quarta-feira, 27 de março de 2013

Por que nossa tevê é tão ruim?


Por Paulo Nogueira
Do Diário do Centro do Mundo

E é anunciada a segunda temporada do seriado escandinavo The Bridge. Os ingleses ficam felizes. A série passa na tevê britânica com legendas. O fato: Bridge pegou. Saga, a detetive sueca, cabelos loiros sempre soltos, uma cicatriz no lábio que a torna ainda mais atraente, já rivaliza com Sarah Lund, de The Killing, outra série escandinava de sucesso internacional.

Antes que eu fale sobre a história, a pergunta essencial: por que no Brasil não fazemos nada que preste na televisão? Por que somos humilhados em qualidade até pela Escandinávia com seus recursos limitados?

Tenho minha tese: a estética da novela massacra a criatividade. Filmes e séries no Brasil têm uma semelhança irritante com as novelas da Globo. Mesmos atores, mesmos diretores, mesma limitação, mesma falta de surpresa e inovação.

O florescimento do cinema e da tv na Escandinávia está conectado ao grupo Dogma, um conjunto de cineastas iconoclastas e brilhantes entre os quais se destacava Lars von Trier, um dos últimos gênios da direção. The Bridge é um dos filhos do Dogma.

Nosso Dogma, lamentavelmente, é a novela das 9. Que não faz você pensar, e sim tomar cerveja. Me conta um amigo publicitário que em Avenida Brasil tudo era motivo para tomar cerveja, por causa do dinheiro colocado pela Ambev não em propaganda direta, mas no controvertido e perigoso ‘product placement’, o popular mercham. Nele, vc consome publicidade disfarçada no meio do conteúdo.

Quer dizer, os personagens da novela bebiam desmedidamente cerveja não porque tivessem propensão a alcoolismo, mas por conta de um contrato milionário firmado pela Globo. Na Inglaterra, bebidas alcoólicas são proibidas de aparecer subliminarmente, para que não seja estimulado um hábito ruim para a saúde.
A história de The Bridge gira em torno de um cadáver descoberto na ponte que liga Suécia e Dinamarca. Dois, na verdade. O corpo parece ter sido serrado no meio. Mas a perícia logo descobre que a parte de cima é de uma mulher e a de baixo de outra.

Logo aparece Saga, absolutamente desinibida, e domina a trama. Quando quer sexo, ela vai a um bar e escolhe um homem. Depois leva para seu apartamento. Saciada, volta ao trabalho de investigação e esquece o homem. O melhor diálogo da série é entre ela e seu parceiro de polícia.

“Que você fez ontem?”, ele pergunta.

“Sexo”, ela responde, com a naturalidade que teria se tivesse dito que foi visitar uma velha tia reumática.

As novelas brasileiras não emburrecem apenas o público. Também os diretores e atores ficam mais burros.

Tropa de Elite 1 poderia ser a semente de uma renovação. Mas não foi nada. A sequência já parecia uma paródia. Triunfou o espírito das novelas.

Maldição eterna a elas.

terça-feira, 26 de março de 2013

Fernando Henrique Cardoso e sua vaidade intelectual de pertencer a Academia Brasileira de Letras

Por Leandro Fortes
Da Carta Capital

Guardei, por 12 anos, em meio à minha papelada imunda de recortes de jornais e revistas velhas, numa caixa de papelão em frangalhos, um artigo de João Ubaldo Ribeiro datado de 25 de outubro de 1998, porque esperava justamente esse momento: a hora em que Fernando Henrique Cardoso, alijado da político e na iminência de cair no esquecimento público, se candidatasse a uma vaga na Academia Brasileira de Letras. O artigo, intitulado “Senhor Presidente”, foi escrito logo depois da vitória de FHC, no primeiro turno das eleições de 1998, graças ao Plano Real e à aprovação, no Congresso Nacional, da Emenda Constitucional da reeleição, conseguida à custa de um escandaloso esquema de compra de votos. O texto é pau puro e, surpreendentemente, foi escrito numa época em que a mídia nacional era, praticamente, uma assessoria de imprensa do consórcio PSDB/PFL. Não por outra razão, foi inicialmente censurado em “O Estado de S.Paulo”, para onde o cronista escrevia, embora o jornal tenha sido obrigado a publicá-lo, uma semana depois, para evitar se envolver em um escândalo de censura justo com um dos mais respeitados escritores do país. Num tempo de internet incipiente, a repercussão do artigo foi mínima, ficando restrita às redações e ao meio intelectual, de resto, também acovardado pela força do pensamento único imposto à sociedade pela imprensa e pelo governo de então.
 
Esse retalho jornalístico ficou comigo tanto tempo porque, no fundo, eu tinha certeza que a vaidade intelectual de FHC iria levá-lo, em algum momento, a pleitear uma vaga na ABL, como agora se noticia em notas discretas de colunas de jornal, certo de que se trata de uma confraria historicamente vulnerável a influências políticas, quando não à bajulação pura e simples, como qualquer um pode constatar, embora abrigue grandes escritores, como o próprio João Ubaldo Ribeiro. Contudo, lá também estão escribas do calibre de José Sarney e do cirurgião plástico Ivo Pitanguy. No passado, também circulavam entre os imortais o general Aurélio de Lira Tavares (codinome “Adelita), eleito em 1970, com o apoio do ditador Emílio Médici, e Roberto Marinho, das Organizações Globo. A presença de FHC, que pelo menos escreveu uns livros de sociologia não seria, portanto, um escândalo em si. O problema é o artigo de João Ubaldo.
 
No texto, o escritor baiano, entre outras considerações, refere-se assim a Fernando Henrique Cardoso: “(…) o senhor é um sociólogo medíocre, cujo livro O Modelo Político Brasileiro me pareceu um amontoado de obviedades que não fizeram, nem fazem, falta ao nosso pensamento sociológico”.
 
Mais adiante, relembra um dos piores momentos da vida de FHC: “(…) o senhor, que já passou pelo ridículo de sentar-se na cadeira do prefeito de São Paulo, na convicção de que já estava eleito, hoje pensa que é um político competente e, possivelmente, tem Maquiavel na cabeceira da cama. O senhor não é uma coisa nem outra, o buraco é bem mais embaixo”.
 
E por aí vai, até se lembrar, a certa altura do texto, que FHC, em algum momento da vida, poderia se interessar pela vida imortal da ABL. João Ubaldo, então, cospe uma fogueira de brasas para cima de Fernando Henrique: “(…) E, falando na Academia, me ocorre agora que o senhor venha a querer coroar sua carreira de glórias entrando para ela. Sou um pouco mais mocinho do que o senhor e não tenho nenhum poder, a não ser afetivo, sobre meus queridos confrades. Mas, se na ocasião eu tiver algum outro poder, o senhor só entra lá na minha vaga, com direito a meu lugar no mausoléu dos imortais”.
 
Eu posso estar errado, já se passou mais de uma década, a ira de João Ubaldo pode ter se perdido na poeira do tempo, mas a julgar pelo teor do imortal artigo do escritor e jornalista baiano, FHC vai ter que pensar duas vezes antes de se candidatar a uma vaga na ABL. Ou considerar o fato de que só vai entrar lá por cima do cadáver de João Ubaldo Ribeiro. A conferir.
 
Abaixo (e aqui, retirado do ótimo site Alma Carioca), o artigo completo, para quem quiser se deleitar:
 
Senhor Presidente – João Ubaldo Ribeiro
25 de outubro de 1998
 
Senhor Presidente,
 
Antes de mais nada, quero tornar a parabenizá-lo pela sua vitória estrondosa nas urnas. Eu não gostei do resultado, como, aliás, não gosto do senhor, embora afirme isto com respeito. Explicito este meu respeito em dois motivos, por ordem de importância. O primeiro deles é que, como qualquer semelhante nosso, inclusive os milhões de miseráveis que o senhor volta a presidir, o senhor merece intrinsecamente o meu respeito. O segundo motivo é que o senhor incorpora uma instituição basilar de nosso sistema político, que é a Presidência da República, e eu devo respeito a essa instituição e jamais a insultaria, fosse o senhor ou qualquer outro seu ocupante legítimo. Talvez o senhor nem leia o que agora escrevo e, certamente, estará se lixando para um besta de um assim chamado intelectual, mero autor de uns pares de livros e de uns milhares de crônicas que jamais lhe causarão mossa. Mas eu quero dar meu recadinho.
 
Respeito também o senhor porque sei que meu respeito, ainda que talvez seja relutante privadamente, me é retribuído e não o faria abdicar de alguns compromissos com que, justiça seja feita, o senhor há mantido em sua vida pública – o mais importante dos quais é com a liberdade de expressão e opinião. O senhor, contudo, em quem antes votei, me traiu, assim como traiu muitos outros como eu. Ainda que obscuramente, sou do mesmo ramo profissional que o senhor, pois ensinei ciência política em universidades da Bahia e sei que o senhor é um sociólogo medíocre, cujo livro O Modelo Político Brasileiro me pareceu um amontoado de obviedades que não fizeram, nem fazem, falta ao nosso pensamento sociológico. Mas, como dizia antigo personagem de Jô Soares, eu acreditei.
 
O senhor entrou para a História não só como nosso presidente, como o primeiro a ser reeleito. Parabéns, outra vez, mas o senhor nos traiu. O senhor era admirado por gente como eu, em função de uma postura ética e política que o levou ao exílio e ao sofrimento em nome de causas em que acreditávamos, ou pelo menos nós pensávamos que o senhor acreditava, da mesma forma que hoje acha mais conveniente professar crença em Deus do que negá-la, como antes. Em determinados momentos de seu governo, o senhor chegou a fazer críticas, às vezes acirradas, a seu próprio governo, como se não fosse o senhor seu mandatário principal. O senhor, que já passou pelo ridículo de sentar-se na cadeira do prefeito de São Paulo, na convicção de que já estava eleito, hoje pensa que é um político competente e, possivelmente, t em Maquiavel na cabeceira da cama. O senhor não é uma coisa nem outra, o buraco é bem mais embaixo. Político competente é Antônio Carlos Magalhães, que manda no Brasil e, como já disse aqui, se ele fosse candidato, votaria nele e lhe continuaria a fazer oposição, mas pelo menos ele seria um presidente bem mais macho que o senhor.
 
Não gosto do senhor, mas não tenho ódio, é apenas uma divergência histórico-glandular. O senhor assumiu o governo em cima de um plano financeiro que o senhor sabe que não é seu, até porque lhe falta competência até para entendê-lo em sua inteireza e hoje, levado em grande parte por esse plano, nos governa novamente. Como já disse na semana passada, não lhe quero mal, desejo até grande sucesso para o senhor em sua próxima gestão, não, claro, por sua causa, mas por causa do povo brasileiro, pelo qual tenho tanto amor que agora mesmo, enquanto escrevo, estou chorando.
 
