quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Freud se nutriu de Shakespeare, diz autor de estudo sobre o psicanalista

Sigmund Freud, em 1931, posando para o escultor Oscar Nemon em Viena
Sigmund Freud, em 1931, posando para o escultor Oscar Nemon em Viena


Por Raquel Cozer
Colunista da Folha

Um dos maiores escritores de língua alemã, Thomas Mann (1875-1955) sentia-se inquietado e apequenado pelo pensamento de Freud.

O artista é varado pelas ideias dele como se por um feixe de raios X, isso chegando à violação do segredo do ato criador, disse o autor de Morte em Veneza, em 1926, após admitir ter feito a novela sob influência direta de Sigmund Freud (1856-1939).

Narrada no recém-lançado Freud com os Escritores, a passagem ilustra um dos lados da íntima relação histórica entre psicanálise e literatura.

O outro ocupa a maior parte do livro de J.-B. Pontalis (1924-2013) e Edmundo Gómez Mango, 73, e trata de como Shakespeare, Goethe, Dostoiévski e outros, além de amigos como Mann e Stefan Zweig, ajudaram Freud a transmitir seu pensamento.Mango, professor de literatura, psiquiatra e psicanalista uruguaio em Paris, falou à Folha por e-mail.

Freud usava textos literários para traduzir ideias. Pode-se dizer que, mais que isso, ele não teria tido tais ideias sem esses textos?

Esse é um aspecto delicado. As nuances são várias. Freud confessa, por exemplo, temer encontrar na leitura de Nietzsche ideias que investigava. Encontra muitos de seus conceitos na ficção. Chamava os escritores de os avançados, os que exploraram antes aspectos importantes do conflito psíquico.
Mas partia de experiências pessoais: a escuta de pacientes e a autoanálise. O essencial vem dessas fontes.
Mas o trabalho do romantismo alemão na representação do sonho preparou o terreno para Freud. Ao mesmo tempo em que conserva algo do valor onírico do poeta romântico, rompe com ele na elaboração teórica de compreensão do sonho, indissociável da do sujeito dividido entre o eu consciente e suas forças inconscientes.

Como vê estudos que relacionam psicanálise e literatura?

A psicanálise permitiu novas abordagens críticas da literatura. Pontalis e eu não somos partidários da psicanálise aplicada à obra literária, enfoque redutor e formalista. A vida psíquica singular não é um texto que se possa ler e interpretar só a partir de significantes linguísticos.
É, porém, evidente que grandes críticos puderam compreender melhor o sentido e até a estrutura de algumas obras da literatura tendo em conta as contribuições fundamentais da psicanálise.

Os ensaios do livro tratam em grande medida da relação de Freud com o pensamento dos autores citados. Há também aproximação em relação ao estilo narrativo?

Quase no início de sua obra, Freud reconhece que, para descrever o que se dá na vida psíquica dos pacientes, para transmitir a clínica da neurose que está descobrindo, deve fazê-lo como os escritores, e não como os psiquiatras ou neurologistas da época.Me assombra, diz,que minhas histórias clínicas sejam lidas como romances.
Quando tenta se aproximar dos processos psicológicos que descobre no fundo dos sintomas neuróticos, aproxima-se quase involuntariamente dos escritores. Admira como seus contemporâneos, Stefan Zweig, Arthur Schnitzler (a quem via como um duplo de si mesmo), Thomas Mann, são capazes, aparentemente sem esforço, de transmitir as tendências mais poderosas e obscuras do psiquismo humano.
Também quando Freud narra seus próprios sonhos, é capaz de ceder sua pena de investigador ao escritor poeta que abrigava dentro de si.
Essa dualidade, escritor científico e literário, mantém viva até hoje a obra que revolucionou a concepção do homem moderno.

Dos autores citados no livro, quais tiveram maior influência sobre a obra de Freud?

J.-B. Pontalis aponta, com razão, que, para além das várias referências à obra de Shakespeare, Freud parece ter se nutrido dele, como se o tivesse incorporado. Assim que define como complexo de Édipo, além da referência à tragédia de Sófocles, convoca Hamlet como figura que mais bem o representa na literatura, exemplo do neurótico universalmente célebre.
Sobre Goethe, Freud confessa ter se voltado à medicina após escutar o poema A Natureza, então atribuído a ele. É talvez o poeta mais presente na obra de Freud, que chegou a enumerar os aspectos do escritor que mais influenciaram seu pensamento, como a compreensão da influência de impressões infantis e a concepção de amor. Freud considera Mefistófeles, personagem do Fausto goethiano, a encarnação de uma de suas ideias mais discutidas,a pulsão da morte.
Em Schiller, encontrou a antecipação de sua ideia do primeiro dualismo pulsional, entre as pulsões que se dirigem ao objeto, como a fome e o amor, e as narcisistas, ligadas ao eu.


terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Tímidos sem vergonha

Por Carol Castro
Da Super Interessante

Charlie Brown só queria um amor. O amor da menina dos cabelos vermelhos. No dia dos namorados, escreveu um cartão para ela. Ensaiou o momento da entrega, o tom de voz, os gestos. Mas o cartão nunca saiu do seu bolso. Ele nunca teve coragem de se declarar. Na verdade, ele nem sequer perguntou o nome dela. Charlie Brown é o tipo de sujeito que se esconde atrás da timidez. Nossa, ele quase recusou um convite para viajar à França (seria muita novidade por metro quadrado). Como diz aquela canção dos Smiths: "timidez é legal, mas pode te impedir de fazer tudo que você gostaria na vida".

Pode até ser. Mas ela é bem comum - talvez mais popular que o encabulado dono do Snoopy. "Muitas pessoas são tímidas, mas a maioria não sabe. E os mais tímidos pensam que só eles são tímidos, estão sozinhos no mundo", diz o americano Bernardo Carducci, autor de vários livros sobre o assunto. Pasme, na nossa cultura de falastrões, 50% se dizem tímidos. Dentro do seu círculo social, um em cada três amigos é introvertido (tecnicamente, quem possui traquejo social, mas precisa de solidão para recarregar baterias). É muita gente. Só que essa maioria silenciosa ainda veste, conscientemente ou não, máscaras de extroversão. O problema é que, por muito tempo, ser reservado foi um problema. Só os expansivos viravam chefes, ícones, modelos a ser perseguidos. Por sorte, o mundo andou. As qualidades dos quietos (concentração, produtividade e, por que não, bom senso) voltaram a ser valorizadas. E servem de lição até para os populares extrovertidos.

Ainda assim, a minoria silenciosa ainda se vê obrigada a responder se "está tudo bem?" quando resolve passar um tempo na sua. Culpa do século 20.

O IMPÉRIO DOS TAGARELAS

Há cem anos, o mundo tinha vários decibéis a menos. O rádio e a televisão ainda não faziam parte nem do sonho de consumo das famílias. A maioria da população ainda vivia no campo. Numa vizinhança rural de dez famílias, todo mundo era familiar - mesmo os tímidos e introvertidos.

Até que cidades nasceram, incharam e os vizinhos passaram de 30 para 300. O Seu Zé, dono da fazenda de café, amigo da família, que casou com a prima de segundo grau da sua mãe, não era mais o patrão. Os comerciantes também não vendiam apenas para os velhos conhecidos da região, como antes, mas para uma massa desconhecida. "Cidadãos transformaram-se em funcionários, enfrentando a questão de como causar uma boa impressão em pessoas com quem não tinham laços", explica a autora Susan Cain no recente livro O Poder dos Quietos.

E os extrovertidos acabaram se dando bem. Eles tinham o dom da comunicação: falavam mais, com segurança e simpatia. Vendiam-se melhor. Conquistaram corações, mentes, vagas, clientes e transformaram a extroversão num culto: todos precisavam ser tão brilhantes e radiantes quanto eles. Simplesmente porque dava mais certo.

Se antes os manuais de comportamento pregavam como ser mais formal, educado e ético, os livros de autoajuda do século 20 ensinavam como ser mais sociável. O primeiro best-seller dessa nova era veio dos EUA: em 1913, o ex-tímido Dale Carnegie lançou Como Falar em Público e Influenciar Pessoas no Mundo dos Negócios, que ensinava a usar a lábia para fazer sucesso profissional. Mas Carnegie acertou mesmo em 1936, quando estendeu o conceito de simpatia para a vida pessoal. Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas, um guia prático de extroversão, vendeu e ainda vai vender milhões mundo afora - está na 52ª edição brasileira. É o livro de cabeceira de Warren Buffett, um dos homens mais ricos do mundo e notório introvertido.

Carnegie não era o único porta-voz da extroversão. Revistas, jornais e outras dezenas de autores passavam lições sobre como aprender a falar (e sobre quais assuntos). O historiador Warren Susman comparou as qualidades mais destacadas nos manuais dos séculos 19 e 20. "Cidadania", "dever", "boas ações", "bons modos" e "honra", destaques dos anos 1800, praticamente sumiram de 1900 em diante. Deram lugar a adjetivos como "magnético", "fascinante", "atraente", "dominante", "enérgico". A diretriz mudou de "seja uma boa pessoa" para "seja alguém incrivelmente legal".

Na TV, as celebridades endossavam o culto à extroversão. A publicidade vendia os mesmos conceitos. Possuir uma personalidade introspectiva virou um defeito, coisa de gente estranha e fracassada. Mas mudar a chavinha de introversão para extroversão não era fácil. Nem todo mundo conseguia atuar no papel de desinibido, falastrão. Por um fator de peso: a genética.

COMO AS BOCHECHAS CORAM

É o primeiro dia no emprego novo e você encontra sua nova chefa. A amígdala, área do cérebro responsável por respostas automáticas, instintivas, liga o sinal de alerta. Ela libera adrenalina no sangue, acelera os batimentos cardíacos, dilata os vasos sanguíneos (inclusive no rosto, podendo deixar as bochechas vermelhas), deixam a respiração ofegante e transformam o combustível armazenado (açúcar e gorduras) em energia. Isso acontece em poucos segundos, após os quais o assunto chega ao neocórtex, responsável por formar decisões racionais. Ele avalia a situação. Não há perigo: é só sua nova chefa. Você sorri, estende a mão e a cumprimenta. O neocórtex venceu o duelo com a amígdala, dissipou as chances de um súbito ataque de timidez.

Nos introvertidos, as amígdalas parecem mais excitáveis - por isso eles são sensíveis a novidades. E isso, de alguma forma, faz com que sejam mais retraídos. Quem descobriu essa relação foi o psicólogo Jerome Kagan, da Universidade Harvard. Numa longa pesquisa, publicada há mais de 30 anos, ele acompanhou recém-nascidos até a infância. Na primeira etapa, expôs 500 bebês a estímulos desconhecidos, como ouvir vozes diferentes e ver móbiles em movimento. Uns 20% choravam muito forte, outros 40% nem se importavam, e 40% ficavam no meio termo. Aos dois, quatro, sete e 11 anos, as crianças participaram de novos testes para ver, outra vez, como reagiam às novidades. Além de observar os comportamentos, os pesquisadores mediram a taxa cardíaca, pressão e temperatura (todas controladas pela amígdala). Os bebês mais chorões acabaram se transformando nas crianças mais reservadas daquela turma. E também eram os que mostravam mais alterações nas tarefas coordenadas pela amígdala. Seu neocórtex demorava mais para vencer a discussão e acalmar o organismo.

