terça-feira, 6 de agosto de 2013

Novela de Peronella


Por Giovani Bocaccio
Tradução de Maurício de Santana Dias
Da Ilustríssima


SOBRE O TEXTO 
Escrito entre 1349 e 1351 (ou 53), o "Decameron" inaugura a prosa de ficção no Ocidente. A novela aqui reproduzida é uma das dez selecionadas, dentre as cem que compõem a obra, pelo crítico e tradutor Maurício Santana Dias para edição comemorativa dos 700 anos de Boccaccio, a sair em outubro pela Cosac Naify. Esta novela, como frisa o organizador, mostra que o tema do adultério, para o escritor, "não é visto necessariamente como um pecado em si, podendo se transformar no elogio da astúcia contra a tolice".

*
Peronella esconde um amante num tonel ao ver que seu marido está de volta à casa. Este lhe diz que vendeu o tonel, e ela responde que acabara de negociá-lo com um homem que está dentro dele, conferindo se lhe parece firme. Então o amante sai de lá e faz o marido entrar nele e raspá-lo, antes de levá-lo para casa.

Todos escutaram a novela de Emilia com fortes risadas e tomaram a oração por boa e santa. Tão logo ela chegou ao fim, o rei ordenou a Filostrato que prosseguisse, e este assim começou:

- Minhas queridas, são tantas as trapaças que os homens lhes fazem, especialmente os maridos, que, quando às vezes ocorre de uma mulher enganar o marido, vocês deveriam não só se mostrar contentes com o fato -e de sabê-lo e ouvi-lo de outro-, mas também espalhar a notícia por aí, a fim de que os homens compreendam que, se eles podem, por seu turno as mulheres também podem; coisa que não lhes poderia ser mais proveitosa, porque, quando algum deles souber que outros também são capazes disso, não se meterá a querer enganar tão levianamente.

Quem duvidaria, pois, que, ao tomar conhecimento da matéria que narraremos hoje, os homens teriam grande motivo de evitar ludibriá-las, sabendo que do mesmo modo vocês, se quisessem, poderiam enganá-los? Portanto é minha intenção contar-lhes como uma jovenzinha, embora de humilde condição, conseguiu burlar o marido em dois tempos a fim de salvar-se.

Não faz muito, em Nápoles, um pobre homem casou-se com uma mulher bonita e volúvel chamada Peronella; ambos tinham escassos recursos e levavam a vida como podiam, ele, trabalhando de pedreiro, e ela, a fiar em casa. Aconteceu um dia que um jovem conquistador, pondo os olhos em Peronella e agradando-se muito dela, acabou se apaixonando; e tanto fez e insistiu que, ao final, tornou-se íntimo da mulher.

A fim de poder se encontrar, fizeram o seguinte acerto: como o marido se levantava bem cedo toda manhã para trabalhar ou buscar trabalho, o jovem deveria vigiar a casa às escondidas até que ele saísse; e, como o local onde moravam -que se chama Avorio- era muito solitário, assim que o homem saísse, ele entraria na casa; e foi o que fizeram várias vezes.

No entanto, certa manhã em que o bom homem saiu e Giannello Scrignario -este era o nome do jovem- entrou na casa e já estava com Peronella, depois de algum tempo o marido voltou, coisa que nunca fazia. Ao ver a porta trancada por dentro, bateu e se pôs a pensar consigo: "Oh, Deus seja louvado! Apesar de me ter feito pobre, deu-me em compensação esta esposa jovem, bela e honesta! Olha só como ela tranca a porta por dentro assim que eu saio, para que nenhuma pessoa possa entrar e molestá-la".

Ao perceber a chegada do marido, que a mulher reconheceu pelo modo de bater à porta, Peronella disse: "Ai de mim! Giannel, meu querido, estou morta; aí está meu marido de volta, o desgraçado; não sei o que isso quer dizer, pois ele nunca retorna a esta hora: quem sabe o viu quando você entrou! Mas não importa: pelo amor de Deus, entre naquele tonel ali enquanto vou abrir a porta para ele, e vamos ver o que significa isso de voltar para casa tão cedo".

Giannello entrou rapidamente no tonel, e Peronella foi abrir a porta ao marido, dizendo-lhe de cara feia: "Ora, que novidade é esta de hoje você voltar tão cedo para casa? Pelo que vejo, você não quer fazer nada esta manhã, já que veio com as ferramentas na mão: se você agir assim, o que será de nós? De que vamos viver? O que vamos comer? Acha que estou feliz de você empenhar minhas roupas e meus trapos, eu, que não faço senão fiar dia e noite, tanto que a carne me saltou da unha, só para pelo menos termos óleo com que acender nossa lamparina? Marido, marido não há vizinha que não se surpreenda e não troce de mim, tal é a fadiga que eu suporto -e você me volta para casa de mãos abanando, quando devia estar trabalhando".