Eu ouso lembrar ao senhor, que tanto brilha, ao falar francês ou espanhol (inglês eu falo melhor, pode crer) em suas idas e vindas pelo mundo, à nossa custa, que o senhor é o presidente de um povo miserável, com umas das mais iníquas distribuições de renda do planeta. Ouso lembrar que um dos feitos mais memoráveis de seu governo, que ora se passa para que outro se inicie, foi o socorro, igualmente a nossa custa, a bancos ladrões, cujos responsáveis permanecem e permanecerão impunes.
 
Ouso dizer que o senhor não fez nada que o engrandeça junto aos corações de muitos compatriotas, como eu. Ouso recordar que o senhor, numa demonstração inacreditável de insensibilidade, aconselhou a todos os brasileiros que fizessem check-ups médicos regulares. Ouso rememorar o senhor chamando os aposentados brasileiros de vag abundos. Claro, o senhor foi consagrado nas urnas pelo povo e não serei eu que terei a arrogância de dizer que estou certo e o povo está errado.
 
Como já pedi na semana passada, Deus o assista, presidente. Paradoxal como pareça, eu torço pelo senhor, porque torço pelo povo de famintos, esfarrapados, humilhados, injustiçados e desgraçados, com o qual o senhor, em seu palácio, não convive, mas eu, que inclusive sou nordestino, conheço muito bem. E ouso recear que, depois de novamente empossado, o senhor minta outra vez e traga tantas ou mais desditas à classe média do que seu antecessor que hoje vive em Miami.
 
Já trocamos duas ou três palavras, quando nos vimos em solenidades da Academia Brasileira de Letras. Se o senhor, ao por acaso estar lá outra vez, dignar-se a me estender a mão, eu a apertarei deferentemente, pois não desacato o presidente de meu país. Mas não é necessário que o senhor passe por esse constrangimento, pois, do mesmo jeito que o senhor pode fingir que não me vê, a mesma coisa posso eu fazer. E, falando na Academia, me ocorre agora que o senhor venha a querer coroar sua carreira de glórias entrando para ela. Sou um pouco mais mocinho do que o senhor e não tenho nenhum poder, a não ser afetivo, sobre meus queridos confrades. Mas, se na ocasião eu tiver algum outro poder, o senhor só entra lá na minha vaga, com direito a meu lugar no mausoléu dos imortais.

segunda-feira, 25 de março de 2013

Os crimes do Estado se repetem como farsa

 Integrantes das comissões nacional e estadual da verdade ouvem depoimentos de familiares de vítimas da ditadura

Por Maria Rita Kehl
Da Ilustríssima

RESUMO - Integrante da Comissão Nacional da Verdade interpreta a investigação sobre crimes do Estado à luz da busca psicanalítica por verdades reprimidas. Assim como na teoria freudiana, a tentativa do Estado totalitário de cassar o direito à informação se mostrou inútil diante de sintomas sociais que acabaram por revelá-la.

*

Que tudo "continue assim", isto é a catástrofe.
Walter Benjamin

Ontem comemorou-se o Dia Internacional do Direito à Verdade. A data foi escolhida pela ONU em dezembro de 2010 para lembrar o assassinato do defensor de direitos humanos em El Salvador, monsenhor Oscar Romero, em 24 de março de 1980. A relação estabelecida pela resolução da ONU entre dignidade humana e direito à verdade fez com que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) decidisse comemorá-la nas ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro.

"A verdade liberta", proclamou ao telefone meu amigo, o psicoterapeuta Nelson Motta Mello, ao saudar a formação da CNV, em maio de 2012. Poupo o leitor do debate sobre o estatuto ontológico da verdade, que nem Cristo (nem Lacan) respondeu a contento.
 
Se não nos é possível estabelecer com precisão o que é a verdade, não há dificuldade em entender os efeitos da sua falta --ou da sua interdição-- tanto na vida psíquica quanto na dinâmica social. A psicanálise freudiana poderia ser entendida, "lato sensu", como uma metapsicologia do direito à verdade psíquica.

Foi no final do século 19, quando a moral da nova classe emergente na Europa impunha o silêncio sobre as representações da vida sexual, que Freud anunciou sua hipótese a respeito do sofrimento histérico: "A histérica sofre de reminiscências". As enigmáticas crises de conversão das histéricas não passavam, para o inventor da psicanálise, de tentativas de dizer com o corpo verdades que estavam impedidas de recordar em pensamento e anunciar na fala.

O discurso corporal da histeria é composto de fragmentos recalcados de lembranças e/ou fantasias sexuais interditadas, que buscam expressão através do sintoma. Aos poucos, Freud compreendeu que o estatuto da "verdade" de suas pacientes histéricas nem sempre correspondia ao senso comum: o que o tratamento psicanalítico revela são fragmentos da verdade psíquica, cujas conexões com os fatos objetivos da vida passam por caminhos singulares e tortuosos.

É que o recalcado só pode chegar à consciência através das formações secundárias, que deformam a marca primordial do vivido (inacessível ao próprio sujeito) para se adequar às formas corriqueiras da linguagem. Apesar das dificuldades de interpretação e das limitações da técnica nos primórdios da psicanálise, a possibilidade de expressar a fantasia recalcada revelou que a verdade psíquica é capaz de libertar o neurótico das repetições sintomáticas.

Em 1914 Freud estabeleceu, em "Recordar, Repetir, Elaborar", uma importante relação entre o esquecimento promovido pelo recalque e a repetição do sintoma neurótico: a compulsão à repetição seria a maneira enviesada que o neurótico encontra para tentar trazer à consciência uma cena, uma fantasia ou um pensamento, recalcado.

O sintoma seria movido pela compulsão à repetição de um trauma e/ou de um gozo interditado, a cumprir duas funções antagônicas, a de promover um retorno em ato do que foi esquecido e permitir, ao mesmo tempo, um simulacro do prazer proibido. Ao dar vazão ao recalcado, os sintomas constituem o "modo de recordar" encontrado pelo neurótico. Contra a dobradinha patológica esquecimento/sintoma, Freud propôs a elaboração do trauma.

Tal necessidade de elaboração pode ser observada tanto nas modalidades individuais de retorno do sofrimento psíquico individual quanto nas repetições de fatos violentos e traumáticos que marcam as sociedades governadas com base na supressão da experiência histórica.

Totalitarismo

Todos os Estados totalitários se apoiam na supressão do direito à informação. Só assim conseguem silenciar, pelo menos por um tempo, a propagação das violações, dos abusos, das violências contra o cidadão praticadas em "nome da ordem", a revelar que na vida social não há direito perdido que não tenha sido usurpado por alguém. Falta de liberdades, de direitos e de acesso à informação são elementos fundamentais na consolidação do terrorismo de Estado.

Se o estabelecimento da verdade histórica, nas democracias, está sujeito a permanente debate, o direito de acesso a ela deve ser incontestável. A garantia do direito à verdade opõe-se à imposição de uma versão monolítica, característica dos regimes autoritários de todos os matizes. Ela exige a restauração da memória social, estabelecida no debate cotidiano e sempre exposta a reformulações, a depender das novas evidências trazidas à luz por ativistas políticos e pesquisadores.

Este é o estatuto da verdade buscada pela CNV: além da revelação objetiva dos crimes praticados por agentes do Estado contra militantes políticos, estudantes, camponeses, indígenas, jornalistas, professores, cientistas, artistas e tantos outros --cuja prova está documentada em arquivos públicos, muitos deles considerados ultrassecretos--, o relatório final produzido pela comissão pode restaurar um importante capítulo da experiência política brasileira.

A verdade social não é ponto de chegada, é processo. Sua elaboração depende do acesso a informações, mesmo as mais tenebrosas, mesmo aquelas capazes de desestabilizar o poder e que, por isso, se convencionou que deveriam ser mantidas em segredo. Se o reconhecimento dos fatos que um dia se tentou apagar não costuma trazer boas notícias, em contrapartida a supressão da verdade histórica produz sintomas sociais gravíssimos --a começar pela repetição patológica de erros e crimes passados.

Melhor encarar as velhas más notícias e transformar a vivência bruta em experiência coletiva, no sentido proposto por Walter Benjamin. Para isso é preciso construir uma narrativa forte e bem fundamentada, capaz de transformar os restos traumáticos da vivência do período ditatorial em experiência coletiva. "Para que se (re)conheça, para que nunca mais aconteça."

Freud poderia ter lido Marx a respeito das repetições farsescas dos capítulos mal resolvidos da história. Se o sintoma neurótico é a verdade recalcada que retorna como uma espécie de charada que o sujeito não decifra, o mesmo vale para os sintomas sociais. O Brasil ainda sofre com os efeitos da falta de acesso à verdade dos períodos vergonhosos de sua história, desde a escravidão até a ditadura militar. O modo como a ditadura negociou sua dissolução com a sociedade brasileira --uma negociação entre quem tinha as armas na mão e quem até então estivera sob a mira delas-- funcionou como um verdadeiro convite ao esquecimento.

O apagamento rápido (e forçado) dos crimes da ditadura lembra os efeitos perversos do esquecimento dos crimes da escravidão. No segundo caso, a falta de reconhecimento do estatuto criminoso de três séculos de escravidão impediu a promoção de políticas de reparação às populações afrodescendentes recém-libertas do cativeiro. Os sintomas do esquecimento estão aí até hoje, na perpetuação muitas vezes impune do trabalho escravo em fábricas e fazendas, a lembrar a advertência de Nabuco de que a prática continuada da escravidão perverteria a elite brasileira.

Não é absurdo pensar que o Brasil, país do esquecimento fácil, do perdão concedido antes por covardia e complacência do que por efeito de rigorosas negociações, seja um país incapaz de superar sua violência social originária. Os sintomas da brutalidade consentida ressurgem nas execuções policiais que vitimam jovens nas periferias de São Paulo, nas favelas do Rio e em todas as outras grandes cidades brasileiras. Ressurge nos assassinatos de defensores da floresta e pequenos agricultores, por jagunços e policiais a mando de grandes grileiros de terras.

E se repete como farsa em episódios recentes, como o da bomba lançada no dia 7 contra a sede da OAB do Rio de Janeiro, acompanhada das mesmas ameaças sinistras com que agentes da repressão tentaram intimidar os que articulavam, na década de 1980, a volta do Estado de Direito. Ou nas acusações de militares da reserva contra investigações conduzidas pela CNV, como se fosse o trabalho da comissão, e não os abusos cometidos no passado, o que mancha a imagem das Forças Armadas.

Ou ainda em artigos como os de Contardo Calligaris, colunista da Folha, que conjeturou sobre a suposta conveniência de torturar alguém, sem levar em consideração que a comunidade internacional já decidiu que a tortura é crime de lesa-humanidade.
 