Um estudo mais recente, da Universidade de Iowa, mostrou que os cérebros de introvertidos e extrovertidos relaxam de forma diferente. Nos introvertidos, o processo é comandado pela acetilcolina, neurotransmissor responsável por memórias e e elaboração de planos. Já os extrovertidos precisam de uma alta dose de dopamina, neurotransmissor ligado às sensações de prazer e recompensa.

Essas predisposições biológicas ajudam a compreender as diferenças de comportamento. A amígdala de um introvertido frita em um ambiente cheio de estímulos. Para os quietos, uma festa pode ser extremamente cansativa - o relaxamento deles tem a ver com agitos internos. No caso dos extrovertidos, sentar sozinho para ler um livro é que cansa, não traz relaxamento nenhum. Pouco sensível, sua amígdala precisa de mais coisa para se excitar - só cem tons de cinza para gerar dopamina suficiente.

A genética, claro, não determina os atos de ninguém. É como se ela fosse a estrutura da casa, e o revestimento, colocado por você, fosse a personalidade. Nem todos os bebês escandalosos do experimento de Kagan continuaram reservados na vida adulta. Carl Schwartz, outro psicólogo de Harvard, convocou alguns desses jovens adultos para novos testes. As amígdalas dos ex-chorões continuavam mais sensíveis, mesmo entre os que se tornaram mais gregários. Ou seja, sua genética não mudou, mas eles aprenderam a controlar suas reações. É como se, ao ouvir as queixas da amígdala frente a um desconhecido, a pessoa dissesse: "Calma, já passamos por isso antes. Estique o braço, cumprimente esse cara e tudo vai ficar bem". É possível, mas cansa.

ENFIM, AS VANTAGENS

As descobertas sobre a influência da genética no comportamento não são mera curiosidade. É a ciência afirmando que timidez não é doença, só um jeito diferente de funcionar. A internet também deu uma forcinha: falar com os dedos, num mundo virtual, sem a obrigação de resposta imediata, deixou os reservados mais confortáveis. E as pessoas se deram conta de uma coisa: ser introvertido tem suas vantagens.

"As pessoas estão mais abertas à ideia de que há uma força nas pessoas mais reflexivas", conta Beth Buelow, autora do blog The Introverted Entrepreneur (em português, O Empreendedor Introvertido). Força justificada pelas tais diferenças bioquímicas. Como sentem menos necessidade de se expor a estímulos novos, os introvertidos podem se concentrar melhor, dedicar mais foco à resolução de um problema.

Num experimento em que o psicólogo Richard Howard distribuiu labirintos impressos para um grupo de 50 pessoas, os introvertidos se saíam melhor. Não por inteligência, mas paciência: eles insistem mais nos desafios. Eles demoram mais para responder, mas, como seu cérebro trabalha mais com associações e memórias, tendem a encontrar respostas que não passariam pela cabeça de um desatento extrovertido. Essa extrema concentração, inclusive, faz com que introvertidos detestem ser interrompidos. E, por mais que se esforcem para trabalhar em grupo, se saem melhor em tarefas individuais.

Os tímidos, diferentemente dos "destemidos", não costumam trocar razão por emoção. "Sensibilidade à recompensa não é apenas uma característica interessante da extroversão; ela é o que faz um extrovertido ser extrovertido", escreve Cain.

Essa ousadia pode render bons frutos, como transformar a mercearia do bairro em uma rede de supermercados. Mas essa atração por riscos pode desligar a chave da sensatez. "Já vi negociações em que os líderes fecham acordos ou compram empresas por preços absurdos, só para sentir o prazer da vitória. Depois se perguntam por que fizeram aquilo", escreve o autor Bernardo Carducci. Isso acontece quando a amígdala vence o duelo com o neocórtex. Além de dar voz ao medo, ela pode insistir para que você dê vazão a outros instintos, como desejo e prazer. É por isso também que extrovertidos batem mais o carro e pulam mais a cerca. Desses males, pelo menos, os introvertidos sofrem menos.

Por outro lado, um perfil pouco ousado e mais calado não se enquadra naquele estereótipo típico de chefe - o cara que é "magnético", "dominante", "enérgico"... Mas tudo bem. Colocar introvertidos no comando tem outras vantagens. Um estudo de pesquisadores de Harvard descobriu que funcionários proativos liderados por extrovertidos se abstêm de dar opiniões. Com introvertidos, acontece o oposto: eles não temem conflitos com a chefia e se sentem livres para palpitar. E, quando fazem, os lucros aumentam.

Os introvertidos têm ainda mais um trunfo nas relações pessoais. Com essa mania de passar mais tempo calados, observar mais do que agir, eles viram bons ouvintes. (Um extrovertido tem sua atenção desviada com mais facilidade, se perde na conversa e nem sempre compreende de verdade qual é o problema.) Além disso, a sensibilidade aguçada faz deles observadores perspicazes, do tipo que estuda sua expressão facial, repara no tom da sua voz e percebe antes de um falastrão quando algo não vai bem.

BANG-BANG A YIN-YANG

Mas devagar com a amígdala. Assim como foi errada a supremacia da extroversão no passado, não cabe declarar esta a Era dos Introvertidos. São perfis opostos que não se anulam, se complementam. E mais: um tem muito a aprender com o outro. "Não adianta um introvertido criativo e focado se esconder na concha e não conversar com ninguém sobre seu trabalho. Precisa se esforçar minimamente para interagir um pouco", explica Eliete Bernal Arellano, professora de psicologia organizacional da Universidade Mackenzie. É o que fazem, sem nenhum esforço, os extrovertidos. Em troca, eles podem adotar alguns bons comportamentos dos introvertidos: como manter o foco sem ter de sair, angustiado, para um café a cada 20 minutos. Juntos, os dois podem evitar o excesso de comodismo dos quietos e o risco exagerado dos ousados.

Nos relacionamentos, é preciso entender que introvertidos não ficam quietos porque se chatearam ou enfrentam algum problema. Às vezes, só estão cansados. Mas que aprendam com os extrovertidos: é preciso se esforçar para cultivar relações, seja para conversar com a família do namorado ou apresentar um projeto no trabalho. Mesmo que isso obrigue você a passar o fim de semana em casa reabastecendo energias.

O mundo não seria muito agradável se todos vivessem em busca de prazer a todo custo, se todos falassem sem parar e mal tivessem tempo para ouvir um ao outro. Ainda que o exemplo seja perigosamente real, seu oposto também seria um saco: um marasmo insuportável se todos se enclausurassem e ninguém fosse à esquina jogar conversa fora. Por sorte, temos todas as variações. Juntos é que introvertidos e extrovertidos são mais divertidos.


segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Quero ser Águeda Cabral


Neste domingo (23), faleceu a professora do Departamento de Comunicação Social da UEPB, Águeda Cabral. A docente sofria de um câncer de pele muito agressivo, que foi para o sistema linfático. Não conheci Águeda muito de perto e não cheguei a ter aulas com ela, mas essa professora me ensinou muito, certamente bem mais do que se com ela em uma sala de aula estivesse. 
Águeda me ensinou sobre o amor entre as pessoas - logo eu, tão sem paciência para o trato social, tão cansada do que julgo muito traquejo e conveniência e pouca verdade e respeito. Ela mobilizou uma Universidade e depois uma cidade inteira, amigos, colegas, alunos e desconhecidos que participaram da "Flor da Pele - Ação entre Amigos", campanha que ajudou no seu tratamento e foi desenvolvida no Facebook. Ontem, antes de dormir, pensei comigo mesma: se Deus existe, nessa noite ele ouviu inúmeras orações em nome de Águeda para que o Pai  a receba com carinho entre os seus. E, naquele momento, por ter inspirado tanto amor, tanta admiração, eu desejei ser ela. 
Eu quero ser Águeda Cabral porque não tenho visto em mim a força dela. Tenho tanto medo da vida. Tenho tanto medo da morte. Nos dias bons, não deixo de invocar o universo e pedir que minha vida congele, para que não perca o emprego, para que uma doença não me assole, para que minha família permaneça intacta, para que ninguém que amo morra. Eu me pergunto se teria a coragem de não desistir. De fazer como ela, frente à um chamado da morte. A morte chamou, Águeda foi gentil com ela, mas não a abraçou, convidou-a para um passeio. A tempestade chegou, e eram perigosas suas promessas, mas Águeda não se desesperou, resolveu brincar na chuva (e chamou os demais para brincar). 
Eu quero ser Águeda Cabral porque minha fé na vida e nas pessoas já não é mais a mesma. Porque quando eu tenho uma dor de cabeça, desejo que o mundo se exploda e me leve junto. Porque deixei de assistir noticiários para não chorar todos os dias - por sermos nós humanos o que somos, tão longe, infinitamente longe do que poderíamos ser. Porque quando estou sem dinheiro no final do mês, fico irritadiça. Imagine não ter dinheiro suficiente para o próprio tratamento, posto que infelizmente, dinheiro às vezes compra saúde. Porque quando vejo pessoas que só têm amigos ricos, penso que isso não é amizade, é negócio, é contrato, é querer ter vantagens e quando vejo pessoas que só têm amigos pobres, imagino os próximos candidatos nas eleições. Eu quero ter o sorriso confiante e doce dela, mesmo nos últimos dias. Esse sorriso tranquilo é coragem, é crença em todos nós, é amor por existir. 
Foram de verdade lindas as mensagens deixadas por ela. A vida não é uma brincadeira, mas é possível sorrir mesmo nos momentos mais duros. Há muitas pessoas amargas, mas mesmo elas são capazes de se solidarizar, de se sensibilizar, de ajudar. Águeda provocou o que há de melhor em nós. Dizem que esse é o sentido da vida, estimular ao redor os sentimentos nobres. É por isso que se ela estivesse em um romance seria minha heroína favorita.  E que me desculpem os suicidas ou aqueles que entregam os pontos quando se vêem enredados em graves problemas - afinal, cada um sabe da sua dor - mas enfrentar a vida, ter a dignidade de ir até o fim, de cabeça erguida, é fundamental. 

* A autora desse texto é aluna do curso de Comunicação Social da UEPB e pediu para não se identificar.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

O repóter apegado e outras histórias...


Do apego

“O repórter apegado é uma figura digna de pena dentro do ambiente da redação. A vontade das pessoas é dizer para ele: ‘tá se achando artista? Vai virar escritor’, numa fúria digna daqueles usuários de transporte público que se irritam quando alguém reclama do calor ou da falta de espaço. ‘Quer ventinho? Vai de táxi.’ A tréplica mais evidente é que, bem, eu até iria, mas me faltam certas condições.
O repórter apegado briga por vírgulas e chora porque a ordem de uma frase foi alterada de forma pouco lisonjeira. Alguns tremem quando um parágrafo inteiro é amputado (o que acontece simplesmente o tempo todo). Quando um amigo elogia seu artigo, o repórter apegado faz questão de ressaltar exatamente que frases e estruturas foram alteradas em relação ao original. O amigo geralmente se arrepende do elogio e vai buscar uma coxinha. Uma vez, soube de um repórter apegado que abordou uma senhora lendo o jornal no metrô para esclarecê-la sobre a injustiça de certas alterações sintáticas. A moça disse que só estava lendo o horóscopo na página ao lado e mudou de lugar. Em seus sonhos mais audaciosos, o repórter apegado invade a redação logo após o fechamento e encomenda trocas para a gráfica: altera linhas finas, muda todo o direcionamento da matéria.
O comportamento certamente é mais comum em jovens, mas não sei dizer se com o tempo as pessoas ficam mais cínicas, mais evoluídas ou apenas tentam outra profissão. Talvez fiquem cínicas, evoluídas e virem editoras.”