E, ao falar assim, desatou a chorar e a repetir: "Ai de mim! Tão cansada e sofrida! Em que má hora nasci, sob que estrela ruim! Poderia ter tido um jovem bem situado e não quis, só para me juntar a um homem que não pensa na esposa! As outras se divertem com seus amantes, e não há mulher que não tenha ao menos dois ou três, gozando e passando gato por lebre aos maridos; e eu, coitada de mim! Porque sou boa e não dou atenção a essas coisas, padeço e vivo em má sorte. Não sei por que não arranjo uns amantes, por que não faço como as outras! Veja bem, meu marido, se eu quisesse me comportar mal, logo acharia com quem, porque há muitos galanteadores que me cortejam e me querem bem, até me ofereceram um monte de dinheiro ou, se eu quisesse, objetos e joias, mas meu coração nunca vacilou, porque minha mãe sempre me deu bom exemplo -e você me volta para casa quando devia estar trabalhando!".

Então o marido disse: "Eh, mulher, não fique triste, pelo amor de Deus! É verdade que saí para trabalhar, mas se vê que, assim como eu, também você não sabia que hoje é festa de São Cânio de Atela, e não se trabalha; por isso voltei cedo para casa. No entanto, achei um jeito de termos pão para mais de mês: vendi ao sujeito que está aqui comigo nosso tonel, que há tanto tempo nos atravancava a casa, e vou receber cinco moedas por ele".

Então Peronella respondeu: "Isso tudo só me faz mais triste: você, que é homem e anda por aí, deveria conhecer as coisas do mundo, mas vendeu um tonel por cinco moedas; já eu, que sou mulher e quase nunca passo da porta de casa, vendo a situação incômoda em que estávamos, vendi o tonel por sete moedas a um bom homem, que entrou nele para inspecioná-lo assim que você voltou".

Quando o marido ouviu isso, ficou contentíssimo e disse ao homem que viera para levá-lo: "Meu bom homem, vá com Deus; como você ouviu, minha mulher o vendeu por sete moedas, e sua proposta não passava de cinco".

O bom homem disse: "Então está bem" -e foi embora.

E Peronella falou ao marido: "Já que você está aqui, venha comigo e trate pessoalmente de nossos negócios".

Giannello, que estava de orelha em pé para ver se corria risco ou precisaria agir, mal ouviu as palavras de Peronella, saltou imediatamente para fora do tonel; e, como se não tivesse notado o retorno do marido, começou a dizer: "Boa senhora, onde está?".

Ao que o marido, que já chegava, respondeu: "Aqui estou, em que posso servi-lo?".

E Giannello: "Quem é você? Quero falar com a mulher com quem tratei deste tonel".

O bom homem respondeu: "Pode tratar diretamente comigo, que sou o marido".

Então Giannello disse: "O tonel me parece bem firme, mas acho que vocês andaram despejando imundícies lá dentro, porque ele está todo encrostado de coisas tão secas que não consegui tirá-las com as unhas, e só vou fechar negócio se ele estiver limpo".

Então Peronella emendou: "Não seja por isso: meu marido vai limpá-lo bem".

Ao que o marido respondeu: "Com certeza"; em seguida, arriou as ferramentas no chão, pôs-se em mangas de camisa, pediu uma lamparina, uma raspadeira, entrou no tonel e iniciou a limpá-lo. Enquanto isso, como se quisesse acompanhar o serviço do marido, Peronella pôs a cabeça na boca do tonel - que não era muito larga - e, além disso, um dos braços e o ombro, e começou a dizer: "Raspe aqui, ali e ali também" e "Veja, aqui ficou uma casquinha".

Ao ver a mulher instruindo e chamando a atenção do marido, Giannello, que ainda não tinha saciado plenamente seu desejo quando o homem chegou, e vendo que não poderia satisfazê-lo como queria, imaginou um jeito de arranjar-se; assim, achegando-se à mulher que, naquela posição, cobria toda a boca do tonel, fez como os cavalos que, desenfreados e ardentes de amor, assaltam nas vastas campinas as éguas de Pártia no cio e levou a cabo seu desejo juvenil; por fim, quase ao mesmo tempo em que o tonel foi limpo e raspado, ele se desgrudou da mulher e Peronella, tirando a cabeça do tonel, deixou que o marido saísse.

Então ela falou a Giannello: "Tome esta lamparina, bom homem, e veja se agora está de seu agrado".

Olhando o tonel por dentro, Giannello se mostrou satisfeito e disse que estava bom; em seguida, desembolsou as sete moedas e mandou levá-lo até sua casa.

Notas

BOCCACCIO (1313-75), filho de um mercador toscano, inaugurou a prosa de ficção no Ocidente com o clássico "Decameron".

MAURÍCIO SANTANA DIAS, 45, professor de literatura italiana na USP, organizou e traduziu seleção de novelas do "Decameron".

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