Arte

Só a arte nomeia os crimes silenciados no Brasil. As instalações de Cildo Meireles e Nuno Ramos. O teatro da Companhia do Latão, d'Opovoempé e outros grupos corajosos. O rap de Mano Brown e outros manos; faixas dos últimos CDs de Caetano Veloso e de Chico Buarque. Os filmes de Sérgio Bianchi, Rubens Rewald e, recentemente, do pernambucano Kleber Mendonça Filho.

Muitos comentários elogiosos a "O Som ao Redor" se referiram ao contato inevitável que a vida urbana promove com os ruídos emitidos pelos vizinhos, que nem as muralhas protetoras dos grandes condomínios conseguem isolar. Sim, os barulhos inconvenientes da vida na cidade geram tensão e desconforto num filme de enredo aparentemente banal.

Mas essa não é a razão da grandeza do filme, que a crítica foi unânime em elogiar. Poucos críticos compreenderam o tema do retorno do recalcado, revelado na cena final, em que os dois seguranças da rua são chamados cordialmente pelo patriarca para executar um desafeto na fazenda --à antiga maneira dos senhores de engenho-- e, na contramão da lógica da dominação cordial, revelam ter vindo cobrar o antigo assassinato de seu pai ("por causa de uma cerca...").

A última cena ilumina as razões da inclusão de uma foto de representantes das ligas camponesas, organizada nas décadas de 50 e 60 e dizimadas pela ditadura, inserida entre as imagens que compõem a abertura do filme. No último segundo do filme, um estampido forte --foi tiro ou o rojão da moça insone contra o cachorro do vizinho?-- vem revelar a verdadeira natureza do incômodo som ao redor, metáfora de velhas brutalidades, jamais elaboradas ou reparadas, que estão na origem da história da luta pela terra e na base do eterno poder do mais forte no Brasil.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Os limites da crítica


Por Evaldo Mocarzel 
Da Revista Bravo
   
De que maneira analisar um filme como Colegas? Com rigor implacável ou com o paternalismo destes novos tempos inclusivos? São questões que me vêm à mente após o pedido de escrever um texto crítico sobre o longa-metragem dirigido pelo carioca Marcelo Galvão e estrelado por um trio de atores com síndrome de Down.

Toda crítica envolve uma militância, alertou o teórico francês Christian Metz em A Significação no Cinema. Toda crítica esconde camadas de subjetividade por baixo do seu manto solene de objetividade. De quando em quando, todo crítico é acometido por algum tipo de cegueira analítica: ora são afetos e relações pessoais que podem flexibilizar o rigor dos textos, ora são idealizações materializadas em artistas que se tornam a mais fiel tradução da própria militância.

O fato é que amo a crítica. Trabalhei durante muitos anos no jornalismo cultural e, por quase uma década, chefiei uma equipe de críticos atuando nas mais diferentes manifestações artísticas. Acredito piamente que o
processo da arte só se realiza em sua plenitude no olhar erudito do crítico, que vai contextualizar determinada obra na história da humanidade, deslindando preciosidades estéticas, temáticas e filosóficas que, em muitos casos, passam despercebidas até mesmo para os próprios criadores.

Acho sinceramente que a crítica é um espaço de resistência fundamental nessa massacrante indústria cultural que tanto nos sufoca. Por mais que admire e respeite quem a exerce, nunca me arrisquei por esse caminho, com exceção de um breve período em minha juventude. Há diferentes tipos de crítico, mas sempre me interessei por aqueles que enveredam pelo ensaísmo. Não gosto, porém, de textos que transbordam de tanto entusiasmo diante de uma “obra-prima” nem dos cruelmente destrutivos, sem um único aceno de generosidade. Vale a advertência do cineasta francês Robert Bresson: “Não há louvação ou crítica demolidora que não parta de um equívoco”.

Cá estou eu discorrendo sobre a crítica e ao mesmo tempo me esquivando da análise de Colegas. Há uma camada de subjetividade na minha fruição do filme que me faz ver com olhos generosos a participação de dois atores: Ariel Goldenberg e Rita Pokk, também “personagens” do documentário Do Luto à Luta, que realizei há alguns anos em parceria com o Circuito Espaço de Cinema. Pedi à minha companheira, a produtora Letícia Santos, que fez a pesquisa do filme, para encontrar alguém com síndrome de Down que topasse dirigir uma sequência dentro do documentário.

Assim conheci Ariel, que veio acompanhado de Rita, sua noiva na época. Ele revelou uma influência do cineasta norte-americano Steven Spielberg e por isso criou um “efeito especial”. Rita também acabou dirigindo a mesma sequência, com uma dramaturgia simples: um pai recebendo, na maternidade, a notícia de que seu filho havia nascido com síndrome de Down. Ela transformou totalmente a cena. Introduziu uma enfermeira, pois queria no quadro uma figura de mulher, e fez alterações radicais na dramaturgia. A mãe agora morria no parto, para que o pai assumisse suas responsabilidades. Uma recriação forte e feminista. Mais: ela queria um bebê no centro da imagem, e a produção teve de pegar emprestado o menino Jesus da capela, numa área desativada da Maternidade São Paulo, onde filmamos. Rita queria pathos, drama, e confessou influência do escritor norte-americano Stephen King. A experimentação foi uma grande curtição para todos, menos para mim. Para não interferir na mise-en-scène do casal de diretores, fiquei horas fora do set esperando numa padaria.

Revival Neorrealista

Em virtude dessa experiência, além da longa entrevista que fiz com eles, como não vibrar com Ariel e Rita, e também com Breno Viola, no filme de Marcelo Galvão? Não há distanciamento e objetividade que resistam.

Colegas é um road-movie que acompanha as peripécias de três personagens com síndrome de Down em busca de aventuras e dos próprios sonhos. Trata-se de uma ficção assumida, que pega carona numa das grandes tendências do cinema brasileiro e mundial: uma espécie de revival do neorrealismo italiano, em  que não faltam atores não profissionais e muletas documentais para garantir a “veracidade” de imagens ficcionais. Nada contra. Essa tendência, hoje tão presente nos chamados “filmes de arte”, gerou diversas obras-primas. O problema é tornar-se um modismo contemporâneo, como já vem ocorrendo.

Normalidade

Vi Colegas em casa, em DVD, com a família ao meu redor: Letícia e os filhos Laura (16 anos), Joana (13) e Matheus (10). No final da sessão, Joana, que tem síndrome de Down, comentava que gostara bastante do filme, sobretudo da atuação do trio principal: Ariel, Rita e Breno. Ela me disse que havia se divertido. Sua atenção foi muito grande durante a projeção.

Fiquei me perguntando: o que é a síndrome de Down? No meu dia a dia, nem penso mais nisso. Hoje encaro a Síndrome de Down na Joana como uma característica da personalidade dela, à semelhança de seus olhos castanhos bem claros, quase esverdeados. Sob vários aspectos, Joana é a mais normal dos meus três filhos. Jamais foi para a cama dos pais no meio da noite, ao contrário dos outros dois. O que é a normalidade? Quando finalmente viveremos num mundo em que as diferenças poderão desfilar livremente a
exuberância de suas potencialidades e as fragilidades de suas deficiências? Sem nenhum tipo de preconceito equivocado, fruto da falta de informação. E também sem as armadilhas do fundamentalismo inclusivo, que pode ser tão nefasto quanto a pior das discriminações.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Violência ancestral - As origens do comportamento agressivo do homem


Por Steven Pinker
Da Revista Piauí

Thomas Hobbes e Charles Darwin foram homens simpáticos cujos nomes se tornaram adjetivos detestáveis. Ninguém quer viver num mundo hobbesiano ou darwiniano (para não falar malthusiano, maquiavélico ou orwelliano). Os dois homens foram imortalizados no léxico por terem feito uma síntese cínica da vida em estado natural – Darwin, com a “sobrevivência do mais apto” (frase que ele usou, embora não a tenha cunhado), e Hobbes, com a “vida solitária, pobre, sórdida, brutal e curta do homem”. No entanto, ambos nos deram percepções da violência que são mais profundas, mais sutis e, no fim das contas, mais humanas do que fazem crer seus adjetivos epônimos. Hoje, qualquer tentativa de compreensão da violência humana tem de começar pelas análises que eles nos legaram.

Vou tratar aqui das origens da violência em dois sentidos: o lógico e o cronológico. Com a ajuda de Darwin e Hobbes, refletiremos sobre a lógica adaptativa da violência e o que ela permite predizer sobre os tipos de impulso violento que podem ter evoluído como parte da natureza humana. Abordaremos então a pré-história da violência, examinando quando ela apareceu em nossa linhagem evolutiva, em que medida era comum nos milênios anteriores à história escrita e que tipos de desenvolvimento histórico começaram a reduzi-la.

Darwin nos deu uma teoria para explicar por que os seres vivos têm as características que têm, não apenas fisicamente, mas também no plano das disposições mentais e motivações básicas que impelem seu comportamento. Um século e meio depois da publicação de A Origem das Espécies, a teoria da seleção natural está solidamente comprovada em laboratório e em campo e foi ampliada com ideias de novas áreas da ciência e da matemática, ensejando uma compreensão coerente do mundo vivo. Essas novas áreas incluem a genética, que explica os replicadores que possibilitam a seleção natural, e a teoria dos jogos, que lança luz sobre a sina de agentes que perseguem metas num mundo onde há outros agentes perseguidores de metas.

Por que razão evoluiriam organismos que visam fazer mal a outros organismos? A resposta não é tão direta quanto sugeriria a expressão “sobrevivência dos mais aptos”. Em seu livro O Gene Egoísta, no qual explica a síntese moderna da biologia evolutiva recorrendo à genética e à teoria dos jogos, Richard Dawkins tenta subtrair aos leitores a familiaridade irrefletida com o mundo vivo. Pede-lhes que imaginem os animais como “máquinas de sobrevivência” projetadas pelos genes (as únicas entidades que se propagam religiosamente ao longo de toda a evolução) e que então reflitam sobre como evoluiriam tais máquinas de sobrevivência:

Para uma máquina de sobrevivência, outra máquina de sobrevivência (que não seja seu filho ou parente próximo) é parte do ambiente, como uma rocha, um rio ou uma porção de alimento. É algo que estorva ou algo a ser explorado. Difere de uma rocha ou de um rio em um aspecto importante: ela tende a reagir. Pois também ela é uma máquina que administra seus genes imortais com vistas ao futuro e também ela fará de tudo para preservá-los. A seleção natural favorece os genes que controlam as máquinas de sobrevivência de modo que elas usem o ambiente da melhor forma possível. Isso inclui fazer o melhor uso possível de outras máquinas de sobrevivência, tanto da mesma espécie como de espécies diferentes.