Extraído do blog Já Matei por Menos, de Juliana Cunha

Perfeccionismo

“Se eu almejar uma vida ideal, terei que me basear em vidas alheias, pois o ideal é fruto de uma racionalização coletiva e consagrada, enquanto que se eu me contentar com uma vida possível, volto a assumir algum controle sobre os royalties das minhas decisões. O que não impede que ela seja ótima, a mais adequada para o fôlego que tenho, a mais realizável dentro de minhas ambições, a menos sofrida, já que regulada pelo autoconhecimento que adquiri até aqui. Tenho como manejar uma vida possível de um jeito que jamais teria de manejar uma vida perfeita, até porque vida perfeita não é deste mundo, e o sobrenatural é matéria que não domino.”

Trecho da crônica A Melhor Vida Possível, de Martha Medeiros

A dor dos bichos dói menos que a nossa?

“Todos os argumentos para provar a superioridade do homem não podem quebrar essa dura realidade: no sofrimento, os animais são iguais a nós.”

Do filósofo australiano Peter Singer

Revelações

“Homem e mulher na cama.
- Foi bom?
- Foi.
- Muito bom ou só bom?
- Francamente, eu…
- Está bem. Me dá uma nota. De zero a dez, que nota você me dá?
- Sete.
- Sete?!
- Você quer que eu minta, Haroldo? Estou sendo franca. Você me pediu uma…
- Peraí. Que foi que você disse?
- Eu disse que estava sendo franca.
- Não, antes. Você disse ‘Você quer que eu minta, Haroldo’.
- É.
- O meu nome não é Haroldo!
- Não é?
- Grande. Você me confundiu com outro.
- Se você não é o Haroldo, então quem é?
- E eu vou dizer? Com nota sete, eu vou dizer quem eu sou?”

Trecho de Pelo Haroldo!, crônica de Luis Fernando Verissimo


No tempo da inocência

“Quando eu era pequena, não entendia por que o governo mandava todo mundo usar camisinha. Apareciam uns artistas na tevê repetindo a recomendação federal muito sérios, como se fosse uma questão de vida ou morte, e nunca explicavam ao certo o que havia de errado com o restante do guarda-roupa. E mais: qual o tamanho máximo do referido item da indumentária, em proporção ao torso do indivíduo? Qual a diferença entre camisinha, camiseta e camisola? Eu realmente imaginava cidadãos em trajes muito apertados, cumprindo seus deveres cívicos, e olhava desconfiada para os que andavam por aí com roupas folgadas. Um pouco mais tarde, encontrei umas edições velhas da revista Capricho e fui me instruir. Àquela altura, as crianças da rua já circulavam informações mais precisas sobre a origem dos bebês (sem repolhos ou cegonhas nessa equação), mas pairava uma certa dúvida sobre o verdadeiro significado de sexo oral: seria só ficar falando sacanagem ao telefone? Teria algo a ver com dentistas?”

Trecho da crônica Anfíbios Fazem, de Vanessa Barbara 
Boba?

“Encontrei uma garota. Meio bobinha. (…) Ela falou um monte de besteiras. Mas uma coisa me chamou atenção, ela não estava defendendo nada, sustentando nenhuma opinião, ou acusando alguém – ela apenas estava lá, como uma árvore ou um gato. E eu  me senti absurdamente abstrato do lado dela.”

Trecho da peça Depois da Queda, de Arthur Miller


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*Excertos retirados do blog do jornalista Armando Antenore.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

A caixa preta


Por Norval Baitello Júnior
Da Revista Cult


Furar o bloqueio dos editores alemães

Quando o livro finalmente saiu, depois de tantas tentativas de furar a barreira dos editores alemães, foi um sucesso inesperado. E causou uma polêmica ainda mais inesperada, uma verdadeira onda flusseriana, com críticos implacáveis (coisa que ele sempre apreciava) e com defensores irredutíveis. Für eine Philosophie der Fotografie (Por uma filosofia da fotografia) saiu em 1983 pela European Photography (uma pequena editora, sim, mas com uma vocação bem direcionada, um público escolhido a dedo e publicações com esmero artístico). O autor, quem seria esse Flusser?, passa a circular performaticamente em eventos de potencial explosivo, contradizendo o discurso hegemônico de demonização da técnica e seus produtos, cada vez mais presentes no dia-a-dia das pessoas. Era um sobrevivente tardio da catástrofe do programa de Auschwitz (quem não se lembrava?) que, depois de 30 anos convivendo com tupiniquins e tupinambás na selvagem São Paulo, também sobrevivera a uma ditadura militar? E estava agora a fazer uma filosofia sem citações nem notas de rodapé, nem ao menos bibliografia, uma autêntica filosofia tupinambá, não escolar? Mas em suas aparições públicas contestava ícones globais e locais com atrevidas e embaraçosas questões a contrapelo. Bem, o “livrinho” (apenas 77 páginas, 84 páginas na versão brasileira da Hucitec, de 1985) fez e faz carreira pelo mundo. Está traduzido em mais de vinte línguas estrangeiras e só a versão alemã já tinha 11 reedições em 2011. E em sua esteira foram publicados outros livros do autor, que se revelava versátil e muito produtivo, mas sobretudo ousado. E as editoras alemãs que lhe haviam batido as portas na cara por vinte anos (a vasta correspondência dá provas das inúmeras e hoje inacreditáveis recusas, nem sempre educadas), agora o cortejavam.
Em 1985 sai a versão brasileira, traduzida pelo próprio autor, com o título menos transparente de Filosofia da caixa preta. É o mesmo livro, mas reescrito. O português se tornara também sua língua. E sua copiosa obra de fundo – seus inúmeros cursos sobre filosofia, arte e cultura grega, cristã, judaica, todos zelosamente datilografados ao longo da vida com cópia carbono – foi escrita toda apenas em português (e continua inédita no arquivo que agora retorna a São Paulo, depois de sua partida para o último desterro, em 1973).

O aparato como um animal feroz

É, sem sombra de dúvida, um livro instigante, pioneiro, ousado, que apresenta na fotografia a grande ruptura de um paradigma perceptivo ocidental. E vê na câmera fotográfica não mais uma ferramenta ou uma extensão do olho, mas um aparato que contém um programa que sabe muito mais que seu usuário ou, na terminologia de Flusser, faz do usuário seu “funcionário”. Tal tema do complexo aparato-operador já seria por si suficiente para demolir muitas crenças na autonomia de decisão do homem no mundo moderno, em sua crença na autodeterminação. Contudo, é também um livro de outras incontáveis possibilidades de leitura. É uma demonstração prática de “ciência arqueológica”, faz escavações conceituais notáveis, como o paralelo entre o gesto de fotografar e o bote (ilustra-o com a etimologia da palavra “aparato”, que vem do latim apparatus, com o significado de “preparativo”, como um estar à espreita). Diz Flusser: “Esse caráter de animal feroz prestes a lançar-se, implícito na raiz do termo, deve ser mantido ao tratar-se de aparelhos”.

A caixa preta e a obscuridade que programa nossas escolhas e decisões

A outra escavação conceitual é a própria “caixa preta”, que já consta no corpo da versão alemã como na brasileira, mas na brasileira é o próprio título. A caixa preta é um sistema tão complexo que não se permite decifrar. Sabe-se dele apenas que funciona quando o acionamos – e isso nos basta, somos apenas funcionários! –, mas não se sabe como o faz. A natureza de caixa preta dos aparatos faz deles brinquedos e é apenas brincando que podemos explorar suas infinitas possibilidades. Isto porque tais caixas pretas também “brincam de pensar” mimetizando o próprio pensamento humano. É também metáfora do lado obscuro da civilização e seus avanços técnicos (talvez um diálogo ou uma crítica sutil a Walter Benjamin?). A caixa preta pode ser lida, ainda, como uma reunião de saberes secretos acessíveis apenas aos iniciados, ou seja, seus programadores, com um possível entendimento que as luzes da racionalidade e sua transparente demonstrabilidade encerraram sua breve carreira com o advento das imagens técnicas e seus aparatos que tomam decisões previamente programadas. O triunfo do livre arbítrio transforma-se no triunfo da heterodeterminação: só posso querer aquilo que o programa anteriormente quis que eu quisesse.

Magia, desmagia, nova magia: imagem, escrita e imagem técnica

Os outros desdobramentos abertos por sua “Filosofia” são aqueles ligados ao tema da imagem e seu papel no emergir do homem pré-histórico, da escrita no emergir do homem histórico e da imagem técnica no emergir do homem pós-histórico. A imagem tradicional é aquele registro icônico de cenas da vida humana, é feita pelo gesto do desenho e da pintura que deixa rastros sobre superfícies. Ela cria ambientes culturais, deuses, temporalidades, espacialidades e processos cognitivos próprios. Está vinculada a um mundo que se manifesta na forma de ciclos que sempre retornam. Ela é registro desses ciclos, das passagens pelas quais transitamos e às quais retornaremos.  A imagem tradicional magiciza o mundo quando o transpõe para a superfície, permitindo que sempre retornemos o olhar para ela, em algum ponto específico ou para o todo, em uma operação que reproduz nos movimentos do olhar a reversibilidade do tempo, dos ciclos do eterno retorno.
Mas a imagem tradicional vai se transformando aos poucos em signo abstrato e passa a apenas evocar uma imagem (virando pictograma), uma ideia (virando ideograma) ou um som (virando letra alfabética). Deixa de ser um plano, superfície a ser olhada circularmente, passa a ser linha que deve ser seguida com os olhos sempre em uma única direção. A imagem é rasgada em tiras. E tal imagem rasgada em tiras desmagiciza o mundo. Nasce aí outro pensamento, linear, lógico, histórico. Não mais somos idólatras, adoradores de imagens. Seremos daí em diante textólatras, adoradores de textos e escrituras que apresentam um caminho unívoco, sem retorno, uma caminhada linear, sempre voltada para um ponto de fuga previamente calculado, almejado, ambicionado ou desejado. Tal civilização gera grandes abstrações que se constituem em um sistema de saber lógico chamado ciência. E a ciência desenvolve aparatos cada vez mais elaborados e complexos para realizar tarefas diversas, desde as mais simples até as mais refinadas, difíceis e demoradas. Incluem-se aí aquelas de registrar, fixar, capturar coisas, transformando-as em imagens.
Mas tais imagens, diz Flusser, já não têm muito mais a ver com suas ancestrais, pois são imagens técnicas, frutos de processos lógicos, conquistas do pensamento racional e científico. Não são mais superfícies, nem são mais linhas, mas são pontos, grãos, grânulos ou “cálculos” que se coagulam, dando a impressão de planos ou linhas. São “abstrações de terceiro grau” (enquanto as imagens tradicionais são “abstrações de primeiro grau”), pois nascem a partir de um triplo processo de filtragem (ou de cifragem) das coisas que pretendem representar. São abstrações a partir da escrita, que é uma abstração a partir da imagem tradicional, que por sua vez já é uma abstração das coisas que quer apresentar. Em muitas de suas conferências, Flusser define o que é uma “abstração” também etimologicamente, como sendo nada mais, nada menos que uma “subtração”. Assim, as imagens técnicas são triplas operações de subtração. Por isso, tanto elas como as imagens tradicionais que são vistas como se fossem janelas para o mundo não passam de janelas para elas mesmas; são, a rigor, “biombos”. Por passarem a ilusão de serem janelas, evocam a crença em sua objetividade (quem já não ouviu a frase “as imagens não mentem”?). Diz Flusser: “Seu propósito é serem mapas para o mundo, mas passam a ser biombos. O homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função de imagens”. Isto deve-se também ao fato de que elas remagicizam o mundo, mas não como o faziam suas ancestrais pré-históricas. Com suas próprias palavras: “É magia de segunda ordem: feitiço abstrato”.
Assim, a função da fotografia (e com ela o cinema, a televisão e todos os posteriores desenvolvimentos da imagem técnica) não é outra que remagicizar os textos que haviam desmagicizado as imagens tradicionais. Com isso, elas devem também substituir a consciência histórica introduzida pela escrita por uma consciência mágica de um novo tipo e trocar a capacidade conceitual por uma nova capacidade imaginativa subordinada, desta feita não mais aos deuses do pensamento mítico, mas aos programas gerados por funcionários e instalados no interior das caixas pretas.

