade


Por Luiz Felipe Pondé
Da Ilustrada


Quando Obama disse que ninguém pode viver com segurança e privacidade com 0% de inconveniência, pensei: Obama virou gente grande. Mas não foi assim que o mundo reagiu. Quase todo mundo ficou horrorizado, e eu, fiquei horrorizado com mais um show de infantilidade do mundo em que vivemos. É um mundo "teenager" mesmo.

E por que o Brasil seria vigiado? Talvez porque suspeita-se que o Brasil esteja na rota entre o dinheiro do crime internacional e terroristas. E a América Latina está à beira de uma virada socialista, só não sabe quem não quer ver. Corrupção, autoritarismo, gestão inepta da economia e populismo sempre foram paixões secretas do socialismo.

A CPI do "Obamagate" é um truque nacionalista (tipo Guerra das Malvinas) para desviar a atenção da nossa crise econômica, apesar de muitos brincarem de revolução enquanto a economia vai para o saco nas mãos de um governo que aumentou os gastos públicos com embaixadas em repúblicas das bananas, criação de ministérios inúteis e "investimento" na inadimplência como forma de ganhar votos.

A diferença entre um "teenager" (ainda que com PhD, PostDoc e livre-docência) e alguém que sofre para ser um pouco menos "teenager" é saber que o mundo não é preto e branco e que se você é responsável por muitas coisas, você nem sempre vive com luvas de pelica.

O mundo é uma terra abandonada pelos deuses, e temos que nos virar com o pouco que temos, a começar por uma espécie confusa como a nossa e que ainda acredita em borboletas azuis como salvação da vida.

Não é bonito o que o Obama fez. Mas todo mundo que tem as responsabilidades que o Obama tem faz coisas assim quando ocupa o lugar do Obama.

Por muito menos, vigiamos a geladeira para ver quantos iogurtes tem, os armários da cozinha para ver quantos sacos de açúcar tem, e as sacolas das empregadas para ver se elas não estão levando algum pacotinho de carne.

O mundo é um grande Big Brother, George Orwell acertou em cheio. A diferença é que nosso mundo não é uma ditadura pré-histórica como a do livro "1984", mas uma sociedade democrática que preserva direitos gays ao mesmo tempo que quer saber se eu e você estamos envolvidos num ataque a alguma embaixada no Mali ou que tipo de tênis e comida étnica curtimos.

Nada disso é bonito, apenas é assim. Para manter as coisas funcionando, pessoas tem que fazer coisas que não são muito bonitinhas. Eu sei que os inteligentinhos facilmente entram em surto, mas que vão brincar no parque, com segurança, de preferência.

As redes sociais, esse grande bacanal de narcisismo, são um prato cheio para sermos vigiados. Sites nos dão nosso perfil de consumo e nossa "linha da vida". Celulares nos avisam quando algo acontece em nossa conta e em nosso cartão de crédito, e isso tudo é muito "prático", não?

Este evento revela a óbvia violência à privacidade que as redes sociais significam. A ideia de que elas são uma ferramenta da democracia pode ser uma ideia também infantil.

Além de elas serem um elemento de alto risco com relação a linchamentos e violência espontânea, elas nos tornam vulneráveis de modo direto na medida em que estar "na rede" significa estar dependente de uma "teia" (de aranha) tecnológica de controle bastante vulnerável a tutela das empresas que nos oferecem a própria ferramenta. Por isso o nome é TI, tecnologias da informação.

Há muito se sabe que é mais fácil subornar um blogueiro do que um jornal gigantesco (o blogueiro é mais barato...). Agora fica mais claro ainda que a manipulação via redes sociais é muito maior do que via mídia "clássica".

Todo mundo sabe que não pode marcar encontros amorosos ilegítimos via e-mail ou mensagem de celular, como alguém fica escandalizado que a internet não seja segura? Parece papo de falsa virgem de 50 anos.

Em breve esqueceremos isso e continuaremos a postar fotos, falar bobagens, marcar revoluções no final de tarde e propor utopias que requentam a falida autogestão. E viajar para fazer compras em Miami com segurança e usando Visa.

Snowden, e seus 15 minutos, é mais um falso herói para falsos adultos.



sexta-feira, 19 de julho de 2013

De Volta para o Passado

Medo


Por Menalton Braff
Da Carta Capital

Um parente de meu vizinho aqui da esquerda recebeu uma visita indesejada numa noite qualquer do mês passado. Dois indivíduos armados pularam-lhe o muro e entraram pela porta da cozinha. Por isso, uma semana depois, ele, o meu vizinho aqui da esquerda, apareceu cá por casa (coisa que não fez durante os anos em que vizinhamos) para se despedir. Ele tinha o olhar apreensivo e irrequieto de quem vê uma ameaça debaixo de cada folha.  Estava de mudança para um condomínio fechado. Soube, também, que aderiu ao teletrabalho: não precisa mais sair de casa nem pra ganhar o pão-nosso-de-cada-dia.

Ontem parou aqui ao lado um destes caminhões que a gente chama de baú, porque carregam nossos móveis e nossos segredos. Logo depois uns nem sei quantos automóveis e congêneres. Foi um movimento de formigueiro. Camas e vasos, caixas de papelão lacradas, sei lá, toda esta bugiganga sem a qual uma casa não fica com a cara dos donos. Poucas horas depois, ouvi batidas das portas do caminhão-baú, para que não nos esqueçamos - de alguns automóveis e congêneres, e a curiosidade me mordeu: fui espiar. Os móveis já haviam sido engolidos pela casa e os segredos jamais nos serão revelados, pois se o forem deixarão de sê-lo.