Quem já viu um falcão dilacerar um estorninho, um enxame de insetos torturar um cavalo com suas ferroadas ou o vírus da Aids matar um homem lentamente tem conhecimento, em primeira mão, das maneiras com que as máquinas de sobrevivência exploram impiedosamente outras máquinas de sobrevivência. Em boa parte do mundo vivo, a violência é simplesmente a norma, algo que dispensa maiores explicações. Quando as vítimas pertencem a outra espécie, chamamos os agressores de predadores ou parasitas. Mas elas podem também ser membros da mesma espécie. Infanticídio, fratricídio, canibalismo, estupro e combate letal já foram documentados em muitos tipos de animais.

A passagem cuidadosamente formulada de Dawkins também explica por que a natureza não consiste em uma grande escaramuça sangrenta. Para começar, os animais são menos inclinados a fazer mal aos parentes próximos, pois qualquer gene que levasse um animal a prejudicar um parente teria uma boa chance de prejudicar uma cópia de si mesmo existente nesse parente, e a seleção natural tenderia a erradicá-lo. Acima de tudo, salienta Dawkins, um outro organismo difere de uma rocha ou de um rio porque tende a reagir. Qualquer organismo que tenha evoluído para ser violento é membro de uma espécie cujos outros membros, em média, evoluíram para ser igualmente violentos. Se ele atacar alguém da própria espécie, o adversário poderá ser igualmente forte e combativo e terá as mesmas armas e defesas. A probabilidade de que, ao atacar um membro da mesma espécie, o atacante sofra danos é uma poderosa pressão seletiva que desfavorece a investida ou o bote indiscriminados. Isso também descarta a metáfora hidráulica da pressão psíquica que se acumula e por fim extravasa, bem como a maioria das teorias populares sobre a violência, tais como a sede de sangue, o desejo de matar, o instinto assassino e outras comichões, impulsos e ânsias destrutivas. Quando uma tendência à violência evolui, ela é sempre estratégica. Os organismos são selecionados para mobilizar a violência somente em circunstâncias nas quais os benefícios esperados superam os custos previstos. Esse discernimento é especialmente válido para as espécies inteligentes, cujo cérebro grande as torna sensíveis à expectativa de custo e benefício em uma situação dada e não apenas à média eventualmente computada ao longo do tempo evolutivo.

A lógica da violência, quando aplicada a membros de uma espécie inteligente em confronto com outros membros dessa espécie, vai nos levar a Hobbes. Numa passagem notável do Leviatã, de 1651, ele não precisou nem de 100 palavras para traçar uma análise dos estímulos à violência que não deixa nada a dever às de hoje:

Assim, na natureza do homem, encontramos três causas principais de contenda. Primeiro, a competição; segundo, a difidência; terceiro, a glória. A primeira leva o homem a invadir pelo ganho; a segunda, pela segurança; a terceira, pela reputação. O primeiro usa a violência para se assenhorear da pessoa de outros homens, de esposas, filhos e rebanhos; o segundo, para defendê-los; o terceiro, por ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma opinião diferente e qualquer outro sinal de desapreço, ou à sua pessoa diretamente, ou, por reflexo, a seus parentes, seus amigos, sua nação, sua profissão ou seu nome.

Hobbes considerava a competição uma consequência inevitável do empenho do agente em perseguir seus interesses. Vemos hoje que ela é parte integrante do processo evolutivo.Máquinas de sobrevivência capazes de chutar os competidores para longe de recursos finitos como comida, água e território desejável conseguirão se reproduzir mais do que os concorrentes, deixando o mundo com as máquinas de sobrevivência mais aptas a esse tipo de competição.

Também sabemos hoje por que “esposas” são um dos recursos pelos quais os homens devem competir. Na maioria das espécies animais, a fêmea faz um investimento maior do que o macho na prole. Isso se aplica em especial aos mamíferos, pois a mãe gesta a cria dentro do corpo e depois do parto a amamenta. Um macho pode multiplicar o número de filhos acasalando-se com várias fêmeas – o que privará outros machos de filhos –, enquanto uma fêmea não pode multiplicar o número de filhos acasalando-se com vários machos. Isso faz da capacidade reprodutiva da fêmea um recurso escasso pelo qual competem os machos de muitas espécies, inclusive a humana. Nada disso, a propósito, implica que os homens sejam robôs controlados por seus genes, que eles possam ser moralmente desculpados por estuprar ou lutar, que as mulheres sejam prêmios sexuais passivos, que as pessoas tentem gerar o maior número possível de bebês ou que sejam impermeáveis às influências de sua cultura, para citar alguns dos equívocos comuns a respeito da teoria da seleção sexual.

A segunda causa de contenda é a difidência, palavra que na época de Hobbes significava sobretudo “medo”, e não “desconfiança”. A segunda causa é consequência da primeira: competição gera medo. Se você tem motivo para suspeitar que seu vizinho está propenso a eliminá-lo da competição, digamos, matando-o, então estará propenso a se proteger eliminando-o primeiro, num ataque preventivo. A tentação pode aparecer, ainda que em condições normais você não seja capaz de matar nem uma mosca – basta não estar disposto a cruzar os braços e se deixar matar. A tragédia é que seu competidor tem todos os motivos para maquinar o mesmo cálculo, ainda que ele próprio seja o tipo de pessoa que não mataria uma mosca. De fato, mesmo se souber que você não partiria para cima dele com intenções agressivas, ele pode legitimamente recear que você esteja tentado a neutralizá-lo por medo de que ele o neutralize primeiro, o que dará a você o incentivo para neutralizá-lo antes, ad infinitum. O cientista político Thomas Schelling apresenta a analogia do homem armado que surpreende em sua casa um assaltante também armado, e cada um deles é tentado a atirar no outro para não ser balea-do primeiro. Esse paradoxo às vezes é chamado de armadilha hobbesiana, ou, na arena das relações internacionais, de dilema da segurança.

De que maneira os agentes inteligentes podem se desvencilhar da armadilha hobbesiana? A forma mais óbvia é uma política de dissuasão: não ataque primeiro, seja forte o bastante para sobreviver a um primeiro ataque e retalie na mesma moeda qualquer agressão. Uma política de dissuasão digna de crédito pode retirar do competidor o incentivo para invadir pelo ganho, pois o custo imposto pela retaliação anularia para ele o espólio previsto. E elimina o incentivo para invadir por medo, em virtude da decisão de não invadir primeiro e, acima de tudo, do menor incentivo para ser o primeiro a atacar, visto que a dissuasão reduz a necessi-dade de um ataque preventivo. A chave da política de dissuasão, no entanto, é a credibilidade da ameaça de que haverá retaliação. Se seu adversário pensa que você é vulnerável a ponto de ser aniquilado em um primeiro ataque, não tem por que temer a retaliação. E se pensa que, uma vez atacado, você pode racionalmente se abster de retaliar, pois a essa altura é tarde demais para ter algum benefício com a retaliação, ele poderá explorar essa racionalidade e atacá-lo impunemente. Sua política de dissuasão só merecerá crédito se você se mostrar categórico no compromisso de re-futar a menor suspeita de fraqueza, de vingar todo avanço sobre seu território e de dar o troco a qualquer ofensa. Está explicado, assim, o incentivo para invadir por ninharias: uma palavra, um sorriso ou qualquer outro sinal de desapreço. Hobbes o chamou “glória”; mais comumente, chamam-no “honra”; o termo que o descreve com maior precisão é “credibilidade”.

A política da dissuasão também é conhecida como o equilíbrio do terror e, durante a Guerra Fria, foi chamada de destruição mútua assegurada [mad, na sigla em inglês]. A paz eventualmente prometida por uma política de dissuasão é sempre frágil, pois a dissuasão só reduz a violência mediante a ameaça de violência. Cada lado deve reagir a qualquer sinal não violento de desrespeito com uma violenta demonstração de vigor; em consequência, um ato de violência pode levar a outro, num ciclo interminável de retaliação. Uma importante característica da natureza humana – o viés do interesse próprio – pode levar cada lado a acreditar que sua própria violência foi um ato de retaliação justificada, enquanto o ato do outro foi uma agressão imotivada.

A análise de Hobbes diz respeito à vida em estado de anarquia. O título de sua obra-prima identificou um modo de escapar dela: o Leviatã, uma monarquia ou outra autoridade governamental que incorpora a vontade do povo e tem o monopólio do uso da força. Aplicando penalidades aos agressores, o Leviatã pode eliminar o incentivo para a agressão, o que, por sua vez, desativa a ansiedade geral sobre ataques preventivos e a necessidade de que todos mantenham o dedo no gatilho para retaliar à menor provocação e provar que são determinados. E, sendo o Leviatã uma terceira parte desinteressada, não se deixa sugestionar pelo chauvinismo que leva cada lado a pensar que o oponente tem um coração das trevas, enquanto o seu próprio é puro como um cristal.

A lógica do Leviatã pode ser resumida com um triângulo. Em cada ato de violência há três partes interessadas: o agressor, a vítima e um observador. Cada um tem um motivo para a violência: o agressor, predar a vítima; a vítima, retaliar; o observador, minimizar os danos colaterais da luta dos dois. A violência entre os combatentes pode ser chamada guerra; a violência do observador contra os combatentes pode ser chamada lei. A teoria do Leviatã, em suma, diz que a lei é melhor do que a guerra. A teoria de Hobbes delineia um prognóstico verificável sobre a história da violência. O Leviatã fezsua primeira entrada num ato tardio da encenação humana. Os arqueólogos nos dizem que os seres humanos viveram em estado de anarquia até o surgimento da civilização, há cerca de 5 mil anos, quando agricultores sedentários se aglutinaram pela primeira vez em cidades e Estados e criaram os primeiros governos. Se a teoria de Hobbes for correta, essa transição deve também ter prenunciado o primeiro grande declínio histórico da violência. Antes do advento da civilização, quando os homens viviam sem “um poder comum capaz de manter a todos em temor reverente”, a vida devia ser mais sórdida, mais brutal e mais curta do que quando a paz lhes foi imposta por autoridades armadas, desenvolvimento que chamarei de “processo de pacificação”. Hobbes afirma que “povos selvagens em muitos lugares da América” viviam em estado de anarquia violenta, mas não dá nenhuma especificação sobre o que tinha em mente.

Nesse vácuo de dados, qualquer um poderia ter vez nas especulações sobre os povos primitivos, e não demorou a que uma teoria oposta viesse à tona. O contrário de Hobbes foi o filósofo nascido na Suíça Jean-Jacques Rousseau [1712–78], que era da seguinte opinião:

[...]nada é mais dócil do que [o homem]em seu estado primitivo. […]O exemplo dos selvagens [...]parece confirmar que o gênero humano era feito para nele permanecer sempre, […]e que todos os progressos ulteriores foram outros tantos passos […]em direção à decrepitude da espécie.