*Norval Baitello Júnior é doutor em Comunicação pela Universidade Livre de Berlim e professor titular na Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

A cultura é inútil, felizmente


O filósofo italiano Nuccio Ordine. / EFE

Por Juan Peces 
Do El País

O noticiário policial de 26 de dezembro de 2013 em Paris relata que um escritor desesperado, farto de instituições indiferentes à sua paixão pela cultura, arremessou seu carro contra os portões gradeados do Palácio do Eliseu. O motorista, Attilio Maggiulli, não pôde suportar o que considerava um desprezo oficial ao projeto da sua vida, o Théâtre de la Comédie Italiénne – que perdeu quase 50% de financiamento público em três anos –, e não encontrou melhor maneira de apresentar suas queixas do que carimbar sua indignação contra a residência oficial da presidência da República Francesa.

Até aqui tem-se o resumo da história de Maggiulli. A notícia remete, no entanto, à história de outro escritor indignado, o professor italiano Nuccio Ordine (nascido em Diamante, região da Calábria, daí o nome Diamante Ordine em sua certidão de batismo). Com personagens iguais ou parecidos – uma cultura apunhalada, uma educação asfixiada e um povo adormecido –, Ordine, de 55 anos, preferiu usar a palavra para atacar a ignorância das instituições e alertar sobre seus efeitos para a cidadania. Se deixarmos que nos roubem o legado de nossos antepassados e que se mutile o conhecimento, alerta, não apenas deixaremos de ser pessoas cultas, como também todas as gerações futuras deixarão de ser pessoas em sentido estrito.

O veículo usado por Ordine para seu grito profético é o manifesto chamado L'utilità dell'inutile (“A utilidade do inútil”, semtradução no Brasil). Na Espanha, o ensaio foi publicado por Jaume Vallcorba, fundador das editoras Acantilado e Quaderns Crema, e traduzido pelo professor de Filosofia Jordi Bayod Brau.

Ordine, professor de prestigiosas universidades, especialista em Renascimento e diretor de várias coleções de clássicos da editora Belles Lettres, de Paris, se diz “emocionado” pela recepção de seu livro em Barcelona, onde foi apresentado recentemente, e em Madri (onde foi apadrinhado por Fernando Savater). “As pessoas me abraçavam e me agradeciam. Um estudante me disse: ‘Decidi estudar Filosofia e Paleografia contra a vontade de meu pai, que me perguntava para que isso servia. Seu livro confirmou minha decisão”, relembra.

A tese central do livro pode ser resumida na ideia de que a literatura, a filosofia e outros conhecimentos humanísticos e científicos, longe de serem inúteis – como se poderia deduzir por seu progressivo isolamento nos planos educacionais e nos orçamentos ministeriais –, são imprescindíveis. “O fato de [tais conhecimentos] serem imunes a qualquer expectativa de benefício” representa, segundo o autor, “uma forma de resistência aos egoísmos do presente, um antídoto contra a barbárie do útil, que chegou a corromper inclusive nossas relações sociais e nossos afetos íntimos”.

Como em um coro grego, Nuccio Ordine monta uma defesa do conhecimento apoiando-se nos autores que o precederam em sua empreitada. Dante, Petrarca, Moro, Campanella, Bruno, Bataille, Keynes, Steiner, García Márquez, Cervantes, Shakespeare, Platão, Sócrates, Sêneca, Heidegger, Cioran, García Lorca, Tocqueville, Hugo, Montaigne... Eles são recrutados e contextualizados para mostrar “o peso ilusório da posse e seus efeitos devastadores sobre a dignitas hominis, o amor e a verdade”.

Por que este livro? “Há 24 anos venho tentando convencer meus alunos de que não se frequenta a universidade para obter um diploma, mas para tentarmos ser melhores, isto é, para aprendermos a raciocinar de forma independente.” Para Ordine, a transmissão do amor pelo conhecimento é um esporte de combate. E isso implica desmontar algumas ideias materialistas difundidas pelo sistema capitalista. “As pessoas pensam que a felicidade é um produto do dinheiro. Estão enganadas!”, afirma.

Tal pretensão já se estendeu para todos os âmbitos. “O utilitarismo invadiu espaços aonde nunca deveria ter entrado, como as instituições educativas”, denuncia o professor. E alerta: “Quando se reduz o orçamento para as universidades, escolas, teatros, pesquisas arqueológicas e bibliotecas, a excelência de um país está sendo diminuída, eliminando qualquer possibilidade de formar toda uma geração”.

O autor também se apoia em um discurso de Victor Hugo – em 1848! – diante da própria Assembleia Constituinte da França, onde o escritor pronunciou estas palavras: “As reduções propostas no orçamento especial das ciências, das letras e das artes são duplamente perversas. São insignificantes do ponto de vista financeiro, e nocivas de todos os outros pontos de vista”. Ordine diz que, ao ler esse discurso, deu um pulo até o teto e se apropriou das teses de Hugo ao afirmar (exclamar, na verdade) que “nas épocas de crise é que se deve dobrar o orçamento para a cultura!”.

O manifesto inclui também um texto premonitório de Abraham Flexner, publicado em 1939, que prega a importância da ciência. “Queria que ficasse claro que a defesa do inútil [o que não é ligado ao objetivo de lucro] não diz respeito somente a escritores e humanistas, mas é uma luta que também preocupa os cientistas”, explica Ordine. “O Estado não pode renunciar à ciência básica [por causa dos benefícios advindos]; por isso escrevi um capítulo dedicado às universidades entendidas como empresas.”

A Utilidade do Inútil não é apenas uma série de argumentos contra a tendência ao utilitarismo ou o “comércio satânico” (Baudelaire): é também um manual para superar o que o autor do livro chama de “o inverno da consciência” e para lembrar, com Montaigne, que “é o desfrutar, não o possuir, que nos faz felizes”.

Currículo brilhante

-Nuccio Ordine é filósofo e professor de literatura italiana da Universidade da Calábria.

-Lecionou na Universidade Yale, na Universidade de Nova York, na Sorbonne (Paris) e no Instituto Warburg (Londres).

-Desde 2012, é cavaleiro da Legião de Honra francesa.

-A Utilidade do Inútil é o seu mais recente ensaio.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Praticamente uma pessoa


Por Juliana Zambelo
Ilustração: Guilherme D'Arezzo
Da Revista Vida Simples

O ser humano sempre teve dificuldade de ver o mundo por um ponto de vista diferente do seu. Fazemos isso como indivíduos, julgando amigos e até quem não conhecemos por meio de nossos valores pessoais. E fazemos isso como espécie, impondo nosso modo de vida e nossas vontades aos outros animais - inclusive aos nossos bichos de estimação. Em meio a todo o amor e conforto que damos para eles, embutimos uma série de cuidados e hábitos que fazem sentido apenas para nós, humanos. Algumas vezes, com a melhor das intenções, provocamos até mal-estar e sérios problemas de saúde e comportamento.

Essa transferência de necessidades e vontades humanas para os animais é chamada antropomorfismo, mas é popularmente conhecida como humanização. Segundo Rúbia Burnier, veterinária e terapeuta comportamental de animais, essa é uma tendência antiga que vem se intensificando rapidamente nos últimos anos. "Das últimas duas décadas para cá, a humanização passou a ser institucionalizada, porque o comércio aposta muito nessas projeções humanas das nossas necessidades para os animais. Há uma pressão do mercado hoje para que cada vez mais a gente humanize o animal", diz.

Essa pressão não é pequena: vem de um mercado que cresceu 16% no Brasil em 2012, faturando R$ 14,2 bilhões, segundo a Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (Abinpet). Esses valores incluem produtos como ração, roupas, acessórios, brinquedos, remédios e serviços como banho, tosa, hotel e passeadores. Somos o segundo país que mais gasta com seus bichos de estimação, atrás apenas dos Estados Unidos.

Para Larissa Rüncos, veterinária especialista em comportamento, a humanização tem dois lados. A face positiva é a empatia. "A pessoa vai visualizar sentimentos ou emoções humanas nos animais, e por isso tratar bem." A negativa aparece quando o animal é tratado como um ser humano - muitas vezes como um bebê - e tem seu comportamento instintivo desconsiderado e muitas vezes até repreendido. Quantas vezes não vemos cães impedidos de correr e rolar na grama para que não se sujem?


Menos água e sabão

Entre as atitudes muito comuns hoje em dia, são equívocos os banhos semanais e o colo constante. Larissa afirma que banhos seguidos são prejudiciais para gatos e cachorros. Para ela, a não ser que o animal tenha uma condição médica que exija isso, ele não deve tomar banho toda semana. "Você tira toda a característica de cheiro e oleosidade da pele, que para eles é muito importante. Isso atrapalha o cão do ponto de vista comunicativo, ele se sente descaracterizado como indivíduo, e pode levar a problemas de pele por tirar a proteção natural do pelo", explica a veterinária. Após o banho, o cachorro leva dias para recuperar seu odor próprio, e quando finalmente está conseguindo, vai novamente para o sabão. Não existe uma frequência ideal de banhos para todos os animais; isso vai depender
do tipo de vida que ele leva e do local onde vive. Mas, em geral, a veterinária recomenda um por mês. "Se a gente quer ter cachorro, tem de respeitar que ele tenha um cheiro próprio."

Para os cães, colocar perfume em seu pelo após o banho é um crime. "Eles têm uma capacidade olfativa muito maior do que a nossa, então, para um perfume ser sentido por nós, para o animal ele vai estar muito forte." Com isso, ele fica impedido de farejar coisas e de se guiar pelo olfato, que é uma das grandes vantagens e alegrias de ser um cachorro. Gatos também sofrem com a descaracterização de um banho, em especial se vivem em um ambiente com outros felinos. "O gato que volta do banho não é mais reconhecido como membro do grupo; você quebra totalmente o vínculo entre eles", afirma Larissa.


No chão

Os bichos são fofinhos, lindinhos, dá vontade de pegar no colo e ficar apertando o dia inteiro. Mas, para o bem deles, precisamos aprender a nos conter. Faz mal para todos esses animais, ficar grudado no seu dono ganhando carinho o tempo inteiro.