Voltei para minha cadeira preguiçosa onde um livro me esperava com sisuda paciência. Mal sentei, o susto: dois homens faziam buracos em cima do muro, enfiavam nestes buracos pequenas hastes de ferro que chumbavam lá no alto com cimento. Uma operação rápida, verdadeira blitzkrieg, e aquilo me assustou um pouco. Nem me levantei, para perguntar irritado o que era que faziam ali, quase dentro do meu quintal.

- O patrão mandou eletrificar, respondeu-me o que já vinha trabalhando mais perto.

A resposta, primeiro, me deixou pasmo porque entendi, não sei por que livre associação, "eletrocutar". E realmente antes que caíssemos todos nós, eu na preguiça e o dia nas sombras, corriam quatro fios que se ligavam às hastes por cima do muro, que estava devidamente eletrocutado. Depois, mercê do que vira, caí novamente, mas desta vez caí do livro em cima de uma reflexão. De queda em queda fui percebendo que o homem não consegue andar em linha reta. Há de fazer sempre seus círculos. Alguns acreditam que a história se desenvolve em círculos; outros acreditam que se desenvolve em espiral, voltando sempre ao mesmo ponto, mas alguns furos acima. Seja como for, percebi que voltáramos à Idade Média.

O medo tomou conta de nossa civilização. O mesmo medo que assaltou os ingleses do século XV e que Thomas Morus descreve em sua Utopia. Depois de criar bandos imensos de miseráveis, a nobreza britânica resolveu enforcá-los porque se tornaram uma ameaça aos seus produtores. Reeve, em sua History of Law, conta que foram enforcados 70.000 nos últimos 14 anos do reinado de Henrique VIII. No Brasil, se tivéssemos de enforcar os ladrões, bem, isso já é outro assunto.

Estou convencido de que a história se desenvolve em espiral. As muralhas dos castelos medievais, hoje, foram transformadas em condomínios fechados ou naqueles quatro fiozinhos que vejo daqui passando por cima do muro aí do lado. E o trabalho em casa, dos mestres artesãos e seus aprendizes, não é mais distribuído por um mercador, mas por outro fio, o telefônico. Alguns furos acima.


quinta-feira, 18 de julho de 2013

Sequer esperaram Mandela morrer

Mandela e parte da família
Mandela e parte da família

Do site alemão DW

O contraste não poderia ser maior. Desde o início de julho, Nelson Mandela, de 94 anos, está na unidade de cuidados intensivos do hospital em Pretória e respira com a ajuda de aparelhos. Enquanto a nação assiste preocupada ao destino do Prémio Nobel sul-africano, a família luta entre si pelo local onde será sepultado.
Desta vez, o protagonista da história é Mandla Mandela, neto de Nelson Mandela. Ele é o descendente masculino mais velho da tradicional família AmaThembu, à qual os Mandelas pertencem.
Há dois anos, ele deixou - aparentemente com a bênção de seu avô, mas sem o consenso do restante da família - que os restos mortais de três filhos de Nelson Mandela fossem transferidos da sepultura da família em Qunu, onde Nelson Mandela passou grande parte da infância, para Mvezo, localidade a poucos quilômetros de distância onde o ícone da liberdade nasceu.

Parque temático sobre Mandela?

Mandla provavelmente esperava que a sua vila e ele próprio beneficiassem do grande nome da família. Há rumores de que Mandla queria construir uma espécie de “parque temático Mandela” em Mvezo e que mais tarde, como chefe da família Mandela, exigiria também os direitos sobre o túmulo de Nelson Mandela. Com isso, poderia atrair milhares de turistas e peregrinos a Mvezo.
Esta quarta-feira (03.07), a DW-África tentou perguntar a Mandla sobre os seus planos, mas a resposta foi negativa já na entrada de sua propriedade em Mvezo. No entanto, devido à repercussão do caso, esta quinta-feira (04.07) o neto de Mandela falou à imprensa e acusou parte da sua família de querer controlar a herança do seu avô.
“O desejo do meu avô permanece um segredo”, declarou, acrescentando ter recebido instruções da tia para remover os restos e enterrá-los num local secreto em Qunu, onde ela está a preparar um túmulo para Nelson Mandela. “Porque esta instrução não veio do meu avô, eu não a segui. Trouxe os restos temporariamente para Mvezo até que saibamos quais são os desejos do meu avô ou da sua esposa, Graça Machel”, acrescentou.
Na semana passada, a filha mais velha do ex-presidente da África do Sul, Makaziwe Mandela, em nome da família, processou Mandla Mandela pela transferência dos corpos de Qunu para Mvezo. Esta quarta-feira, um tribunal decidiu que a sua atitude foi ilegal e que os restos mortais dos Mandela devem ser novamente enterrados na sepultura da família, em Qunu.