Embora as filosofias de Hobbes e Rousseau sejam muito mais refinadas do que “vida sórdida, brutal e curta” versus“o bom selvagem”, seus estereótipos concorrentes da vida em estado de natureza alimentaram uma controvérsia que perdura até os nossos dias. Em Tábula Rasa[2002], examinei como a questão acumulou uma pesada bagagem emocional, moral e política. Na segunda metade do século xx, a romântica teoria de Rousseau se tornou a doutrina politicamente correta da natureza humana, tanto como reação a doutrinas racistas anteriores sobre povos “primitivos” como pela convicção de que se tratava de uma visão mais elevada da condição humana. Muitos antropólogos acreditam que, se Hobbes estivesse certo, a guerra seria inevitável ou mesmo desejável; logo, qualquer um que seja a favor da paz deve insistir que Hobbes está errado. Esses “antropólogos da paz” (que na verdade são acadêmicos bem agressivos – o etologista Johan van der Dennen os chama de “máfia da paz e harmonia”) sustentam que os humanos e outros animais têm inibições severas quanto a matar os da própria espécie, que a guerra é uma invenção recente e que as lutasentre povos nativos foram ritualísticas e inofensivas até eles encontrarem o colonizador europeu.

A meu ver, a ideia de que as teorias biológicas da violência são fatalistas e de que as teorias românticas são otimistas põe as coisas de cabeça para baixo, mas não é esse o meu assunto aqui. Quando se trata de violência em povos antes do advento do Estado, Hobbes e Rousseau estão falando do alto de suas respectivas poltronas: nenhum deles conhecia coisa alguma sobre a vida antes da civilização. Hoje podemos fazer melhor. Estamos examinando aqui os fatos sobre a violência nos primeiros estágios da carreira humana. A história começa antes de sermos humanos, e analisaremos a agressão em nossos parentes primatas para ver o que ela revela sobre o surgimento da violência em nossa linhagem evolutiva.

A partir de que ponto temos como rastrear a história da violência? Embora os ancestrais primatas da linhagem humana tenham sido extintos há muito tempo, eles nos deixaram no mínimo um tipo de evidência de como podem ter sido: os chimpanzés, seus outros descendentes. Não evoluímos de chimpanzés, é claro, e, como veremos, é uma questão em aberto se os chimpanzés preservaram ou não as características do nosso ancestral comum ou se enveredaram por uma direção exclusiva deles. Seja como for, a agressão entre os chimpanzés contém uma lição para nós, pois mostra como a violência pode evoluir numa espécie primata com a qual compartilhamos certas características. E põe à prova o prognóstico evolutivo de que as tendências violentas não são hidráulicas, e sim estratégicas, mobilizadas apenas em circunstâncias nas quais os ganhos potenciais são altos e os riscos são baixos.

Os chimpanzés comuns vivem em comunidades de até 150 indivíduos que ocupam um território separado. Enquanto vagueiam em busca de frutas e nozes, que se distribuem de maneira não uniforme pela floresta, eles com frequência se dividem e se aglutinam em grupos menores de um a quinze indivíduos. Se um grupo encontra outro grupo de uma comunidade diferente na fronteira dos territórios, a interação é sempre hostil. Quando os bandos estão em equilíbrio de forças, disputam a fronteira em uma batalha ruidosa. Os dois lados dão gritos curtos e repetidos ou emitem sons graves, sacodem galhos, atiram objetos e arremetem uns contra os outros por meia hora ou mais, até que um lado, geralmente o menos numeroso, bate em retirada.

Essas batalhas exemplificam as demonstrações de agressividade que são comuns entre animais. Supunha-se antes que fossem rituais para decidir contendas sem derramamento de sangue, pelo bem da espécie, mas hoje elas são entendidas como exibições de força e determinação que permitem ao lado mais fraco ceder, nos casos em que o resultado da luta é previsível e insistir nela significaria apenas risco de dano para ambas as partes. Quando dois animais estão em condições de igualdade, a exibição de força às vezes vai num crescendo até o combate sério, um deles ou ambos terminando feridos ou mortos. As batalhas entre grupos de chimpanzés, contudo, não descambam para a luta séria, e antes os antropólogos acreditavam que a espécie era essencialmente pacífica.

Jane Goodall, a primatóloga que pela primeira vez observou chimpanzés na natureza por longos períodos, acabou fazendo uma descoberta estarrecedora. Quando um grupo de chimpanzés machos encontra um grupo menor ou um indivíduo solitário de outra comunidade, eles não gritam nem se eriçam, mas tiram vantagem de estar em maior número. Se é uma fêmea adolescente sexualmente receptiva, podem catar piolhos entre os pelos da estranha e tentar acasalar. Se ela carrega um filhote, eles em geral a atacam e depois matam e comem o bebê. E, se encontram um macho solitário, ou isolado de um grupo pequeno, perseguem-no com selvageria assassina. Dois atacantes imobilizam a vítima e os demais o espancam, arrancam-lhe os dedos e a genitália a mordidas, dilaceram-lhe a carne, torcem seus membros, bebem seu sangue ou lhe arrancam a traqueia. Os chimpanzés de determinada comunidade pegaram todos os machos de uma comunidade vizinha e os mataram um por um, evento que, se ocorresse entre humanos, chamaríamos de genocídio. Muitos ataques não são desencadeados por encontros fortuitos; resultam de patrulhamentos de fronteira durante os quais um grupo de machosfaz buscas sorrateiras e transforma em alvo todo macho solitário que localiza. Mata-se também dentro da própria comunidade. Uma gangue de machos pode matar um rival, e uma fêmea forte, ajudada por um macho ou outra fêmea, pode matar a cria de uma fêmea mais fraca.

Quando Goodall apresentou o primeiro relato dessas matanças, outros cientistas conjecturaram se não seriam explosões anômalas ou sintomas de patologia, ou se não decorreriam do fato de os primatólogos abastecerem os chimpanzés com comida para facilitar a observação. Três décadas depois, não resta praticamente nenhuma dúvida de que a agressão letal integra o repertório de comportamentos normais dos chimpanzés. Os primatólogos observaram ou inferiram o extermínio de quase cinquenta indivíduos em ataques intercomunitários e de mais de 25 em ataques dentro da mesma comunidade. Os relatos provêm de no mínimo nove comunidades, incluindo algumas que nunca haviam recebido provisões. Em certas comunidades, mais de um terço dos machos morre vitimado por violência.

O chimpancídio tem fundamento darwiniano? O primatólogo Richard Wrangham, ex-aluno de Goodall, testou várias hipóteses com os numerosos dados coligidos sobre a demografia e a ecologia dos chimpanzés. Conseguiu documentar uma vantagem darwiniana de peso e outra vantagem menor. Quando os chimpanzés eliminam machos rivais e a respectiva prole, expandem seu território, seja transferindo-se para lá imediatamente, seja vencendo batalhas subsequentes com a ajuda da vantagem numérica recém-fortalecida. Isso lhes permite monopolizar o acesso ao alimento no território para si mesmos, suas crias e as fêmeas com as quais acasalam, o que resulta, por sua vez, no aumento da taxa de natalidade entre as fêmeas. Às vezes a comunidade também absorve as fêmeas do grupo derrotado, proporcionando aos machos uma segunda vantagem reprodutiva. Não é que os chimpanzés lutem diretamente por comida ou por fêmeas. Eles só se dispõem a dominar o território e a eliminar os rivais se puderem fazê-lo com risco mínimo para si mesmos. Os benefícios evolutivos ocorrem indiretamente e em longo prazo.

Quanto aos riscos, os chimpanzés os minimizam provocando brigas desiguais, em que superam o número de vítimas na proporção de pelo menos três para um. O padrão forrageiro dos chimpanzés costuma mandar a infeliz vítima direto para suas garras porque as árvores frutíferas se distribuem por trechos descontínuos na floresta. Chimpanzés famintos veem-se obrigados a procurar comida em pequenos grupos ou individualmente, e às vezes se aventuram em terras de ninguém à cata do jantar.

O que isso tem a ver com a violência em seres humanos? A partir daí, levanta-se a possibilidade de que a linhagem humana tenha praticado assaltos letais desde a época de suas raízes comuns com os chimpanzés, por volta de 6 milhões de anos atrás. Existe, contudo, uma possibilidade alternativa. O ancestral compartilhado pelos humanos e pelos chimpanzés comuns (Pan troglodytes) legou ao mundo uma terceira espécie – o bonobo ou chimpanzé-pigmeu (Pan paniscus) –, que se separou de seus primos comuns há cerca de 2 milhões de anos. Nosso parentesco com os bonobos é tão próximo quanto com os chimpanzés comuns, e os bonobos nunca praticam ataques letais. Na verdade, a diferença entre bonobos e chimpanzés comuns é um dos fatos mais conhecidos da primatologia popular. Os bonobos ganharam fama como pacíficos, matriarcais, concupiscentes e herbívoros “chimpanzés hippies”. Deram nome a um restaurante vegetariano em Nova York, inspiraram a sexóloga Susan Block a criar “o caminho da paz dos bonobos através do prazer” e, se dependesse de Maureen Dowd, colunista do New York Times, seriam um modelo para os homens de hoje.

O primatólogo Frans de Waal salienta que, em teoria, o ancestral em comum de seres humanos, chimpanzés e bonobos possivelmente se assemelhava aos bonobos, e não aos chimpanzés. Nesse caso, a violência entre coalizões de machos teria raízes menos profundas na história evoluti-va humana. Os chimpanzés comuns e os humanos teriam desenvolvido independentemente os ataques letais, e a prática humana do ataque pode ter se desenvolvido historicamente em culturas específicas, e não no plano da evolução da espécie. Nesse caso, os humanos não teriam predisposições inatas à violência física e não precisariam de um Leviatã ou de qualquer outra instituição para se manter longe dela.

Há dois problemas na ideia de que o homem evoluiu de um ancestral pacífico semelhante ao bonobo. Primeiro, é fácil se deixar empolgar por essa história de um primata hippie. Os bonobos são uma espécie ameaçada que vive em florestas inacessíveis, em regiões perigosas do Congo, e muito do que sabemos sobre eles vem da observação de pequenos grupos em cativeiro, compostos de adolescentes ou jovens adultos bem nutridos. Muitos primatólogos suspeitam que estudos sistemáticos de grupos de bonobos mais velhos, mais famintos, mais populosos e mais livres pintariam um quadro bem mais sinistro. Na selva, descobriu-se, os bonobos caçam, confrontam-se belicosamente e ferem uns aos outros em lutas às vezes fatais. Assim, embora os bonobos sejam inquestionavelmente menos agressivos do que os chimpanzés comuns – nunca fazem incursões de ataque e suas comunidades podem se misturar pacificamente –, 100% pacíficos eles com certeza não são.