Entre os problemas de comportamento que podem surgir desse hábito está a agressividade contra outras pessoas e animais. Em alguns, pode gerar também possessividade e ciúme. "Essa humanização cria uma dependência muito grande. Aumenta a ansiedade deles e a falta de função - o animal não tem mais função além de promover afeto. Aí começam a surgir a ansiedade de separação, a síndrome de abandono, comportamentos compulsivos", diz Rúbia Burnier. "Estamos em uma época de muita carência, as relações estão difíceis, as pessoas estão estressadas. O animal promove de forma muito simples e incondicional essa troca afetiva, e aí as pessoas acabam se perdendo."

Também os gatos sofrem com isso. "É muito comum que o gato não goste tanto que o peguem no colo, a característica da espécie é de não gostar de ser pego, mas a primeira coisa que as pessoas fazem quando chegam em casa é pegá-lo. Ele tolera, mas é uma coisa agressiva para ele", diz Larissa.

Alimentação é também um problema apontado pelos especialistas. Temos dó dos bichinhos comendo só ração pela vida e sofremos quando eles choram no pé da mesa, pedindo um pedaço daquela coisa gostosa que estamos comendo. Mas precisamos ser fortes. Segundo Larissa, dar aos animais um pouco da nossa comida pode gerar problemas como obesidade e pancreatite. Gelson Genaro, especialista em comportamento de felinos, acredita que não há problema em alternar a ração com comida - desde que seja preparada especialmente para o animal, como arroz com batata, cenoura e carne, por exemplo. Não devemos, nunca, dar comida temperada ou doces e chocolates.

Assim como buscamos a companhia de outros seres humanos, o contato com outros da mesma espécie é essencial para os animais. A principal maneira de socializar um cão que mora sozinho é levá-lo para passear. Para eles, farejar as fezes e urina dos outros animais na rua já é uma forma de comunicação. Também dá para levá-los à casa de amigos que tenham cães saudáveis e dóceis, por exemplo. O ideal é que essa socialização seja feita quando eles ainda são filhotinhos. Depois disso, pode acabar estressando ainda mais  oanimal. Em geral, é muito difícil para um animal adulto aceitar outros no espaço dele. "O cão que não for socializado na infância pode não aprender a se comunicar com outros cães, temer todos, ser antissocial, e isso gera uma reação em cadeia que pode levar o dono a parar de levar o cão para passear", afirma Larissa.


A vez dos gatos

Até hoje, a população de cães domésticos no Brasil ultrapassa a de gatos, mas essa relação está se invertendo. Em todo o mundo e também por aqui, vem aumentando o número de pessoas que preferem a companhia dos bichanos, seja por eles se adequarem melhor a espaços pequenos, por não exigirem passeios diários ou por lidarem bem com a solidão enquanto os donos estão trabalhando. Por isso, os gatos até esse momento sofreram menos com a humanização. Mas, agora que o número de felinos está crescendo, é preciso ficar mais atento a isso, diz Rúbia. "O cachorro incorpora mais o nosso estilo de vida. 

Já o gato se preserva mais, até porque ele não entende muita coisa do nosso universo social", fala a veterinária. "Por outro lado, ele tem uma parte sensorial muito desenvolvida, que é a capacidade de ter percepções do que pode estar para acontecer. Ele tem uma sensibilidade incrível para mudanças de humor e estresse no ambiente". Estresse que ele pode acabar incorporando. Larissa acredita que os gatos sofrem muitas vezes porque seus donos não conhecem suas necessidades. "As pessoas são mais negligentes com eles. Elas acham que o gato passar o dia inteiro no armário é normal, acham fofo, mas um gato que se esconde o dia inteiro não está bem. Ele pode estar ansioso ou frustrado."


Ambiente rico

Gelson Genaro aponta o confinamento a ambientes pequenos e sem estímulos uma das principais fontes de sofrimento para os bichanos. "O gato tolera melhor morar em um espaço pequeno, até porque ele dorme muitas horas, mas isso não quer dizer que eu possa prendê-lo num espaço minúsculo e que ele não tenha necessidades básicas a ser atendidas." Essa situação pode gerar desconfortos como arrancar
os próprios pelos ou o estresse por lambedura, quando ele fica se lambendo exageradamente.

O gato que vive em apartamento e passa muitas horas sozinho precisa, então, do que Gelson chama de uma rede de novidades ou enriquecimento ambiental: brinquedos e equipamentos para se distrair e se exercitar. Ele também deve ter acesso a diferentes ambientes da casa. Quanto a roupinhas, só vale se for uma necessidade do animal, no frio, por exemplo. Se for apenas algo bonitinho, pode incomodar. Isso vale também para cães.

A regra geral para a convivência com qualquer espécie é o conhecimento de suas características e a observação. Nos mandamentos da posse responsável da Associação Humanitária de Proteção e Bem-Estar Animal (Arca Brasil), respeito é uma palavra importante. "Como as crianças, os animais precisam de contato e observação. O dono deve estar atento e disponível para o outro", aconselha Marco Ciampi, presidente da Arca. "E, para qualquer dúvida, vale uma visita ao veterinário", afirma ele.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Eles não dizem não a eles mesmos

 

Por Ivan Martins
Da Revista Época


Conheço um cara que tem problemas de disciplina. Eu. Toda noite, juro que vou levantar às 6h30 da manhã para fazer exercício, mas raramente consigo. Toda semana prometo a mim mesmo que vou antecipar o texto desta coluna, mas sempre fica para a última hora. Vira e mexe, digo que vou parar de ver televisão, que vou lavar louça com mais frequência, que não vou beber no fim de semana. Como eu não faço metade das coisas que prometo a mim mesmo, vivo moído de culpa - e me acho uma droga. Do meu ponto de vista, é inevitável passar a vida negociando entre os deveres e a preguiça, entre os desejos e a obrigação. Muita gente, porém, já desistiu.

Tornou-se comum, ao meu redor, pessoas que não têm compromisso e nem culpa. São os autoindulgentes, uma legião que sempre diz a si mesmo que está tudo bem. São especialistas na arte de se auto perdoar. Ignoram a louça, o horário, os amigos, a família e, fundamentalmente, o sentimento dos outros. Fazem o que querem e têm compromisso apenas com seu prazer imediato. O resto que se dane. São adolescentes adultos aprimorando a arte de fazer mal a si mesmos e aos demais.

Eles não são egoístas. O egoísta é uma pessoa que cuida apenas dela mesma. Os autoindulgentes nem conseguem fazer isso. São egoístas míopes, que só enxergam as próximas 8 horas. No longo prazo, são um desastre para eles mesmos. Preguiçosos e mimados, parecem imbuídos da sensação de que suas vontades são urgentes e todos os deveres (inclusive morais) podem ser adiados ou esquecidos. Acham que têm todo o tempo do mundo para fazer o que é certo. Hoje, porém, farão apenas o que têm vontade.

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Se os autoindulgentes fossem sozinhos no mundo, não haveria problema. Apenas afundariam num mar de narcisismo inconsequente. Mas eles têm mulher, irmãos, pais, filhos, amigos. Eles deixam um rastro de estrago atrás de si. O sujeito que não sabe dizer não para si mesmo não acha tempo para mais nada. Está fundamentalmente sozinho no seu universo, que lentamente desmorona. Os outros existem apenas como plateia, ou para insuflar seu ego, ou para compor uma galera, ou oferecer socorro quando a realidade, cedo ou tarde, rompe a cortina de ilusão.

É tão comum como deprimente que o rebelde autoindulgente de hoje - aquele que toma todas, faz de tudo e não deve satisfações a ninguém -, termine, entre os 30 e os 40 anos, dando trabalho aos pais idosos, como se fosse uma criança. Sem nunca ter deixado a adolescência, acaba, na idade adulta, como dependente dos pais que despreza. Haja rebeldia!

Se eu pareço raivoso, me desculpem. São sentimentos pessoais e biográficos - alimentados pela convicção de que vivemos uma epidemia de egos descontrolados.

Nossa cultura fomenta o comportamento irresponsável em relação a si mesmo e aos demais. Sacrifício, apenas no contexto do trabalho. Quase todos sabem que é preciso ralar para ganhar dinheiro ou manter um bom emprego, mas, encerrado o expediente, um monte de seres humanos simplesmente aperta o foda-se. Fora do mercado, não há responsabilidade.

Quem à nossa volta está discutindo princípios, valores, ética? Poucos, porque essas coisas têm preço existencial elevado. Se você abraça um princípio, terá de sustentá-lo. Se tem valores, terá de renunciar ao que se opõe a eles. A ética pode vetar atividades prazerosas - como um emprego confortável e inidôneo ou sexo com uma pessoa escrota. Autoindulgentes não querem esse tipo de sacrifícios. Em troca do prazer instantâneo, topam qualquer coisa. São baratinhos.

Estes dias, ando lendo um romance primoroso - O homem que amava os cachorros, do Leonardo Padura - que conta a história de um idealista como não existe mais. Leon Trotsky, um revolucionário russo do início do século XX, pagou o preço mais alto que existe pela coerência aos seus princípios. Foi exilado e perseguido, seus filhos foram mortos e, ao final, ele foi assassinado, em 1940, por um sujeito que se fez passar por um amigo, mas era agente da polícia secreta de Joseph Stalin.

Você eu não somos feito dessa madeira. Tampouco exigimos, ao nosso redor, que os outros sejam heróis. Mas algo de grandeza é necessário. Um mínimo de respeito consigo mesmo e com os demais. Um mínimo de disciplina e de responsabilidade. Alguma ética, algum princípio, qualquer generosidade. O mundo pode ter se tornado um lugar grande demais para ser transformado por meia dúzia de ideias, mas a nossa vida pode ser melhorada - ou destruída - pelo convívio com uma única pessoa. Melhor que não seja alguém com tolerância infinita para as suas próprias fraquezas.


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Ouça, apenas ouça


Por Liane Alves
Da Revista Vida Simples

Os três estavam ali sentados numa mesinha de bar na calçada, num dia quente. Flagrar três marmanjos sem fazer nada às 4 da tarde de uma quinta-feira numa cidade frenética como São Paulo já me dava vontade de sapecar um beijo em cada um e cumprimentá-los pela ousadia. Mas me detive a tempo e perguntei apenas se eles sabiam onde ficava um estúdio de música perto dali, pois havia esquecido o endereço em casa. Eles foram muito gentis e levantaram várias hipóteses sobre o provável endereço. Eu procurava prestar atenção no que diziam, mas tinha algo que atrapalhava minha escuta. Depois de alguns segundos, descobri. Eram as maritacas que enxameavam na goiabeira em frente ao bar. Se os moços já tinham mexido comigo com seu ócio criativo, ser interrompida por aquela algazarra verde no asfalto duro quase me levou às lágrimas. Sentei-me com eles e pedi uma água gelada com gás.