Batalha pelo legado de Mandela

Essas tensões não terminarão facilmente. Mas estou impressionado com a forma e a frequência com a qual a família se encontra para falar sobre o assunto. Porque se eles não fazem isso, irão ofender Madiba de uma forma ou de outra”, afirmou Bantu Holomisa, um amigo próximo dos Mandela, após uma reunião de família realizada no início da semana.
Em abril, Makaziwe e Zenani, filhas de Madiba – nome pelo qual Mandela é chamado pelos sul-africanos - tentaram destituir a direção de duas empresas do seu pai, ambas criadas para as crianças de Mandela. As empresas gerem a receita da marca do nome da família que as irmãs também querem garantir para si com uma ação judicial.
“Na verdade, é uma batalha pelo legado de Mandela e os seus bens”, considera Sabelo Mavikinduku Ngwenya, analista político e advogado em Joanesburgo. “É uma estratégia daquela parte da família que se sente mais fraca. Eles estão a tentar acertar a autoridade de cada um, antes da partida de Mandela”, esclarece.
O processo pelo património continua e é dirigido contra três dos mais velhos e leais companheiros de Nelson Mandela, que dirigem as empresas. No próximo dia 18 de julho, o vencedor do Prémio Nobel completa 95 anos. Uma nação inteira espera poder comemorar este dia com ele, em plena consciência e sem disputas familiares.


quarta-feira, 17 de julho de 2013

A borracha cega mas não cala

Sergio Silva
O fotógrafo Sergio, vítima da truculência da Polícia Militar


Da Carta Capital 
Por Felipe Rousselet
     
Enquanto cobria um dos protestos que reivindicava a revogação do aumento das tarifas do transporte público em São Paulo, no dia 13 de junho, Sérgio teve seu olho esquerdo atingido por um disparo de bala de borracha. O fotógrafo foi socorrido por um professor que participava do protesto. Sérgio corre o risco de perder a visão do olho esquerdo, o que compromete o exercício da sua profissão.

Em vídeo produzido e divulgado pela Campanha pela Regulamentação dos Armamentos de Baixa Letalidade, Sérgio defende a não utilização de armas de borracha, e outros armamentos considerados de “baixa letalidade”, durante manifestações.

“Essas armas não vão trazer nenhum bem para a sociedade. Não vão trazer nenhum tipo de paz e não vão acalmar as pessoas. O resultado é esse que aconteceu comigo. Uma possível cegueira. Um trauma para o resto da vida. Uma família prejudicada. Eu sei a dor que eu passei naquela noite. É uma dor que eu desejo que o policial que me acertou nunca sinta na vida dele. É uma dor insuportável. É vontade de morrer ali para não sentir mais a dor”, declarou o fotógrafo.

Veja a entrevista com o fotógrafo Sérgio Silva clicando aqui.



terça-feira, 16 de julho de 2013

Agora existe, mas antes apareceu em um livro

Hatsune Miku, Holograma 3D popstar no Japão




Por Viktória Uchakova 
Da Gazeta Russa


Muitas vezes, escritores manifestam-se como profetas, “inventando” nas páginas que escrevem algo que ganhará vida mais tarde.

A Gazeta Russa folheou alguns livros de autores russos de ficção científica para encontrar alguns exemplos.

Roupa de mergulhador

O romance “O Homem Anfíbio”, de Aleksandr Beliáev, foi publicado em 1928. Conta a história de um jovem chamado Ikhtiandro, que, na infância, teve implantadas guelras de tubarão.

Ikhtiandro passava muito tempo no mar usando uma roupa fina e justa, bem como pés de pato, luvas e óculos de lentes grossas. Hoje em dia, este é um equipamento usado por quem pratica mergulho ou caça submarina.

As modernas roupas de mergulhador, feitas de neoprene, mantêm a temperatura do corpo e assemelham-se a uma segunda pele. Começaram a ser fabricadas nos anos 1950, nos EUA.

Jornal eletrônico

O gadget para a leitura de jornais eletrônicos foi descrito pelo ficcionista soviético Kir Bulitchov em 1978. Na sua novela “Cem Anos à Frente”, ele descreve um dispositivo parecido com o smartphone ou o tablet, a que ele chamava jornal.

Bastava a personagem do livro carregar numa caixinha preta posicionada lateralmente e logo sobressaía um tela a cores, onde passavam notícias sobre um festival na Lua ou debates na ONU.

Apesar de, nos anos 1970, da ideia dos livros eletrônicos já não causar espanto, o primeiro dispositivo comparado aos de hoje para a leitura de textos na versão eletrônica surgiu apenas em 1992.

Biblioteca digital

Os vídeos e audiolivros a que hoje estamos tão habituados afirmaram-se uma descoberta fascinante para as personagens de “Aelita”, um romance escrito em 1923 por Aleksêi Tolstói. Reza a história que dois habitantes da Terra haviam encontrado, em Marte, uma cidade destruída com a sua biblioteca preservada.

Ali se depararam não só com volumes normais, em papel, mas também com uma tela onde viram passar um vídeo de curta duração. O engenheiro Los, um dos protagonistas, surpreendeu-se com objetos parecidos com cartões de memória e um livro que emitia uma bela música.

Holograma

Ivan Efremov, no conto “A Sombra do Passado”, publicado em 1945, descreveu um fenômeno que o físico húngaro Dennis Gabor viria a descobrir e a batizar de holograma, passados dois anos.

Os protagonistas do conto eram paleontologistas, os quais deram com um tiranossauro numa camada de resina petrificada. Em 1971, Gabor recebeu o Prêmio Nobel por ter inventado o método holográfico. A obtenção de uma imagem em três dimensões através de raios de luz interessou Gabor quando ele trabalhava no aperfeiçoamento do microscópio eletrônico.