O segundo e principal problema é que, muito provavelmente, o ancestral comum das duas espécies de chimpanzé e do homem era mais parecido com um chimpanzé do que com um bonobo. Os bonobos são primatas muito estranhos, não só no comportamento, mas também na anatomia. A cabeça pequena e de formato infantil, o corpo mais leve, as diferenças menos acentuadas entre os sexos e outras características juvenis os distinguem não só dos chimpanzés comuns, mas também dos outros grandes primatas (gorilas e orangotangos), assim como dos fósseis de australopitecos, que foram ancestrais dos humanos.

Encaixada na grande árvore filogenética dos primatas, a anatomia peculiar dos bonobos sugere que eles foram afastados do esboço genérico dos grandes primatas pela neotenia, processo que ressintoniza o programa de crescimento de um animal para preservar certas características juvenis na fase adulta (no caso dos bonobos, características do crânio e do cérebro). A neotenia costuma ocorrer em espécies que foram domesticadas (como no caso do cão, que se desviou do lobo) e é um caminho pelo qual a seleção pode tornar os animais menos agressivos. Wrangham afirma que o principal motor na evolução dos bonobos foi a seleção para menor agressividade nos machos, talvez porque os bonobos busquem alimento sempre em grandes grupos, sem indivíduos solitários vulneráveis, não se criando, assim, oportunidades para que a agressão física seja compensadora. Essas considerações sugerem que os bonobos desafinam no coro dos grandes primatas e que nós descendemos de um animal que se assemelhava mais com o chimpanzé comum.

Mesmo se chimpanzés e humanos tiverem descoberto independentemente a violência grupal, a coincidência seria informativa. Sugeriria que as incursões letais podem ser evolucionariamente vantajosas numa espécie inteligente que se divide em grupos de vários tamanhos e na qual machos aparentados formam coalizões e são capazes de avaliar a força relativa uns dos outros. (Quando examinamos a violência em seres humanos, descobrimos alguns paralelos inquietantemente próximos.)

Seria ótimo se a lacuna entre o ancestral comum e os humanos modernos pudesse ser preenchida pelo registro fóssil. Mas os ancestrais dos chimpanzés não deixaram fósseis, e não dispomos de fósseis e artefatos de hominídeos em quantidade suficiente para fornecer evidências diretas de agressão, como armas ou marcas de ferimentos.

Alguns paleoantropólogos buscam sinais de temperamento violento em espécies fósseis medindo o tamanho dos dentes caninos nos machos (pois encontramos caninos pontiagudos em espécies agressivas) e verificando as diferenças de tamanho entre machos e fêmeas (pois nas espécies políginas os machos tendem a ser maiores, para lutar melhor contra outros machos).

Infelizmente as mandíbulas pequenas dos hominídeos, ao contrário do focinho dos outros primatas, não se abrem o suficiente para que caninos grandes se mostrem práticos, independentemente de essas criaturas terem sido agressivas ou pacíficas. E, a menos que uma espécie tenha tido a consideração de nos deixar um bom número de esqueletos completos, é difícil determinar com segurança o sexo deles e comparar o tamanho de machos e fêmeas. (Por essas razões, muitos antropólogos veem com ceticismo a recente afirmação de que o Ardipithecus ramidus, uma espécie de 4,4 milhões de anos que é provavelmente ancestral do Homo, tinha caninos igualmente pequenos em machos e fêmeas e que, portanto, era uma espécie monógama e pacífica.)

Os fósseis mais recentes e abundantes de Homomostram que os machos foram maiores do que as fêmeas por no mínimo 2 milhões de anos e numa proporção não inferior à encontrada nos humanos modernos. Isso reforça a suspeita de que a competição violenta entre homens tem uma longa história em nossa linhagem evolutiva.

quarta-feira, 20 de março de 2013

14 músicas que mudaram a música


Por Thales de Menezes
Da Folha de São Paulo
 
Quem acredita que o rock and roll ajudou a formar sua personalidade ou influiu em seu comportamento, não importa a idade, precisa comemorar nesta sexta-feira.

No dia 22 de março de 1963, chegava às lojas de discos da Inglaterra "Please Please Me", o primeiro álbum dos Beatles. Para muitos, o mais importante da história.

É notório que o auge da banda foi com "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band" (1967), álbum que encabeça quase todas as listas de melhores discos do rock.

"Please Please Me" soa hoje ingênuo, coleção de canções sobre encontros e desencontros de namorados, longe da sofisticação musical de "Sgt. Pepper's". Mas a estreia dos Beatles em LP garantiu a sobrevivência do rock.

Depois que o gênero foi criado na década anterior por Elvis Presley, Bill Haley, Carl Perkins, Little Richard e outros pioneiros, uma enxurrada de novos "ritmos jovens" inundou o mercado fonográfico anglo-americano.

O rock correu o risco de definhar entre modas musicais como o twist e o calipso.

O sucesso de massa dos Beatles cruzou o Atlântico para disseminar entre os garotos a vontade de formar uma banda, numa dimensão que consolidou o rock até hoje.

Para um álbum que gerou tanto barulho e ainda está à venda 50 anos depois, até que "Please Please Me" foi gravado sem grande investimento.

Beatlemania

Depois do lançamento do primeiro single da banda, "Love Me Do", em outubro do ano anterior, os Beatles começaram a excursionar sem parar pelo Reino Unido.

Era o início do fenômeno que o mundo chamaria nos anos seguintes de "Beatlemania" -no Brasil virou "iê-iê-iê", pelo som do refrão "yeah, yeah, yeah" em "She Loves You", que os Beatles lançariam em agosto de 1963.

Tanto sucesso nos shows fez o produtor George Martin idealizar a gravação do álbum como uma simples repetição das canções para prensar em vinil. Assim, alugou por duas sessões de três horas o estúdio da gravadora EMI, que depois ficaria famoso pelo nome de seu endereço, Abbey Road.

A ideia era gravar mais algumas faixas para juntar com as quatro lançadas em dois singles: "Love Me Do"/"P.S. I Love You" (outubro de 1962) e "Please Please Me"/"Ask Me Why" (janeiro de 1963).

Às 10h, Martin e os quatro Beatles começaram a gravar. As duas sessões agendadas não foram suficientes. O produtor conseguiu mais uma, no mesmo dia. O tempo total no estúdio foi de 9 horas e 45 minutos, para dez faixas.

Um dos maiores hits do disco -e do grupo- também é o que tem a história mais curiosa. "Twist and Shout" exigia muito de John Lennon, com vocal forte, aos berros. E ele estava muito gripado no dia das gravações.

Martin resolveu deixá-la para ser gravada por último. E a voz de John resistiu a apenas uma tentativa, que é o vocal eternizado no vinil.

Por conta própria

Com oito canções escritas por Lennon e McCartney, "Please Please Me" esboçou um padrão que os Beatles buscariam sempre: compor e tocar todo o repertório.

A parada britânica na época era dominada por música romântica, e o álbum levou dois meses para chegar ao topo dos discos mais vendidos.

Permaneceu lá por 30 semanas consecutivas e só perdeu a primeira posição para... "With the Beatles", o segundo álbum do grupo.

O resto é história. A história da música pop.

 Lado A - As faixas que entraram para a história
 Conheça as 14 canções de "Please Please Me"

1. "I Saw Her Standing There"
Iniciada por Paul, completada por John. O título original era "Seventeen" (17, a idade da garota na letra). Paul copiou uma frase de guitarra do ídolo Chuck Berry na música "Talking' About You"

2. "Misery"
Foi a primeira música de Lennon & McCartney gravada por outro artista, poucos meses depois de o álbum ser lançado. O cover é de Kenny Lynch, um dos poucos negros do pop inglês da época

3. "Anna (GO To Him)"
Balada soul escrita e gravada em setembro de 1962 pelo cantor americano Arthur Alexander (1940-1993). John adorava a canção e a inclui nos shows

4. "Chains"
Lançada em 1962 pela banda Cookies, foi escrita pelo casal Gerry Goffin e Carole King. Ela depois se tornaria uma grande cantora dos anos 19960 e 1970

5. "Boys"
Gravada em 1960 pelo grupo vocal feminino The Shirelles. Primeira música com vocal do baterista Ringo Starr, que surpreendeu pelo vozeirão

6. "Ask Me Why"
Creditada à dupla, é mais de John do que de Paul. Foi lançada como lado B do single "Please Please Me"

7. "Please Please Me"
Segundo single da banda, chegou ao topo da parada inglesa no dia 22 de fevereiro
 
Lado B
 
1. "Love Me Do"
Primeiro single dos Beatles, saiu no ano anterior e já definiu o som do quarteto, com suas harmonizações vocais. Paul começou a escrevê-la aos 16 anos, em 1958. Andy White, músico contratado pelo produtor George Martin, toca bateria

2. "P.S. I Love You"
Composta principalmente por Paulm foi lado B de "Love Me Do", lançada em 5 de outubro de 1962. O músico free-lancer Andy White está de novo na bateria, deixando Ringo apenas com as maracas

3. "Baby It's You"
Como "Boys", do lado A, é outra canção do álbum que foi anteriormente gravada pelas Shitrelles. Quem assina a música é Burt Bacharach. Ela fez mais sucesso em 1969, com o grupo Smith

4. "Do You Want to Know a Secret"
George canta, mas John que escreveu, inspirado em canção do desenho "Branca de neve e os Sete Anões" que a mãe cantava para ele

5. "A Taste of Honey"
Era uma música instrumental de peça inglesa honônima de 1959. Ganhou letra depois e os Beatles resolveram gravá-la

6. "There's a Place"
Inspirada em "Somewhere", do musical "West Side Story", que tem o verso "There´s a place for us"

7. "Twist and Shout"
Grande hit dos Beatles, é um cover de um sucesso dos Isley Brothers

terça-feira, 19 de março de 2013

Hugo Chávez ou como um governo democrático pode se tornar autoritário


Por Ferreira Gullar
Do Caderno Ilustrada

Hugo Chávez foi, sem qualquer dúvida, um líder carismático que aliava, em sua atuação, a audácia e a esperteza política. Desde cedo, a ambição de poder determinou suas ações, que o levaram da conspiração nos quartéis às manobras populistas características de seu projeto de governo.

Sempre soube o que deveria fazer. Compreendeu, desde logo, que teria de atender às necessidades de grande parte da população que, ignorada pela oligarquia venezuelana, vivia na miséria.

Ganhar a confiança dessa gente, atendê-la em suas carências, era a providência eticamente correta e, ao mesmo tempo, o caminho certo para tornar-se um líder de imbatível popularidade. Mas, para isso, teria que enfrentar os poderosos e obter o respaldo das forças armadas, às quais, aliás, pertencia. Foi o que fez e ganhou a parada.