Sons variados

Foi assim durante todo o tempo em que estive envolvida com esta matéria, que propunha uma escuta mais atenta: a vida, de repente, se abriu como um leque de diversas possibilidades. Com a disposição de prestar mais atenção em sons e palavras, corri para a janela de um apartamento para ouvir melhor o som de uma gaita de foles que tocava na Avenida Angélica. Contemplei um longo solo de jazz na Alameda Santos, seguido por um concerto de flauta. Na Avenida Paulista, que se transforma numa sucessão de 5 quilômetros de música aos domingos, acompanhei os movimentos de um ser andrógino que dançava solitário ao lado de uma caixinha de som que tocava Schubert e joguei algumas moedas para o roqueiro que dedilhava "Stairway to Heaven" sob a marquise de um banco. Mais que isso: aprendi a me calar mais do que normalmente me calo, e a ouvir o som da minha própria voz como se fosse uma melodia. Deixei o silêncio tomar conta sem interrompê-lo. Abdiquei de expressar todas minhas opiniões. Não só minha existência ficou mais criativa, intensa e vibrante, como percebi que, à medida que me tornava mais atenta à escuta, fazia outras escolhas, decidia outras coisas, que talvez nunca tivessem me passado pela cabeça, como experimentar a delícia de me sentar debaixo de uma goiabeira cheia de maritacas numa morna quinta-feira.

Voltar-se para dentro

Pode parecer misterioso, ou mágico, perceber como sua vida muda com um escutar mais profundo. Mas isso se dá por um motivo simples. Enquanto toda a sociedade moderna nos impulsiona a agir e a fazer, a escuta está envolvida justamente com o movimento contrário, que é permanecer em calma e silêncio numa não ação. Em vez de sermos ativos, por um momento vamos nos tornar conscientemente passivos. Em vez de se ir para fora, vai-se para dentro. Em vez de nos expressarmos, vamos ouvir o que o outro diz. E nesse processo ficamos muitas vezes sem responder, sem retrucar imediatamente. Nos tornamos menos mecânicos e reativos.

Essa simples mudança de atitude gera resultados grandiosos. Cada vez que a escuta se repete, sem interrupções, você se torna mais relaxado, mais aberto, mais atencioso, mais profundo, mais humano. E isso realmente pode transformar uma vida.

"O controle da fala revela muito sobre você mesmo", me diz com sua voz doce e melodiosa Lu Horta, cantora, compositora e professora de canto paulista que ensina as pessoas a... escutar. Seu trabalho é mais com músicos e cantores, mas inclui gente comum também. Formada em música pela Unicamp, com especialização em cantoterapia segundo a concepção antroposófica e com outros cursos nessa área, Lu lembra como nossa vida emocional está ligada à fala e à escuta. Quem é ansioso demais vai sempre interromper o outro, e o timbre de sua voz e sua respiração traduzirão a ansiedade. Quem é egocêntrico não deixará espaço para que a pessoa à sua frente possa falar. "Se eu estiver centrado apenas em meus interesses, não conseguirei me abrir para o que está além de mim", diz ela com dedução irrepreensível. Escutando mal, nos tornamos restritos, limitados, impacientes. Mas quem começa a se dedicar a ouvir com mais atenção experimenta o prazer de ser mais calmo, acolhedor, aberto e generoso.

"A escuta mais atenta abre espaço interno para que o outro é e deseja", diz Lu. É ar puro que entra, uma janela aberta. Por um momento saímos de nós mesmos, de nossos interesses e opiniões, de nosso mundo, para conhecer a outra pessoa e escutá-la como quem bebe um copo de raro vinho. É um dos grandes presentes que se pode dar para alguém. E um dos dons mais preciosos que se pode receber do outro. Dos 12 sentidos imaginados pelo austríaco Rudolf Steiner, o criador da antroposofia, a audição pertence ao grupo mais elevado deles, o que tem estreita relação com a alma, o pensamento e a consciência.

Lu Horta lembra algo muito importante: "O primeiro órgão dos sentidos a se formar no bebê é o ouvido. Escutar é uma de nossas primeiras experiências no mundo: ouvimos a corrente sanguínea da mãe, sua voz, nosso batimento cardíaco. E tudo isso nos acalma profundamente". Tanto que hoje existem no mercado CDs que reproduzem esses sons para os recém-nascidos. "Ouvir é extremamente prazeroso para o ser humano."

Mas o que acontece, então? Por que não gostamos mais de escutar? Há muitas respostas, mas uma delas está ligada à falta de um aprendizado específico para isso. O silêncio sumiu de nossas vidas, e é nele que habita a escuta. Como podemos voltar a nos alimentar e a nos preencher do que não quer falar, do que quer permanecer quieto e tranquilo, do que nos deixa confortáveis e relaxados dentro de nós? É o que vamos ver a seguir.

Silêncio, por favor

"Sábio é aquele que saboreia", disse o filósofo alemão Friedrich Nietzsche. E degustar o silêncio requer certo aprendizado, uma atenção específica. É um refinamento. "É do silêncio que nasce o ouvir. Só posso ouvir as palavras se meus ruídos interiores forem silenciados. Quem fala muito não ouve. Só posso ouvir a verdade do outro se eu parar de tagarelar. Sabem disso os poetas, esses seres de fala mínima", escreveu o psicanalista e pedagogo Rubem Alves no livro Educação dos Sentidos (Verus). E por que a escuta da poesia, ou da música, precisa tanto do silêncio? Ele responde: "A magia do poema está nos interstícios silenciosos que há entre as palavras. É nesse silêncio que se ouve a melodia que não havia. Aí a magia acontece: a melodia nos faz chorar".

Rubem nos conta uma cena que aconteceu durante a leitura que ele fez de uma poesia de Robert Frost em sala de aula. "Li vagarosamente. Porque cada poema tem seu andamento que lhe é próprio, como numa música". Terminada a leitura, não me atrevi a dizer nada. É preciso que haja silêncio. A música só existe sobre um fundo de silêncio. É no silêncio que a beleza coloca seus ovos." Depois dessa pausa, ele recomeça a ler novamente as palavras de Frost. "E aí, então, no silêncio que se seguiu à segunda leitura, ouvi um soluço no fundo da sala. Uma jovem chorava." Abriu-se o espaço para uma escuta profunda que atingiu diretamente seu coração. Não foram apenas palavras, mas o vazio que as continha que despertou o sentimento. "Grande mistério, esse: é o que não há que provoca o choro". Houve silêncio suficiente para que a escuta se tornasse avassaladora.

Tampouco o sentimento da jovem surgiu da interpretação das palavras. Naquele poema que falava de bosques e sombras, foi sua atmosfera melancólica e triste que tocou sua alma. Ela fugiu de atribuir significados ao que ouvia de acordo com suas opiniões e vivências. Apenas se sentiu livre para sentir, sem julgar e interpretar interiormente. Ficou com o impacto da impressão pura. "O intérprete é um ser luminoso. Não suporta sombras. Ele traz então suas lanternas, suas ideias claras e distintas, e trata de iluminar os bosques sombrios... Não percebe que, ao iluminar os bosques, deles fogem as criaturas encantadas que habitam as sombras", disse Rubem.

"Parece que existem em nós cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxuleante", lembra o pensador belga Gaston Bachelard numa imagem magnífica. Esses lugares só podem ser visitados no silêncio e na penumbra. Se estamos diante do outro com a avidez de um cão faminto pronto a saltar sobre um osso, só esperando a deixa para interrompê-lo e começar a interpretar o que ele diz, nós os perderemos. A resposta, a interpretação, pode acontecer durante a conversa depois dessa degustação de escuta mais fina. E, aí, o que teremos a dizer terá outro sabor e profundidade.

Com esse tipo de escuta também aprenderemos a diferenciar os diversos tons do silêncio, como os esquimós reconhecem mais de 40 tons de branco da neve. "Os silêncios têm sua própria personalidade - contidos ou meditativos, vazios ou repletos. Há um campo de força completamente diferente entre um casal que emudece porque está com raiva ou um casal silente que está fazendo amor. Também há diferença entre o silêncio gerado por dezenas de pessoas fazendo meditação ou depois de uma comunhão numa missa e o silêncio natural de um espaço vazio", afirma a jornalista escocesa Bella Bathurst, da revista virtual Aeon Magazine.

Ao conseguir perceber pausas, hesitações, mudanças de timbre na voz ou alteração da respiração de quem está diante de nós, teremos uma leitura mais rica, ou até completamente diferente, do que dizem as palavras. No mínimo, poderemos dar um retorno mais apurado e preciso do que se percebeu.

Ouvir, sem julgamentos

Há quem já pensou profundamente sobre o escutar. O famoso físico de teoria quântica David Bohm dedicou os últimos anos de sua vida a um processo terapêutico chamado de Diálogo. Nele, o ouvinte não julga o que escuta. Apenas fica tranquilo, autopercebendo-se diante do que é dito, assistindo às eventuais zonas de sombras que o outro pode deflagrar. Também presta mais atenção não apenas no que é dito, mas naquilo que é expresso nas entrelinhas, percebendo no outro o que talvez ele não perceba. É uma escuta atenta. De certa forma, sua proposta é como uma meditação, e por isso o filósofo indiano Jiddhu Krishnamurti se interessou tanto por esse processo (os dois trabalharam juntos durante anos).

Bohm acreditava que o processo do pensamento era autônomo e independente de nós e que podíamos observá-lo de fora de um ponto interno que nos permitisse ver a nós mesmos. Também sustentava que o pensamento não estava restrito ao indivíduo, mas que existia um pensamento coletivo que interagia com o individual. No processo do Diálogo, por exemplo, até 50 pessoas se sentam para conversar e escutar sem julgamentos durante cerca de duas horas. De acordo com o físico, o pensamento coletivo gerado nas sessões também pode fazer surgir compreensões a que muitas vezes não se chegaria individualmente.

Diálogo interno

Estamos eternamente em diálogo, num bate-papo infinito com nós mesmos, que alguns também chamam de monólogo interno. É a mente do "macaco louco", na expressão de Yongey Mingyur Rinpoche, monge do budismo tibetano e autor do livro Alegria de Viver. Ela é agitada, inquieta, pula de um assunto a outro sem parar, de galho em galho. "O diálogo interno também pode ser descrito como 'pensamento compulsivo'. É um estado em que nossos pensamentos nos comandam, repetindo a si mesmos centenas de vezes sem nunca conseguir chegar a outro patamar", diz Reinhard Fletischler, percussionista austríaco que pesquisou durante anos temas como ritmo e silêncio em vários países do mundo. Para nos livrar dessa mente conturbada, ele oferece uma alternativa: "Saindo conscientemente do pensar para um espaço mais sensorial, para o sentir, nós podemos romper o círculo vicioso e trazer um espaço interno que nos permite abrir e nos afastarmos desse tipo de pensamento".

"Ao sentir mais o corpo de uma forma relaxada, seremos capazes de entrar nesse estado silencioso em que muitas coisas de nossa vida se revelam por si mesmas", afirma Fletischler. "Reconhecer que estamos num estado de pensamento compulsivo e praticar a transição para um sentir meditativo é a chave de um diálogo interno com mais significado."

E ele vai além. Propõe não a polaridade do cheio versus vazio, mas a vivência de ambos estados ao mesmo tempo. "Viver em polaridades pode trazer uma constante dicotomia: agir ou escutar, fazer ou não fazer", diz ele. Para vivenciar essas possibilidades ao mesmo tempo, ele criou um método, a TaKeTiNa, em que pessoas em roda dançam, cantam e se abrem para o poder transformador do ritmo. "Ali você fala sílabas ritmícas enquanto escuta o líder contar histórias. Aprende a ser ativo com sua mão direita e passivo com a esquerda ao mesmo tempo. Fica ao mesmo tempo focado e relaxado", conta Fletischler.