Alimentos de petróleo

Em “Nós”, romance de Evguêni Zamiátin lançado em 1920, a humanidade começou a produzir alimentos de petróleo, o que resolveu de uma vez para sempre o problema da fome. Num mundo em que já não havia raças, nomes, modas, nem vida pessoal, todos tinham direito aos seus cubos de derivados de petróleo.

A partir dos anos 1950, a síntese microbiológica com base em hidrocarbonetos de petróleo começou a ser empregada na fabricação de proteínas, vitaminas e antibióticos.

Energia nuclear

Aleksandr Bogdanov descreveu um aparelho atômico interplanetário em 1908 no romance “A Estrela Vermelha”.

A nave espacial marciana “eteronef”, ou seja, “nave para viajar no éter”, feita de alumínio e vidro, tinha forma oval e deslocava-se a uma velocidade de até aos 50 km/seg.

Elementos de uma substância radioativa dissociavam-se nos motores, e a energia assim libertada impulsionava a nave.

Em 1932, o inglês James Chadwick demonstrou a existência do nêutron, alargando assim os horizontes da física nuclear, descoberta que lhe valeu o Prêmio Nobel em 1935.


segunda-feira, 15 de julho de 2013

Meu Rembrandt favorito (que não era um Rembrandt)



Por Oziella Inocêncio

A primeira vez que vi uma reprodução de um quadro de Rembrandt van Rijn foi em uma biblioteca da cidade onde morava, Alagoa Grande (PB). Na verdade buscava mais informações sobre Leonardo da Vinci, para um trabalho de História proposto pelo Centro de Treinamento, escola estadual onde fazia a 5ª série. O livro era gigante e havia muitos pintores lá, mas uma imagem havia especialmente chamado a minha atenção, "O Homem com o Capacete de Ouro". Lembrei de imediato do meu avô, o que foi inusitado porque ele morreu quando eu tinha dois anos de idade  e sua lembrança física não existia para mim. Fato é que embora tenha visto algumas fotos - e não, ele não se parece com o retratado - aquele gesto evocativo e circunspecto do homem idoso olhando pensativamente para baixo, com um rosto austero, plácido e forte - fez com que de algum modo rememorasse a figura dele, que permaneceu como uma referência constante para a minha família quando se trata de trabalho, responsabilidade, perseverança. Olhar aquele retrato e pensar "se eu fosse desenhar meu avô, desenharia ele assim", fez com que jamais esquecesse o quadro e o autor. Começou aí meu gosto pela pintura.

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Mais tarde, li algumas biografias e livros acerca da obra de Rembrandt e descobri que há controvérsias acerca da autoria do quadro "O Homem com o Capacete de Ouro". Em 1985, um historiador de arte e especialista em pinturas holandesas, chamado Jan Kelch, disse que o retrato provavelmente foi pintado em 1650 por um dos alunos do mestre holandês, o que, é óbvio, não diminui em nada a qualidade magistral do trabalho. De acordo com Kelch, a tela foi pintada com camadas muito espessas, um método que Rembrandt jamais usou. A essa altura, ademais, isso também não me importou muito, afinal um outro aspecto, desta feita pessoal, já havia me encantado mais que qualquer coisa na obra artista. 
A história é famosa. Reza a lenda que em 1642, Rembrandt entregou uma obra que pintara sob encomenda. Era a chamada "A Ronda Noturna" (que, hoje se sabe, não era ronda nem noturna*). O cliente a rejeitou, acusando o artista de "não ter pintado seu retrato", de ter representado "o cenário de uma ópera bufa" e de ter cobrado um preço "muito alto". Nos debates que se seguiram, o pintor foi enfim acusado de "pintar só o que queria". 
Especialistas em Rembrandt reforçam a ideia de que ele fazia do ofício de pintar não apenas o que lhe pagavam, mas primava pelo conjunto, pela correção estética para além do que lhe rendia a pintura. Noutras palavras: não era adepto da mercantilização da arte tão em voga em seu tempo e também nos dias de hoje. O dinheiro importava sim, mas a harmonia da obra igualmente. Por essa conduta em relação a sua arte, talvez Rembrandt van Rijn tenha pagado um alto preço: morreu na miséria.  

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O pintor completaria seu 407º aniversário nesta segunda-feira (15). Nascido em 1606, Rembrandt é um aclamado artista barroco e autor de obras conhecidas, a exemplo de "O retorno do filho pródigo" e "Jacó abençoa os filhos de José". Ele é lembrado pelo contraste entre o claro e escuro em seus quadros, sendo conhecido como o mestre das luzes e sombras. A pintura de Rembrandt tem três temas recorrentes: a temática sacra, os retratos grupais e os autorretratos.




* "A Ronda Noturna" recebeu este nome devido a um equívoco de historiadores. Não se trata de uma cena noturna, mas sim vespertina. A obscuridade é devida ao escurecimento do verniz que foi aplicado sobre a tela. É um retrato grupal e apresenta a partida da companhia do capitão Cocq para recepcionar a rainha Maria de Médici, da França. O título correto da pintura é "A companhia de milícia do capitão Frans Banning Cocq e do Tenente Willen van Ruytenburch".



sexta-feira, 12 de julho de 2013

A pós-Lolita



Por Luiz Felipe Pondé
Da Ilustrada


A sensualidade pode ser mortal. Em tempos de vida higiênica como o tempo em que vivemos, talvez, em algum momento, a sensualidade venha a ser mesmo posta fora da lei.