Outro traço característico de Hugo Chávez era o pouco respeito às normas democráticas. Se é verdade que ele chegou ao poder pelo voto e pelo voto nele se manteve, é certo também que se valeu do prestígio popular e de alguns erros dos opositores para controlar os diferentes poderes da nação venezuelana, impor sua vontade e consolidar o poder discricionário.

Nesse sentido, o que ocorreu na Venezuela é um exemplo de como o regime democrático, dependendo do nível econômico e cultural da população de um país, pode abrir caminho para um governo autoritário que, dependendo da vontade do líder, anulará a ação política dos adversários, como o fez Hugo Chávez.

Ele não só fechou emissoras de televisão como criou as Milícias Bolivarianas, que, a exemplo da conhecida juventude nazista, inviabilizava pela força as manifestações políticas dos adversários do governo.

Para culminar, fez mudarem a Constituição para tornar possível sua reeleição sem limites. Aliás, é uma característica dos regimes ditos revolucionários não admitir a alternância no poder. Está subentendido que sua presença no governo garante a justiça social com a simples exclusão da classe exploradora e, portanto, como são o povo no poder, não há por que sair dele.

Chávez intitulou seu regime de "revolução bolivariana", embora não tivesse feito qualquer revolução. O que fez, na verdade, foi dar comida e casa aos mais necessitados, o que, ao contrário de levar à revolução, leva à aceitação do regime pelos que poderiam se revoltar. Daí a necessidade de haver um inimigo, que ameace tomar o que eles ganharam. E o líder --Chávez-- está ali para defendê-los.

O azar dele foi o câncer que o acometeu e que ele tentou encobrir. Quando já não pôde mais, lançou mão da teoria conspiratória, segundo a qual seu câncer foi obra dos norte-americanos. Como isso ocorreu, nem Nicolás Maduro nem Evo Morales se atrevem a explicar.

De qualquer modo, tinha que se curar e foi tratar-se em Cuba, claro, para que ninguém soubesse da gravidade da doença, que o obrigaria a deixar o governo. Sucede que o câncer não cedeu à onipotência do líder, obrigando-o a ausentar-se da Venezuela e da chefia do governo, por meses seguidos. O povo venezuelano, naturalmente, desejava saber o que se passava com o seu presidente, mas nada lhe era dito.

No entanto, Chávez deveria disputar eleições em 2012 para manter-se no governo e, por isso, voltou à Venezuela dizendo-se curado. Foi reeleito, mas teve que voltar às pressas à UTI em Havana. Daí em diante, mais do que nunca, o sigilo foi total: está vivo? Está morto? Vai voltar? Não vai voltar? Pela primeira vez, alguém governou um país de dentro de uma UTI.

Chega a data em que teria que tomar posse, mas continuava em Cuba. Contra a Constituição, Nicolás Maduro, que ele nomeara seu vice-presidente, assume o governo, embora já não gozasse, de fato, da condição de vice-presidente, já que o mandato do próprio Chávez terminara.

Mas, na Venezuela de hoje, a lei e a lógica não valem. Por isso mesmo, o próprio Tribunal Supremo de Justiça --de maioria chavista, claro-- legitimou a fraude, e a farsa prosseguiu até a morte de Chávez; morte essa que ninguém sabe quando, de fato, ocorreu.

Durante o enterro, Nicolás Maduro anunciou que Chávez seria embalsamado e exposto para sempre à visitação pública, como Lênin e Mao Tse-tung. Um líder revolucionário de uma revolução que não houve. Não resta dúvida, estamos em Macondo.



segunda-feira, 18 de março de 2013

Indicação de Cinema para a Semana: “Fanny e Alexander", de Ingmar Bergman


Por Silvio Medeiros

“Alexander: Quem está atrás da porta?
Voz: É Deus que está aqui, atrás da porta.
Alexander: E não pode avançar um pouco mais?
Voz: Nenhum ser vivo deve ver o rosto de Deus.
Alexander: E o que é que você quer de mim?
Voz: Quero apenas comprovar que eu existo.
Alexander: Fico-lhe muito agradecido. Obrigadinho.
Voz: Pra mim, você não passa de um grão de poeira sem importância nenhuma. Sabia disso?
Alexander: Não.
Voz: Aliás, você é muito mau para sua irmã e seus pais, descarado diante dos professores e está sempre com pensamento ruins. Na realidade, não entendo por que é que eu deixo que você continue a viver, Alexander!
Alexander: Não?
Voz: O Sagrado! Alexander! (…) Deus é o mundo e o mundo é Deus. É muito simples.
Alexander: Eu peço muitas desculpas, mas se de fato é como você diz, então, eu também sou Deus!
Voz: Você não é Deus, de jeito nenhum. Você é apenas um pedacinho de merda, cheio de impertinência.
Alexander: Posso afirmar que sou menos impertinente que Deus…”

(Ingmar BERGMAN. Fanny e Alexander. RJ: Editorial Nórdica, 1985)

O filme “Fanny e Alexander”, do genial cineasta sueco Ingmar Bergman, é considerado uma obra-prima e uma de suas mais brilhantes produções cinematográficas, pois, num profundo mergulho sobre a alma humana, refletiu, com delicadeza e com perfeccionismo, sobre os enigmas, os prazeres e os terrores do universo infantil. 

Com 3 horas e 8 minutos de duração, a linha fundamental de “Fanny e Alexander” é auto-biográfica (e isto é flagrante no filme!). As crianças são encantadoras e inseparáveis: Fanny (Pernilla Allwin) e Alexander (Bertil Guve); a casa abastada onde ambas vivem é extraordinariamente burguesa. A avó, uma atriz riquíssima, é uma personagem quase mítica, que habita o apartamento de baixo. Em toda a casa há um mundo feminino que tudo domina. 

O teatro é um lugar onde as crianças brincam e procuram refúgio. O menino Alexander é, sem dúvida, um alter-ego de Bergman, experienciando o puritanismo hipócrita do pastor Vergerus (Jan Malmsipe), que vem a se tornar padrasto de Alexander, em contraponto aos prazeres mundanos que Alexander encontra nas saborosas refeições, no bom humor, na liberação, enfim, no bem viver da casa da avó. Vale ressaltar que o pai de Ingmar Bergman era pastor luterano, tendo castigado severamente o cineasta na infância.
 
Vários temas estão presentes no filme: amor, ódio, paixão, ressentimento, religião, angústia, neurose familiar, inveja, morte, entrecruzados de forma fulgurante com magia, humor e sensibilidade, celebrando, desse modo, o amor de Bergman pela arte cinematográfica. 


Para quem a arte, a obra e a vida são uma mesma e única coisa, Bergman resume “Fanny e Alexander” com essas belas palavras: “Penso nos meus tempos de menino com prazer e curiosidade (…) Minhas horas e meus dias viviam repletos de coisas interessantes, cenários inesperados, instantes mágicos. Ainda hoje posso percorrer a paisagem da minha infância e sentir de novo todo aquele passado de luzes, aromas, pessoas, aposentos, instantes, gestos, inflexões, vozes, objetos (…) O privilégio da infância é podermos transitar livremente entre a magia da vida e os mingaus de aveia, entre um medo desmesurado e uma alegria sem limites (…) Eu sentia dificuldade para distinguir entre o que era imaginado e o que era real…”


sexta-feira, 15 de março de 2013

A insistente arte de fazer o povo de bobo

Ocupe Wall Street: a “besta” não se deixa domar
 
Do Diário do Centro do Mundo
 
O texto abaixo é uma condensação de um ensaio intitulado “Consentimento sem consentimento: a teoria e a prática da democracia”, de um dos maiores intelectuais modernos, o americano Noam Chomsky. O Diário chama a atenção especial para um trecho em que Chomsky fala, apoiado em documentos confidenciais americanos,  do golpe militar no Brasil em 1964.
 
Uma sociedade democrática decente deveria ser baseada no princípio do consentimento dos governados. Essa idéia ganhou aceitação geral, mas pode ser contestada tanto por ser muito forte quanto por ser muito fraca. Muito forte, porque sugere que as pessoas devem ser governadas e controladas. Muito fraca, porque mesmo os governadores mais brutais precisam, em certa medida, do consentimento dos governados,  e geralmente o obtêm não apenas à força.
 
Estou interessado aqui em como as sociedades mais livres e mais democráticas têm tratado tais problemas. Durante anos as forças populares têm procurado obter uma fatia maior na administração de seus interesses, com algum sucesso ao lado de muitas derrotas. Entretanto, desenvolveu-se um corpo de pensamento para justificar a resistência da elite à democracia.
 
Essas questões foram tratados há 250 anos por David Hume em obra considerada clássica. Hume estava intrigado com “a facilidade com que os muitos são governados pelos poucos e a submissão implícita com que os homens cedem os seus destinos aos seus governantes”. Achava tal fato surpreendente, pois “a força sempre está do lado dos governados”.  Se as pessoas se dessem conta disso, sublevar-se-iam e derrubariam seus governantes. Chegou à conclusão de que o governo está baseado no controle de opinião.
 
Os governados têm o direito de consentir, mas nada mais além disso. A população é de espectadores, e não de participantes. Assim é a arena política. A população deve ser inteiramente excluída da arena econômica, na qual em grande parte se determina o que acontece na sociedade.
 
Tais questões só ganharam força especial a partir do primeiro levante democrático na Inglaterra do século XVII. A agitação da época é freqüentemente descrita como um conflito entre Rei e Parlamento, mas na verdade parte significativa da população não queria ser governada por qualquer dos concorrentes ao poder, mas “por cidadãos como nós, que conhecem nossas necessidades, e não por fidalgos e cavalheiros, que desconhecem as necessidades do povo e irão somente nos oprimir”, como declaravam em seus panfletos.
 
Tais idéias perturbaram os homens da melhor qualidade, como eles mesmos se intitulavam. Estavam preparados para conceder direitos ao povo, mas dentro de limites e ancorados no princípio de que “por povo não queremos dizer a ralé confusa e ignorante”, explicavam.
 
Mas como esse princípio fundamental da vida social poderia ser reconciliado com a doutrina do consentimento dos governados, doutrina que já não era então fácil de ser suprimida?
 
Uma solução para o problema foi proposta por Hutcheson, famoso filósofo moral contemporâneo de Hume. O filósofo argumentava que o princípio do consentimento dos governados não é violado quando os governantes impõem planos que são rejeitados pelo público, se mais tarde as massas “estúpidas e preconceituosas” consentirem calorosamente com o que foi feito em seu nome. Podemos adotar o princípio do consentimento sem consentimento.
 