É algo que também pode ser encontrado em algumas artes marciais, na dança e, é claro, na meditação. Mas também na observação e comunhão com a natureza. O maestro Antônio Carlos Jobim costumava sair de manhã com sua flauta transversal e rumar para as matas perto de sua casa. Ia para lá a fim de ouvir e ao mesmo tempo tocar com os passarinhos. Era seu exercício quase diário de meditação. Ouvia uma sabiá, entrava em comunhão com ela e lhe respondia na mesma malha sonora em sua flauta. Escutava um bem-te-vizinho-de-penacho-vermelho e formava com ele outra parceria, e assim por diante. Só depois voltava para casa para criar suas composições. Escutar é criativo, transformador e revolucionário.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

A vida de Flaubert sob as lentes de Sartre

O escritor francês Gustave Flaubert

Por Franklin Leopoldo e Silva
Da Ilustríssima

RESUMO Sai pela primeira vez no país "O Idiota da Família", obra gigantesca e inacabada em que, a partir da vida de Flaubert, Sartre dá corpo às teorias expostas em "Questões de Método". Em três tomos, dos quais dois ainda serão lançados, o filósofo analisa como uma subjetividade se constitui contra seu contexto histórico.

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Empreendimento gigantesco, projeto intelectual para mais de uma vida: "O Idiota da Família", estudo de Jean-Paul Sartre (1905-80) sobre Gustave Flaubert (1821-80), foi concebido para realizar a possibilidade de uma antropologia estrutural e histórica, em que a realidade humana atingiria uma compreensão plena na figura de um indivíduo dialeticamente concebido como universal singular.

Os três grandes e densos volumes que Sartre logrou escrever antes que a doença e a morte interrompessem o trabalho -o primeiro dos quais foi recentemente lançado no Brasil [trad. Julia da Rosa Simões, L&PM, R$ 128, 1.112 págs.]- não podem ser vistos como testemunho de um fracasso. Antes se inserem em sua obra constitutivamente incompleta -talvez a ilustração mais eloquente da impossibilidade de finalizar qualquer projeto humano.

Sartre nos lembrou muitas vezes, ao longo de sua obra, de que a totalidade é irrealizável, pois implicaria a realização da essência da existência, identidade impossível para o existente cujo ser é sempre uma questão para si mesmo.

Ora, a impossibilidade de um sentido essencial e de uma totalidade não devem nos fazer desistir do conhecimento, embora nos alertem para a necessidade de instrumentos de elucidação que permitam maior aproximação da complexidade da existência histórica.

"Questões de Método" e "Crítica da Razão Dialética" (editados em um volume pela DP&A, 2002, esgotado) são etapas de uma busca dessa compreensão que se amplia em seu alcance totalizante, mas sem a expectativa de findar em uma totalidade cristalizada. Essa procura é guiada pela noção de processo histórico como percurso marcado por tensões constitutivas, sem possível conciliação numa totalidade pacificada.

A razão dialética só poderá acompanhar o movimento da história se abandonar a perspectiva de uma conceituação a priori fixada numa estrutura lógica e formal. O movimento dialético só poderá ser apreendido quando sua originalidade metódica triunfar definitivamente sobre os vestígios da tradição analítica que ainda atuam com muito vigor na elaboração do conhecimento histórico.

"O Idiota da Família" é a tentativa de compreender o processo pelo qual um indivíduo se faz sujeito, por meio da relação dialética entre a liberdade e os fatores que determinam a situação vivida no cruzamento entre uma história pessoal e a história geral da época.

É nesse sentido que Sartre afirma, no início do prefácio, que o livro é a continuação de "Questões de Método": com efeito, o estudo que depois se tornou a introdução de "Crítica da Razão Dialética" tem como objetivo, como seu título indica, propor modos de estabelecimento de posições teóricas a fim de configurar um saber acerca do homem que não esteja preso nem à
soberania da consciência, como no estilo clássico, nem à causalidade determinista do marxismo ortodoxo dos anos 1950.

Essa dupla exclusão, decorrente de uma abordagem crítico-dialética da subjetividade e da história, permite que se incluam na questão humana as duas perspectivas que antes pareciam antagônicas: a singularidade subjetiva e a universalidade histórica.

Assim, pode-se formular a pergunta: como um indivíduo se constitui ao mesmo tempo como sujeito singular e expressão de condições históricas que o transcendem?

A história atua sobre o indivíduo, mas como um processo que o faz tornar-se ele mesmo. Não se trata de uma generalidade formal produtora de casos particulares que sob ela logicamente se alinhariam; mas de uma universalidade real dialeticamente relacionada com sujeitos históricos realmente constituídos num processo de livre instituição de si mesmos. Uma racionalidade dialética adequadamente formulada deve permitir a apreensão desse processo de subjetivação em sua efetividade histórica, isto é, a partir do duplo compromisso com a universalidade e com a singularidade.

DESTINO

Flaubert é então o "caso concreto" focalizado por Sartre: uma vida terminada, tornada destino pela morte que lhe pôs termo, mas vivida na contingência e nas incertezas dos fatos e das opções que pontuam uma existência.

A realização de uma antropologia verdadeiramente filosófica consiste na determinação de um indivíduo em sua liberdade. Para tanto é preciso, primeiro, o trabalho gigantesco de colher e organizar as informações, no intuito metódico de totalizá-las, já que a totalização real é, nesse caso, tão impossível quanto na vida.

A investigação de como alguém se torna ele mesmo, em meio à pluralidade de relações efetuadas entre facticidade e liberdade, à interiorização do mundo e do legado familiar e social, bem como as expressões que constituem as reações do sujeito diante das condições objetivas, chama-se, em Sartre, "psicanálise existencial".

O termo "psicanálise" evoca a compreensão de uma história pessoal. Sartre não aceita todas as noções cunhadas por Freud; sobretudo resiste fortemente à concepção do inconsciente, em razão de sua própria teoria da translucidez da consciência. No entanto, ao considerar relevante a consideração de que o indivíduo é a sua história, valoriza enfaticamente o papel que a infância desempenha no pensamento do fundador da psicanálise.

É assim que, sobretudo no primeiro volume de "O Idiota da Família", Sartre considerará a infância de Flaubert, sua "proto-história", cenário de elucidação imprescindível para entender como e a partir do que esse homem elaborará sua própria história.

Por mais vaga que seja a ideia que alguém fizer de si mesmo ao longo da vida, sempre carregará consigo a sua infância: a maneira pela qual cada um está preso a si é principalmente a impossibilidade de se desfazer da própria infância.

Não se trata apenas de registrar dados biográficos mas de construir a oportunidade de refletir sobre a formação da neurose constitutiva do sujeito; uma estrutura, da qual não está ausente a história, incrustada na singularidade.

Assim, a subjetivação é dramática, notadamente nos casos em que o sujeito foi aquinhoado com uma sensibilidade que o coloca numa posição especial perante si e os outros. Flaubert já manifestava esta característica desde criança, o que propiciou sua difícil inserção na família e os sofrimentos decorrentes de sua relação com o mundo.

A gênese e a retrospecção se combinam de algum modo. Como Flaubert fez-se escritor (mais: segundo Sartre, "fundador do romance moderno"), chamará atenção sua relação com as palavras, a entrada da criança no mundo da fala e da escrita.

A demora em falar, que tanta preocupação causou aos pais, bem poderia ser a recusa de falar -que seria também a recusa dos outros. Sem saber, ou até mesmo sem sentir, o menino Gustave carrega em si esse fardo: a obscura percepção de que não é aceito, de que não corresponde inteiramente à figura do esperado, e que, portanto, não teria por que nem com quem falar.

A infância é a travessia de um quarto escuro, as zonas de obscuridade da consciência, a dificuldade em corresponder ao que os outros querem de nós -ou ao que querem fazer de nós. Recusar tudo isso é recusar a comunicação; daí o silêncio e o "torpor" de que fala Sartre e que era interpretado pela família como retardo ou idiotia.

De fato, esse fechamento em si é decepcionante: os pais sentem que não podem criá-lo à imagem de si mesmos, que o filho lhes escapa, e este deficit acaba por ser imputado à criança. Sem que percebam, o amor vai sendo afetado, a relação se desmancha no ato de se formar.

Mais tarde as suspeitas de que Gustave é menos do que deveria ser se confirmam na entrada, pela leitura e pela escrita, no mundo da cultura que é o dos adultos.

A transição que deveria ser espontânea é vivida com dificuldade e angústia, como se Flaubert se questionasse precocemente acerca da razão da linguagem. Essa mediação complicada permanecerá no adulto: o grande escritor sempre se moverá com ansiedade entre as palavras e o silêncio.

Ora, aquele que não fala não assume seu eu: ao não nomear e não interagir, a partir de si, abandona-se à passividade, "refugia-se na impotência". No limite, simula a própria morte, como nos desmaios que o acometerão a partir da adolescência. E, quando tiver que falar, de algum modo também se abandonará às palavras de que habitualmente se faz uso, sem assumir a fala subjetiva. Eis algo que pode ajudar a entender a escrita de Flaubert como o burilamento das palavras, a espécie de precisão preciosa que ele sempre procurou.

E, no entanto, em tudo isso está em curso o processo de subjetivação, feito de resistência e sofrimento, de escolhas mal discernidas: a interiorização daquele mundo está atravessada pela recusa.

Como diz Sartre, a crença pode ser tão larga e tão difusa que, de fato, não se crê em nada. A linguagem desempenha esse papel dramático na formação da subjetividade do futuro escritor; e é necessário compreendê-lo para entender o sentido que ele dará à escrita, bem como a relação entre a vida e a arte. Como, enfim, Flaubert fará a experiência de sua própria história; como interiorizará as situações objetivas que viver; como, nele, a universalidade do espírito objetivo se tornará singularidade irredutível de um sujeito às voltas com sua liberdade.

Sabemos que todo indivíduo é, de início, a interiorização do ambiente familiar em situações objetivas. Mas o lugar comum dessa constatação terá de ser revisto quando compreendermos como alguém pode, por toda sua vida, ser assombrado pela infância.

O primeiro volume de "O Idiota da Família" permite que acompanhemos a gênese histórica da estrutura neurótica de Flaubert, tão entranhada em sua subjetividade que chega a extrapolar qualquer juízo de pretensões objetivas acerca de um "diagnóstico".

Recordemos a frase famosa de Sartre: somos aquilo que fazemos com o que querem fazer de nós. Nessa relação complexa situa-se a extraordinária dificuldade do projeto sartriano: "O que se pode saber de um homem?".

A identidade subjetiva nunca se apresenta como totalidade acabada. É preciso acompanhar o movimento sinuoso da história pessoal, interpretar a heterogeneidade como a totalidade impossível, para chegar a uma visão que transcenda a individualidade e capte a expressão da universalidade no drama singular de uma existência.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

O indigesto Burroughs


Por Patrícia Homsi
Da Revista Cult

William Seward Burroughs II nasceu em 1914, e completou ontem cem anos. O padrinho da geração beat – ao menos 8 anos mais velho que figuras conhecidas como Allen Ginsberg, Lucien Carr, Gregory Corso e Jack Kerouac – viveu boa parte de seus 83 anos à margem da lei, por onde gostava de se aventurar, além de ter sido responsável pelo método de cut-up, um modelo estrutural dadaísta de escrita.