Sim, a sensualidade pode ser mortal, basta ler "Lolita", de Vladimir Nabokov. Hoje, o livro seria proibido, mas, claro, em nome das boas intenções. Agora acreditamos que inventamos uma nova forma de censura (antes a censura tinha uma motivação diferente, creem os semiletrados): "A censura em nome do bem".

O novo filme do diretor coreano Park Chan-wook, com Mia Wasikowska (no papel de Índia, uma Lolita que completa 18 anos) e Nicole Kidman (sua atormentada mãe), é uma pérola de estetização do lado sombrio do ser humano.

Mas, não se trata de uma estética suja (até o sangue é de um vermelho encantador), por isso a sofisticação nele nos lembra que mesmo que não sejamos seres "do bem", ainda somos seres belos.

Na filosofia, abordagens como essa são chamadas de "estetização da moral": a estética seria mais essencial do que a ética. Nietzsche é comumente acusado desta forma sofisticada de pecado.

Acima eu falava da beleza do vermelho sangue no filme. Aliás, o sangue na narrativa acompanha a iniciação de nossa heroína e poderia muito bem ser o sangue de sua primeira menstruação escorrendo pelas pernas ou da perda de sua virgindade manchando o lençol.

Em alguns momentos, lembramos dos bons momentos de David Lynch na sua série cult de TV dos anos 80, "Twin Peaks". A saia xadrez da colegial mortal de "Twin Peaks" é trocada pelo vestido "de menina" da estranha Índia, a filha pós-Lolita de Kidman no filme de Park Chan-wook.

Às vezes, esquecemos que a sensualidade feminina pode simplesmente brotar do chão, como uma força esmagadora da natureza.

"Segredos de Sangue" discute o eterno dilema do que em nós é herdado e do que em nós é "cultivado", ou, dito de outra forma, do que em nós seria passível de ser transformado ou criado pela educação ou pelo meio a nossa volta. Em inglês, o dilema "nature x nurture".

No filme, os "segredos" do sangue de Índia (que não vou contar, pode ficar tranquilo) são o que nela seria herdado. E assim, uma forma de destino do qual ela não escapará.

Sou daquele tipo de pessoa que acredita que temperamento é destino. Vejo isso todo dia em sala de aula. Mas, para muitos dos meus colegas, dizer isso seria ir contra "nosso mercado", a educação, infelizmente umas das áreas mais devastadas por bobagens pseudocientíficas e pseudofilosóficas no início deste século 21.

O filme se abre com a morte inesperada do pai de Índia, "seu grande amor". Ela detesta a mãe. Não gosta de ser tocada e aprendeu com o pai as delícias da caça. No momento do enterro do pai (morto num estranho acidente de carro), surge seu desconhecido tio Charlie, irmão mais novo de seu pai. O filme narra as aventuras de Índia descobrindo sua sexualidade e muito mais.

Mas sua sexualidade, "herdada" de alguma forma pelo tronco paterno, é a "sexualidade de Freud", não a sexualidade que hoje escorre pelas paredes do mundo, essa cadeia em céu aberto (Kafka ficaria espantado como as coisas pioraram de sua época para cá...). A sexualidade em voga hoje é uma sexualidade que pode ser posta a serviço da "boa política". A "biopolítica da libertação" nos deixará todos brochas.

O que é a "sexualidade de Freud"? Sim, devemos cuidar para não esquecermos o Freud enterrado em conceitos pseudofreudianos como "pulsão política".

O homem freudiano é uma pedra no sapato dos reformadores contemporâneos, e, nesse sentido, Freud terá que ser "esquecido" mesmo por aqueles que se dizem freudianos, mas que não suportam o que Freud nos ensinou: que a sexualidade é um abismo. Em uns, mais do que nos outros.

Como dizia o psicanalista francês Michel de Certeau, falando de mística, "um lugar para se perder".

O "homem freudiano" só civiliza às custas de muita dor. E não há do outro lado uma civilização curada de sua raiz sombria, como querem os freudianos das luzes.

Claro, nem todos somos Índias ou defloramos Índias. Mas ela continua bela.



quinta-feira, 11 de julho de 2013

Confúcio sabia das coisas



Por Guilherme Bryan e Simone Alauk
Da Revista  da Cultura

A religião xintoísta nasceu junto com a história do Japão. As escrituras sagradas, conhecidas como Kojiki, apresentam relatos diversos sobre o surgimento do país. Seus membros explicam que a divindade pode ter forma humana, animal, ou de qualquer elemento composto da natureza, e que a preservação do conhecimento se mantém como uma maneira de respeitar os antepassados. “Toda a sabedoria que seus descendentes possuem vem do Kojiki, que ensina a respeitar tudo e todos”, comenta o ministro xintoísta Tenso Osaka. Essa religião mistura crenças de diversos outros povos orientais, tendo como maior influência o budismo, cujos preceitos reforçam a necessidade de vivenciar o presente, em vez de olhar para o passado ou para o futuro apenas. No entanto, de acordo com ensinamentos atribuídos a Siddhartha Gautama, o Buda, valer-se da memória de modo produtivo e criativo seria uma tática extremamente importante para viver de modo mais saudável.