Este ponto foi aprimorado nos Estados Unidos. Na Guerra das Filipinas, a imprensa afirmou que o americano estava massacrando os nativos à moda inglesa. Para dar a isso um tom adequadamente civilizado, um ensaísta americano engendrou seu próprio conceito de consentimento sem consentimento: “Se em anos vindouros [o povo conquistado] vier a admitir que a disputa fora pelo mais alto interesse de todos, será possível sustentar razoavelmente que a autoridade foi imposta com o consentimento dos governados, da mesma forma quando um pai impede a criança de correr para uma rua movimentada”.
 
A enorme indústria de Relações Públicas tem se dedicado ao controle da mente pública, como os líderes do mundo dos negócios descrevem a tarefa.
 
Alguns anos depois de Hume e Hutcheson os descreverem, os tumultos da massa popular na Inglaterra estenderam-se às colônias rebeldes da América do Norte. Os Pais da Pátria (Founding Fathers) também se sentiram perturbados, como os britânicos da melhor qualidade e quase com as mesmas palavras. Como um deles disse: “Quando menciono o público, eu quero dizer que aí incluo só a parte racional. O vulgar ignorante é tão incapaz de julgar os modos [do governo] como é incapaz de manejar suas rédeas”.
 
“O povo é uma grande besta que precisa ser domada”, declarou Alexander Hamilton. Fazendeiros rebeldes e independentes tinham de ser ensinados, às vezes à força, que os ideais dos panfletos revolucionários não deveriam ser levados demasiadamente a sério. O povo comum não poderia ser representado por cidadãos como eles mesmos [do povo], que sabem de suas agruras, mas por homens responsáveis.
A doutrina reinante foi expressa claramente por John Jay, presidente da Corte Suprema e do Congresso: “As pessoas que possuem o país deveriam governá-lo”. Resta uma questão: quem é o dono do país?
 
Os Estados Unidos são certamente o caso mais importante para se analisar, se quisermos entender o mundo de hoje e de amanhã. Uma razão é o seu poder incomparável. Outra, as suas instituições democráticas estáveis. Ao estudar história, não se pode construir experimentos, mas os Estados Unidos estão tão próximos quanto possível de um caso ideal de democracia capitalista de Estado.
 
O seu principal designer foi um astuto pensador político: James Madison. Madison salientou, nos debates sobre a Constituição, que se as eleições na Inglaterra “fossem abertas a todas as classes da população, o patrimônio dos proprietários de terra seria inseguro”. Uma lei agrária logo teria lugar, “dando terra aos sem-terra”. A responsabilidade primeira do governo é “proteger a minoria dos opulentos contra a maioria”, declarou Madison.
 
Madison previu que a ameaça da democracia provavelmente se tornaria mais aguda com o tempo devido ao aumento na “proporção daqueles que trabalham sob todas as agruras da vida e, secretamente, desejam uma distribuição mais eqüitativa de suas bênçãos”. Madison temia que esse contingente pudesse se tornar influente. Ele estava preocupado com os “sintomas de um espírito de nivelamento”, que já aparecera e advertiu sobre o “perigo futuro”, se o direito de voto colocasse o “poder sobre a propriedade nas mãos dos que não tinham parte nela”. Não se pode esperar que “aqueles sem propriedade ou com esperança de adquiri-la concordem suficientemente com seus direitos”, explicou Madison. Sua solução era manter o poder político nas mãos daqueles que “procedem da e representam a riqueza da nação, o conjunto de homens mais capazes”, em suas palavras, com o povo fragmentado e desorganizado.
 
O problema do espírito de nivelamento surge também no exterior, naturalmente. Aprendemos um bocado sobre a teoria democrática realmente existente, vendo como tal problema é percebido, especialmente em documentos internos secretos, nos quais os líderes podem ser mais francos e mais abertos.
 
Tomem o exemplo importante do Brasil, o colosso do Sul. Em visita realizada ao país em 1960, o presidente Eisenhower  assegurou aos brasileiros que “o nosso sistema de empreendimento privado socialmente cônscio beneficia o povo todo, donos e trabalhadores igualmente. Em liberdade, o trabalhador brasileiro fica feliz, com as alegrias da vida dum sistema democrático”.
 
Mas os brasileiros reagiram rispidamente às boas novas trazidas pelos seus tutores do norte. As elites latino-americanas são “como crianças”, informou o secretário de Estado John Foster Dules ao Conselho Nacional da Segurança, “praticamente sem capacidade para autogoverno”. Pior ainda, os Estados Unidos estão “muito mais atrasados que os soviéticos no controle sobre as mentes e emoções de povos não-sofisticados”.
Em outras palavras, achavam difícil induzir as pessoas a aceitar a doutrina americana de que os ricos devem pilhar os pobres, um problema de relações públicas ainda não resolvido.
 
O governo Kennedy enfrentou o problema mudando a missão das Forças Armadas da América Latina, que era de defesa hemisférica, para segurança interna, decisão que gerou conseqüências fatais, a começar pelo golpe militar no Brasil. As Forças Armadas brasileiras tinham sido consideradas por Washington como uma ilha de sanidade no país, e o golpe foi saudado pelo embaixador de Kennedy, Lincoln Gordon, como uma rebelião democrática.
 
“É a única vitória mais decisiva da liberdade na metade do século XX”, disse ele. Economista pela Universidade de Harvard, Gordon acrescentou que a vitória deveria “criar um clima muito melhor para investimentos privados”, dando uma visão mais aprofundada do sentido dos termos liberdade e democracia. Proteger o investimento privado dos Estados Unidos e o comércio é a raiz econômica que está no âmago do interesse político dos Estados Unidos na América Latina.
 
O exposto foi extraído de documentos secretos. O discurso público é, naturalmente, bem diferente. Se nos ativermos a ele, entenderemos pouco sobre o significado real de democracia, ou sobre a ordem global dos anos passados, bem como sobre o futuro, uma vez que as mesmas mãos continuam segurando as rédeas.
 
O padrão continua hoje. A violadora campeã dos direitos humanos no hemisfério é a Colômbia, também a principal destinatária da ajuda e do treino militar dos Estados Unidos nos anos recentes. O pretexto usado é a guerra às drogas, mas isso é um mito, como regularmente relatam grupos de direitos humanos que têm investigado o chocante número de atrocidades e os laços estreitos entre traficantes de narcóticos, proprietários de terras, militares e paramilitares.  O terror estatal devastou organizações populares e virtualmente destruiu o único partido político independente, assassinando milhares de ativistas, inclusive candidatos à presidência. Não obstante, a Colômbia é saudada como uma democracia estável, revelando mais uma vez o que significa democracia.
 
Meus comentários sobre as raízes madisonianas dos conceitos predominantes de democracia foram injustos num aspecto importante. Assim como Adam Smith e outros fundadores do liberalismo clássico, Madison foi pré-capitalista, e anticapitalista em espírito. Esperava que os governantes fossem “estadistas iluminados” e “filósofos benevolentes”, cuja sabedoria saberia discernir os verdadeiros interesses de seu país.
 
Madison, porém, logo percebeu o contrário: a minoria opulenta prosseguiu usando seu recém-adquirido poder, como Adam Smith havia descrito alguns anos atrás. Eles estavam decididos a perseguir o que Smith chamou de máxima vil dos patrões: “Tudo para nós e nada para o povo”. Por volta de 1792, Madison advertiu sobre o crescente estado capitalista em evolução estar “colocando a motivação de interesse privado no lugar do dever público”, levando à “real dominação dos poucos sob a aparente liberdade dos muitos”.
 
“É a minoria inteligente de homens responsáveis que deve controlar a tomada de decisões”, afirmou em meados do século passado o jornalista Walter Lippmann, em seus influentes ensaios sobre democracia. Lippmann foi também a figura mais respeitada do jornalismo norte-americano e célebre comentarista de assuntos públicos durante meio século. “A minoria inteligente é uma classe especializada, responsável pelo estabelecimento da política e pela formação de uma sólida opinião pública”, postulou Lippmann. “Ela deve estar livre de interferência do povo, que é de estranhos intrometidos e ignorantes”.
 
O público tem de ser “posto no seu lugar”, continuou Lippmann: “sua função é ser espectador de ação e não de participante, a não ser em práticas eleitorais periódicas, quando ele escolhe entre a classe especializada“.
Na Enciclopédia de Ciências Sociais, Harold Lasswell, um dos fundadores da ciência política moderna, advertiu que “a minoria dos inteligentes” precisa reconhecer a “ignorância e estupidez das massas” e não “sucumbir aos dogmatismos democráticos de os homens serem os melhores juizes de seus próprios interesses. Eles não são os melhores juizes, nós é que somos. As massas precisam ser controladas para seu próprio bem, e em sociedades mais democráticas, nas quais a força não é disponível, os gerenciadores sociais precisam se voltar amplamente para uma técnica de controle completamente nova, grandemente através da propaganda”.
 
Mas a grande besta é difícil de ser domada. Repetidamente tem-se pensado que o problema foi resolvido e que o fim da história foi alcançado, numa espécie de utopia dos patrões.
Isso lembra um momento notável das origens da doutrina liberal no começo do século XIX, quando Ricardo e Malthus , entre outras grandes figuras da economia clássica, anunciaram que a nova ciência tinha provado, com a certeza das leis de Newton, que os pobres só eram prejudicados quando tentávamos ajudá-los; e o melhor presente que poderia ser oferecido às massas sofredoras seria libertá-las da ilusão de que têm direito à vida.
 
Perto da década de 1830 parecia, na Inglaterra, que tais doutrinas tinham vencido. Mas surgiu um problema imprevisto: as massas não-inteligentes começaram a inferir: “Se não temos o direito de viver, então vocês não têm o direito de governar”. O exército britânico teve de enfrentar tumultos e desordem, e logo uma ameaça ainda maior se esboçou, quando os trabalhadores começaram a se organizar exigindo leis de fábrica e legislação social para protegê-los.
Mais para o fim do século, parecia a muitos que a ordem havia sido restabelecida, embora alguns discordassem. O famoso artista William Morris ultrajou a opinião respeitável ao declarar-se socialista numa palestra em Oxford. Ele reconhecia que “era opinião aceita que o sistema competitivo, ou salve-se quem puder, é o último sistema de economia que o mundo verá; é um sistema perfeito e, portanto, a finalidade foi com ele atingida”. “Mas se realmente a história está no fim”, continuou ele, “então a civilização morrerá”.  Morris recusava-se a acreditar nisso, a despeito de proclamações confiantes dos homens mais doutos. Ele tinha razão, como as lutas populares o demonstraram.
 
Jamais houve e nem haverá motivo para acreditar que somos coagidos por leis sociais misteriosas e desconhecidas, e não por decisões simplesmente tomadas dentro de instituições sujeitas ao desejo humano – instituições humanas que têm de enfrentar o teste da legitimidade e que, se forem reprovadas, podem ser substituídas por outras, mais livres e mais justas, como freqüentemente ocorreu no passado.