O escritor de Naked Lunch (Almoço Nu, 2005, Ediouro), Junkie (Junky, 2013, Companhia das Letras) e Nova Express acreditava que a reorganização da linguagem removeria o aspecto ideológico impregnado nas palavras. Segundo Claudio Willer, escritor e pesquisador, o “vírus da linguagem”, a que Burroughs se referia, se relaciona com o papel de mediador atribuído à palavra. “A relação entre as palavras e as coisas, os signos e seus significados, é o tema de um debate imemorial”, explica Willer. Para Rodrigo Garcia Lopes, que já entrevistou Burroughs, “a tirania da Palavra nos mantêm cativos a modos reacionários e condicionados de pensar. A palavra não tem sido reconhecida como vírus porque alcançou um estado de simbiose com o hospedeiro”. Se a interferência da linguagem esbarra em nossa compreensão, a simples pronúncia do nome de Burroughs se assemelha à sua literatura indigerível, naturalmente truncada pelos recortes e pela falta de linearidade. O nome, porém, veio do avô, William Seward Burroughs I, criador de um dos componentes da máquina calculadora.

Nascido numa autêntica família burguesa do Missouri, Estados Unidos, Burroughs, que estudou em Harvard (Inglês e Antropologia), via a instituição familiar como uma ideia introjetada no ser humano, que não era necessariamente livre para reestruturá-la. Este ódio à ordem comum o aproximou do consumo de drogas e dos bandidos que retratava em suas obras. “O que fosse marginal, alternativo, fora da lei, tinha para ele um estatuto de realidade superior àquele do instituído, oficial; da sociedade burguesa, massificada” esclarece Willer.

Fora da lei

Viciado, traficante, homossexual e contra a ordem, Burroughs morou em lugares como Berlim, Cidade do México, Paris, Londres e Tanger, no Marrocos. Foi na época em que vivia no México, onde tinha uma plantação de maconha, que o escritor atirou acidentalmente em Joan Vollmer, sua esposa. Apesar de se declarar atraído por homens, Burroughs era apaixonado por Vollmer, bem como por armas. A combinação dos dois -mais uma boa dose de drogas e álcool – causou uma ébria brincadeira: Tentando atirar num copo acima da cabeça de Joan, Burroughs acertou em cheio na testa da esposa, matando-a. “A escrita seria o modo de libertar-se” diz Willer, com relação ao acontecimento.

A morte de Joan teria disparado em Burroughs a necessidade de escrever, o que motivou seus autobiográficos – porém, labirínticos, embriagados e movimentados – Junkie e Queer. Antes de escrever Junkie, seu primeiro livro publicado – aliás, com a ajuda de um amigo que Allen Ginsberg conheceu num hospital onde cumpria pena – Burroughs já havia escrito, em parceria com Jack Kerouac, E os hipopótamos foram cozidos em seus tanques. O livro é escrito em capítulos que alternam a autoria dos beats e conta a história do assassinato de David Kammerer por Lucien Carr, ambos amigos de Burroughs e Kerouac. Esta primeira experiência literária, porém, só pode ser publicada em 2008, após a morte de todos os envolvidos.

Padrinho beat

A participação de Burroughs na literatura beat abrange sua própria produção e a colaboração e influência na obra dos outros escritores. Burroughs “fez réplicas de sessões de psicanálise com Ginsberg, recebeu os beats em seus refúgios em New Waverly e Algiers, na Cidade do México e em Tanger” afirma Claudio Willer. Esta presença constante influente nos gostos e escolhas de Ginsberg, Corso, Orlowski, Kerouac e, mais tarde, Brion Gysin, tornaram Burroughs o padrinho da geração beat, um pai, talvez, mais velho e mais rigoroso com suas próprias opiniões.

Para Burroughs, não bastava escrever sobre o submundo, mas subvertê-lo também através da linguagem, remanejando recortes de jornais, panfletos, livros, e construindo um novo sentido. O método de cut-ups, desenvolvido com Brion Gysin, consiste numa atualização para a escrita de modelos dadaístas de linguagem. “Os cut-ups tinham como estratégia textual romper com a lógica linear-sequencial da narrativa tradicional, da sintaxe, ao mesmo tempo em que ofereciam um modo alternativo de leitura. Tinham a função de confundir hierarquias e questionar o papel unitário do autor através de apropriação, citação, montagem, colagem, paródia”, explica Rodrigo Garcia Lopes.

“Quando se experimenta com cut-ups por um longo período, se descobre que alguns dos cut-ups e rearranjos parecem se referir a acontecimentos futuros. Eu apliquei a técnica de cut-up num artigo escrito por John Paul Getty e obtive: ‘É uma coisa ruim processar seu próprio pai’, algo que eu rearranjei, que não estava no texto original. E, um ano depois, um dos filhos dele realmente o processou. Não havia explicação para isto na época, mas o fato sugere que quando se corta o passado, o futuro vaza por ele”, disse William Burroughs sobre sua técnica. Além da futurologia dos cut-ups, o escritor pesquisava todo o tipo de crença, reforçando a ideia de toda a geração beat sobre o conhecimento das religiões orientais, por exemplo. Burroughs, por sua vez, se envolveu com os haxixim – “fumadores de haxixe e assassinos iranianos do século 12”, segundo Claudio Willer -, a paraciência, a energia cósmica e a cientologia de Ron Hubbard – famosa pela aderência de atores hollywoodianos como Tom Cruise e John Travolta.

“Mas ele acreditou em tudo isso?” se pergunta Claudio Willer. A personalidade literária, por vezes, se confundia com a pessoal. Burroughs, como todas as personagens, era controverso, confuso, frequentemente bêbado e, principalmente, indigesto.

Leia exclusivamente no site da CULT a entrevista do biógrafo de William Burroughs, Allen Ginsberg, Jack Kerouac, Paul McCartney, Frank Zappa e Charles Bukowski, Barry Miles, que lançou nos Estados Unidos recentemente Call me Burroughs, ainda sem previsão de tradução brasileira.

CULT – Qual o fato mais marcante da vida de Burroughs?

Barry Miles - Sem dúvida o tiro acidental e a consequente morte de Joan Vollmer foi o evento mais importante de sua vida. Ele me contou que pensava nela todos os dias e que ela era figura constante em seus sonhos. É muito provável que ele nunca tivesse se tornado escritor se não fosse por este acontecimento. Ele usava a literatura como um modo de tentar identificar aquela parte de si mesmo que se comportou de forma tão estúpida e insana para que ele pudesse expulsar aquele sentimento de si. Ele chamava isso de “The Ugly Spirit” (o espírito feio, em tradução livre), e sua escrita pode ser considerada uma evidência de seus esforços para expulsar “The Ugly Spirit”.

Há mais detalhes sobre o caso de assassinato que inspirou E os hipopótamos foram cozidos em seus tanques em Call me Burroughs, seu novo livro?

Há muito sobre o assassinato de David Kammerer por Lucien Carr no livro, porque Kammerer era o melhor amigo de Burroughs. No entanto, ele achava que Kammerer estava se comportando muito mal por estar perseguindo e cercando Carr todo o tempo e que, eventualmente, ele mereceu ter sido morto por Carr numa briga. A versão dos fatos no recente Kill your darlings [Versos de um Crime, em português, estreia nos cinemas brasileiros em maio] é muito imprecisa. A colaboração entre Burroughs e Kerouac em E os hipopótamos foram cozidos em seus tanques foi muito importante porque deu início à carreira de Burroughs como escritor, mesmo que esse seu primeiro livro não tenha sido publicado até sua morte e não seja tão bem escrito.

Como era a relação de Burroughs com os companheiros da geração beat? Ele era como um mestre para eles?

Certamente, Burroughs era considerado um mestre por Ginsberg e Kerouac, e, mais tarde, por Brion Gysin. Ele manteve amizades com escritores como Paul Bowles, que o tratava como igual. Eles conversavam sobre tudo, menos escrita, apesar de os dois compartilharem de um amor por [Joseph] Conrad. Mais tarde, Burroughs foi uma grande influência para autores como J. G. Ballard e William Gibson. A influência de Burroughs também foi além da literatura, até alcançar o fazer cinematográfico e as técnicas de gravação. Há muitas estrelas do rock que foram influenciadas por ele.

Apesar de se considerar homossexual, Burroughs foi casado com Joan Vollmer. Como era esse relacionamento?

Sua relação com Joan Vollmer era difícil. Ela sabia que ele era homossexual e estava preparada para aceitar que sua atração sexual era voltada principalmente para outros homens. Ela parecia não se importar com os namorados do marido. Porém, eles tinham um filho juntos, William Burroughs III, e Burroughs foi preso no Texas, certa vez, quando ele e Joan pararam o carro numa estrada e fizeram sexo no acostamento. Nesse caso, fica claro que Burroughs era atraído sexualmente pela esposa em algumas ocasiões. Na verdade, ele mesmo dizia que o casal tinha uma vida sexual ativa. Ela estava mais preocupada com o seu consumo de drogas, que o tornava entediante e chato de se conviver, além de reduzir seu interesse sexual. Burroughs, por outro lado, a achava divertida, estimulante intelectualmente e muito inteligente. O relacionamento dela com ele estava ligado a uma figura materna, que cuidava dele e se certificava de que ele não seria perturbado por necessidades práticas. Ela obviamente o adorava.

Como magia, religião, alienígenas ou espiritualidade estão presentes na vida e na obra de Burroughs?

Burroughs acreditava num universo mágico. Quando criança, ele era muito sensível e tinha visões – ele via uma pequena rena verde no parque perto de sua casa e, às vezes, via figuras projetadas nas paredes. Ele conseguiu manter essa inocência infantil e era particularmente interessado na magia com que se deparou enquanto viveu no Marrocos. Ele passou boa parte do final dos anos 50 em Paris tendo experiências com cristais e estados de transe. Não era religioso, mas acreditava no mundo espiritual e estendia essas crenças até a sua ideia sobre alienígenas. Temos que nos lembrar de que ele era um escritor, e que muitas de suas opiniões eram totalmente contraditórias. Frequentemente, ele desenvolvia ideias com propósitos literários; não necessariamente acreditava neles (como suas histórias sobre mulheres que representavam uma força gigante de insetos vindos de Marte!).

O que atraía Burroughs à vida dos fora da lei? Como isto aparece em seu trabalho?

Burroughs se sentia alienado no círculo social privilegiado em que cresceu. Tudo parecia falso para ele, era uma fachada superficial, que se resumia em esbanjar bens, consumismo, poder e dinheiro. Ele queria algo mais real, mais conexão com as pessoas reais. Era atraído por ladrões inferiores, de pouca importância, e viciados em drogas, porque estes estavam fora da sociedade normal e não faziam parte do “American way of life”. Ele sabia desde cedo que era homossexual e se sentia também um estranho, um estrangeiro, alienado de seus colegas. Ele homenageava estas personagens em todos os seus livros. Acreditava que a sociedade não poderia mudar ou se desenvolver, a menos que as pessoas a desafiassem, quebrassem as regras, e, às vezes, infringissem a lei.

Burroughs era obcecado pela característica de vírus da linguagem. O senhor pode falar mais sobre isso?

Burroughs acreditava que a linguagem era impregnada de toda a forma de ideias e atitudes, e que a linguagem em si ajudava na perpetuação dos sistemas de controle que governavam a vida das pessoas.  Ele achava que tudo deveria ser questionado: patriotismo, religião, educação, relacionamentos familiares, nação – todas as ideias que as pessoas inconscientemente aceitam deveriam ser repensadas. Se você ainda aprovasse essas ideias, ele não discutiria. Só queria que todos pensassem por si mesmos e fossem livres do controle dos anúncios e propagandas.