“O principal objetivo do budismo é fazer com que a pessoa, por meio da prática da meditação, da ética e do desenvolvimento da sabedoria, vá, pouco a pouco, entrando em contato com as atividades mentais dela, uma das quais é a memória. Devido a uma série de padrões carregados de elementos não saudáveis, como a cobiça, o ódio e a ignorância, o ser humano tende a repetir certos hábitos mentais e corporais, além de criar ações que trarão ainda mais sofrimentos. Então, todo o treinamento ensinado por Buda é no sentido de ganhar cada vez mais concentração e plena atenção para compreender as tendências mentais que surgem, abandonando as que não são saudáveis e fortalecendo as que são”, explica Arthur Shaker, doutor em Antropologia pela Unicamp e fundador do centro de meditação budista Theravada, Casa de Dharma, em São Paulo. “Uma tendência comum à nossa mente é a dispersão, a distração. Está nesse caso fugir do momento presente e se distrair com o passado ou o futuro. Desse modo, o passado pode se tornar presente na mente e desencadear uma série de estados emocionais, como lembrar um trauma e reviver um sentimento doloroso, ou deixar de poder experimentar o que realmente acontece no presente”, salienta.

A própria noção de história também é encarada de modo diferente pelo budismo, com relação ao mundo ocidental. “Na visão não só do budismo, mas também do hinduísmo, o universo tem ciclos de surgimento, desenvolvimento e desaparecimento. Já houve incontáveis universos que surgiram e desapareceram, com diversas humanidades que não temos nem como acessar. Então, a memória da humanidade serve para termos um quadro mais amplo de como ela lidava, dentro de suas condições, com o principal assunto do budismo, que é a questão do sofrimento humano. Desse modo, usar o passado pode ser interessante para rever, compreender e superar o sofrimento, mas também pode virar uma prisão, em que não se vive o momento presente”, acrescenta Shaker.

A questão da vivificação do presente também é destacada por Jisho Handa, monge do Templo Busshinji, em São Paulo. “Do ponto de vista do budismo, principalmente zen, tudo o que se refere a passado ou futuro é ilusão. O presente é que o há de mais importante a ser vivenciado. Entretanto, a memória é algo que existe no nosso mundo, mesmo que ilusório, chamado samsara, ou seja, o mundo fenomênico. A questão então é saber como lidar com ela. Mesmo considerando o passado uma ilusão, é preciso se relacionar com ele como um filme passando na nossa mente, e não se apegar, somente assistir”, garante, destacando que existem cerimônias devotadas aos ancestrais para se aprender a trabalhar melhor as lembranças.

O hinduísmo, em sua primeira fase, cultuava deuses tribais como Dyaus (“deus do céu ou deus supremo”). Após algumas adaptações vindas do budismo, surgiu o hinduísmo bramânico, que cultuava a trindade composta por Brahma (“divindade da alma universal”), Vishnu (“divindade preservadora”) e Shiva (“divindade destruidora”). “Cada tradição tem sua forma única de lidar com a memória. Algumas levam isso muito à risca, mas a visão hinduísta é bem diferente da ocidental. Memória não é necessariamente ter um museu e guardar relíquias, mas, sim, registrar ou ter registrado na mente e em livros o mais importante, o significado”, explica Erick Schulz, vice-presidente da Associação Brasileira de Ayurveda.

Ou seja, as recordações funcionam como um livro de capítulos e significados, diferindo, assim, do sentido de memória ocidental. “Antes dos livros, tudo era memorizado e passado de pessoa a pessoa; durante milhares de anos foi assim e continua sendo. Por exemplo, as crianças vão aos Ashrans (centro de estudos) ainda muito jovens e ficam lá estudando textos e tendo aulas orais durante um período que vai de dez a 30 anos. Alguns alunos chegam a decorar até 30 mil versos”, comenta Schulz.

Como usar e registrar as memórias também foram preocupações do pensador e filósofo chinês Confúcio, que viveu durante o Período das Primaveras e Outonos, e desenvolveu o denominado confucionismo, que sublinhava questões como a moral, a justiça e a sinceridade. “Confúcio nunca escreveu nada. Então, o que temos são tradições confucianas, que absorvem aquilo que foi ouvido pelos discípulos quando em aula com ele. Aí já expõe um elemento importante daquilo que ele pretende com os ensinamentos. Ele acredita que é fundamental a preservação do que se ouve e do que se fala por meio da memória, mesmo com os problemas de recepção, esquecimento e imprecisão”, analisa Jézio Gutierre, destacando a máxima de que aqueles que não aprenderam com o passado estão condenados a repeti-lo no presente.




quarta-feira, 10 de julho de 2013

"Mexo só um dedo, mas virei escritora", conta Luciana Scotti

Antes e depois do AVC: Luciana Scotti conta como decidiu transformar sua vida e continuar lutando por seus sonhos


Da Revista Marie Claire
Texto de Luciana Scotti
Foto: Arquivo Pessoal

Tenho duas vidas. Não consigo explicar de outra forma o que vivo. Eu era uma jovem bastante normal. Pertencia a uma família de classe média e era uma garota bonita. Aos 17 anos, passei em cinco vestibulares e comecei a cursar Farmácia e Bioquímica na Universidade de São Paulo (USP). No fim do primeiro ano da faculdade, ganhei minha primeira paixão: um carro vermelho, lindo!Uma surpresa inesquecível, presente de aniversário do meu pai, que se tornou meu companheiro no início dos anos 90. Nesse mesmo período, conheci o Lucas, um judeu loirinho e simpático, formado em engenharia pela USP. Minhas amigas comentavam a diferença entre nós. Lucas era tido como feio e nerd, eu era popular. Mas, não ligava.
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Ele foi um grande amor, mas assim como água e óleo não se misturam, percebi logo que com judeus e católicos o mesmo pode acontecer. Ficamos três anos juntos, mas os pais do Lucas nunca me aceitaram. Nosso amor, entretanto, parecia maior que isso. Em 1991, passei a tomar pílulas anticoncepcionais com a orientação da minha médica ginecologista. Falei a ela que eu era fumante, mas naquele momento, não percebemos o risco que eu corria.

Eu era uma jovem dinâmica e ativa. No mesmo ano, resolvi começar a trabalhar. Transferi o curso de farmácia para o período noturno e arrumei um emprego em uma empresa de higiene bucal, em que fui efetivada. Todos os dias, cruzava a cidade com meu carro para trabalhar e estudar. E ainda arrumava tempo para correr pela USP nos fins de tarde e fazer aulas de ginástica aeróbica e musculação. Aos fins de semana, eu fazia passeios românticos com meu namorado ou saía com minha turma de amigos. Gostava de dançar, viajar, beber, conversar, fazia tudo o que me dava vontade.

Em meados de 1993, comecei a ter dores de cabeça que, apesar de desaparecerem com aspirinas, estavam ficando cada vez mais frequentes. Decidi marcar uma consulta com a ginecologista, queixei-me das dores, mas ela disse que não era nada grave. Passei um ano com o problema. E, num domingo, dia 1 de maio de 1994, vi o Ayrton Senna morrer. A data me marcou demais. Não que eu imaginasse que, no dia seguinte, seria eu a próxima vítima – de um tipo diferente de morte, mas morte. Na segunda, acordei, me vesti e fui trabalhar. Trabalhei o dia todo, não senti nada de anormal. No fim da tarde, fui buscar meu irmão na USP, para irmos para casa. Quando chegamos, me apressei em ir até o banheiro para escovar os dentes. Na sequência, iria ao shopping. Mas antes de sair do banheiro, senti uma forte tontura e gritei por socorro.

Quase imediatamente entrei em convulsão. É uma sensação horrível! Tentava controlar meus movimentos, mas os músculos não paravam de tremer. Minha família ficou apavorada. Meu pai massageava meu coração. Meu irmão cuidava para eu não morder a língua, colocando uma escova de dente na minha boca. Enquanto isso, minha mãe ligava para o resgate. Alguns vizinhos ouviram a confusão e vieram ajudar. Me pegaram no colo e me colocaram num carro. São mais que vizinhos, são queridos amigos de quem até hoje recebo muito carinho e apoio. Quase não conseguia falar e, naquela confusão, não sabia se minha família viria atrás do carro ou não. Fui para o pronto-socorro Municipal de Santana. No caminho, pedia calma com a mão, não tinha a mínima ideia do que estava por vir.
Agora entendo porque, em um pronto-socorro municipal, cuja fila é enorme, fui atendida logo. Colocaram-me em uma maca e levaram-me direto para a consulta. Na sala do médico, havia algumas enfermeiras que delicadamente tiraram meu relógio, gargantilha e brincos. Precisavam ser delicadas para eu não me machucar, pois meu corpo trepidava. Minha família me achou no pronto-socorro, depois de percorrer todos os hospitais da região. Ao lado da maca, minha mãe segurava a minha mão, e eu me perguntava quem seria aquela pessoa. De olhos fechados e com muito esforço, só conseguia falar mamãe e papai. Ironicamente, as primeiras palavras que aprendi seriam as últimas que eu diria.

Aos poucos ia chegando a hora da metamorfose. Inconscientemente, eu dava adeus aos meus longos cabelos aloirados, aos meus passos, à minha voz (que nunca mais ninguém ouvirá), aos movimentos, às danças nas festas, ao meu querido carrinho e a mais um milhão de coisas. Fui transferida de ambulância para um hospital particular. Apenas meu pai me auxiliava, com um balão de oxigênio. Era difícil de respirar.

No novo hospital, um enfermeiro me pôs em uma maca. Levaram-me para um quarto. Tiraram minha roupa e me vestiram com um daqueles camisolões de hospital. A convulsão continuava. Lembro-me dos médicos ficarem discutindo o diagnóstico em volta da cama. Fui ficando atordoada, senti um mal-estar repentino e vomitei.Uma enfermeira que me acompanhava falou para o colega dela: “Ela não passa desta noite”. Depois dessa frase, já não lembro de nada. Entrei em coma. Durante esse período, não tinha consciência de onde estava, tudo parecia um sonho. Acordei dois meses depois, em outro hospital, careca, muda, tetraplégica, com sonda nasogástrica, fraldas e cicatrizes. Quando saí do coma, achei que tudo só podia ser um pesadelo. Longo e cheio de detalhes, mas um pesadelo. Podia jurar que não tinha estado em coma, mas na minha cama, dormindo.


O pesadelo

A verdade, no entanto, era outra. Sofri um Acidente Vascular Cerebral e minha nova realidade era aquela: feia, muda e sem movimentos. Lembrava da última vez que tinha me visto no espelho antes do AVC e sentia desespero. Saudade, tristeza, abandono... senti tudo, principalmente revolta e ódio. A combinação do cigarro com anticoncepcional aumenta muito o risco de a mulher sofrer um AVC e eu e minha ginecologista deveríamos ter percebido isso. Alguns especialistas me disseram que a pílula foi 100% responsável pela trombose que levou ao rompimento de uma das veias do meu cérebro. Outros acham que não foi o fator principal. Porém, a mistura da pílula com o cigarro deveria ter sido evitada e eu deveria ter dado atenção às dores de cabeça que não passavam. Se tivesse agido de outra forma, hoje estaria andando.

Depois da Trombose Cerebral e de ter ficado tetraplégica, vivi três anos sobre uma cama hospitalar. Durante esse período, observei quase todo mundo se afastando de mim. Lentamente, fui esquecida pelos meus 150 “queridos amigos”. Cada um que me deixou, me preencheu com uma mágoa eterna. O Lucas foi um deles. Ele foi diminuindo a frequência das visitas, até parar de me ver. Chorei, revivi todo meu passado, procurei culpas e culpados e pensei: morri, acabou tudo!

O que eu não sabia é que, na verdade, estava começando uma segunda vida. Não tinha saída. Eu poderia chorar a vida inteira pelo romance acabado e pela tetraplegia ou parar de chorar e começar a viver. Optei por viver: aos trancos, aos farrapos, aos pedaços. Mas o tempo tem uma força estranha, e com ele comecei a escrever meus pensamentos amargurados com o movimento de um único dedo, o médio da mão esquerda. Em um notebook, digitava no meu colo, na cama. No começo, cheguei a passar um dia para completar uma página. Depois de quase um ano de esforço, terminei meu primeiro livro: Sem Asas ao Amanhecer. Hoje, ele está na décima primeira edição. Mas não me contentei. Escrevi outro chamado A Doce Sinfonia de Seu Silêncio.

Como sou muito ativa e odeio ficar parada, voltei a estudar. Fiz mestrado e publiquei um livro científico sobre cosméticos. Em 2006, terminei o doutorado. Depois, fiz três anos de pós-doutorado, sempre na USP, e ganhei vários prêmios acadêmicos. Também aprendi sozinha inglês, italiano e espanhol. Há três anos me mudei para João Pessoa. Meu irmão passou em um concurso e começou a trabalhar na Universidade Federal daqui. Em pouco tempo, estávamos todos juntos. Logo procurei um modo de contribuir com a instituição. Estou no segundo ano de um novo pós-doutorado, já participei de mais de 30 congressos, tenho artigos publicados no exterior e sou revisora de revistas científicas.


O cotidiano

Me sustento com o dinheiro do meu trabalho e levo uma vida confortável. Contrato pessoas que me auxiliam nas tarefas diárias. Preciso de tudo: de um copo de água, de um banho, que me tirem e ponham na cama. É assim que vive uma mulher que mexe só um dedo. Uma vida nada fácil, mas é a única que eu tenho; e a vida não é como queremos, é como é. E, mesmo com essa limitação, me considero feliz. Amo o que faço. Uso estatística e química para analisar estruturas moleculares. Quando estou trabalhando, me sinto muito bem.

Durmo tarde, 23h, 24h, 1h. Dependendo do trabalho, acordo cedo, 6h ou 7h. E já coloco o biquíni! No meu prédio tem um espaço legal para tomar sol e eu aproveito o solzinho da manhã que é uma delícia. Tomo na minha cadeira-de-rodas “de sol”. Tenho três cadeiras:uma levinha, muito usada para banhos de sol, viagens e passeios em geral; uma mais alta e mais pesada, que uso para trabalhar no computador e uma motorizada, muito confortável. Depois do sol, tomo banho, vou para o computador e trabalho até a noite. Faço uma pausa para malhar e me alongar (montei uma miniacademia no meu quarto) e volto para o trabalho.

Adoro um churrasco com os amigos à beira da piscina ou passar o dia na praia, com cervejinha. Apesar da dependência física, tenho pensamentos e emoções próprias, como todo mundo. Às vezes, rola uma paquera no shopping ou em uma praia, mas o mais frequente é pela internet, porque a web é meu modo de fazer laços sociais. Ao mesmo tempo, desenvolvi a sensibilidade de entender nas entrelinhas e distinguir uma paquera de armadilhas. Se vejo que é sério, engato um namoro. Até noiva já fui duas vezes: por dois anos, do Mateus, e quase sete, do Fabrizio. Quando falo isso, as pessoas se perguntam sobre o sexo. É normal, já que não sou uma pessoa comum. Mas sou mulher e tenho relações como qualquer outra. Aprendi a dar e receber carinho e prazer.

Se você pensar que eu me comunicava piscando e hoje escrevo num teclado normal, acho que estou bem. Apesar dos meus limites físicos, produzo trabalhos de qualidade, reconhecidos e até invejados dentro da comunidade científica. Infelizmente, não posso prestar concurso na faculdade, porque não falo. Esse é meu sonho, ter um emprego na faculdade. Sei que não tenho condições de dar aulas, mas as faculdades deviam ter vagas para pesquisadores. É o meu sonho. Aprendi que nessa vida o que importa é ser feliz. Se eu encontro momentos prazerosos com minhas dificuldades, muita gente sã e cheia de dinheiro pode não encontrar. O que ontem era indispensável para mim, hoje é fútil. Ser feliz tornou-se ao mesmo tempo algo muito mais simples e complexo.