segunda-feira, 29 de junho de 2015

Encontros com Susan - Fragmentos de uma entrevista de 1978

Francesca Angiolillo
Ilustração de Leda Catunda
Da Ilustríssima




A escritora norte-americana Susan Sontag (1933-2004) foi entrevistada duas vezes em 1978 pelo jornalista Jonathan Cott para a revista Rolling Stone, que, em 1979, publicou parte do diálogo. A íntegra, editada em inglês em 2013, sai no mês que vem no Brasil; uma seleta das respostas é apresentada, em tópicos, aqui.


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Um escritor é alguém que presta atenção ao mundo. A famosa definição de Susan Sontag para seu ofício é, quase certamente, a melhor definição dela própria.

Ficcionista, dramaturga, crítica e sobretudo ensaísta mas também cineasta e, notavelmente, ativista, Sontag foi autora de um livro inteiro sobre fotografia no qual, ultrapassada a capa, não há uma só fotografia; e de um ensaio de história cultural sobre a doença escrito praticamente num leito de hospital, ao longo de um tratamento contra o primeiro de seus dois cânceres o segundo a mataria aos 71 anos, em 2004.

Foi em 1978, aproximando-se a confluência desses lançamentos Sobre Fotografia saíra no ano anterior; Doença como Metáfora estava para sair, bem como o livro de contos I, Etcetera que o jornalista Jonathan Cott entrevistou a escritora. Ele conhecera Sontag quando era aluno na Universidade Columbia, em Nova York, onde ela lecionava, e viria a ter com ela algumas vezes ao longo dos anos 1960. Até o fim da década seguinte, porém, Cott não tinha achado oportunidade para um almejado encontro mediado pelo gravador.

Quando Sontag aceitou a proposta de ser entrevistada para a revista Rolling Stone, eles se viram em Paris, onde a ensaísta estava morando, no mês de junho. Conversaram por três horas, ao fim das quais a entrevistada para surpresa do entrevistador, que ia se dando por satisfeito propôs um segundo encontro, em Nova York, para onde estava voltando.

Esse novo encontro se daria só em novembro; a entrevista foi publicada quase um ano depois, em outubro de 1979 um terço dela. A íntegra da conversa em dois tempos dormiu nos arquivos de Cott até 2013, quando foi publicada em livro pela Yale University Press. No mês que vem, sai no Brasil como Susan Sontag: Entrevista Completa para a Revista 'Rolling Stone' [trad. Rogério Bettoni, Autêntica, R$ 34, 128 págs.].

Na segunda resposta a Cott, Sontag expressa sua noção de estar no mundo e atenta.

Olha, o que quero é estar presente por inteiro na minha vida ser quem você é de verdade, contemporânea de si mesma na sua vida, dando plena atenção ao mundo, que inclui você. Você não é o mundo, o mundo não é idêntico a você, mas você está nele e presta atenção nele. O escritor faz isso presta atenção no mundo. Sou contra essa ideia solipsista de que está tudo na nossa cabeça.

De uma ou outra forma, as cerca de cem páginas que se seguem podem ser lidas como uma glosa dessa ideia e de outra, complementar, que é a de que esse estar no mundo é sempre mutável.

Cott recorda que, em determinado momento entre os dois encontros, Sontag lhe dissera: Precisamos nos ver logo porque eu posso mudar demais. Isso me surpreendeu, confessa ele. Rindo, a escritora responde: Por quê? Parece tão natural.

DESLOCAMENTOS

Sontag teve uma biografia incomum e marcada por mudanças e deslocamentos, nem sempre voluntários. Não conheceu o pai, um comerciante de peles que morreu na China quando ela tinha quatro anos. Sua mãe, alcoólatra, decidiu sair de Nova York para o Arizona em busca de clima mais quente para a irmã de Susan, que era asmática.

Ter aprendido a ler sozinha aos três anos, quando a maioria das crianças está ainda estruturando a linguagem verbal, fez dela uma devoradora de livros. Mais ainda, fez com que ela questionasse a validade mesma do conceito de infância, como se vê na entrevista.

Diante da conturbada vida familiar, afirma-se sem origens, o que pode ter a ver com a perseguição da autonomia em sua trajetória.

Precoce em tudo, casou-se aos 17 com Philip Rieff, seu professor na Universidade de Chicago a segunda que frequentava, depois de um período em Berkeley. Aos 25, abandonaria casamento e vida acadêmica de uma tacada, após um período na Europa. Seguiu vida independente, ao lado do filho, David, e de amantes a última foi a fotógrafa Annie Leibovitz.

A maneira como saltou de tema a tema e se aventurou em diferentes formas de expressão, semelhante à forma errática como escolhia leituras na infância, é notável e, às vezes, vista como ligeireza.

Não se pode interpretar a obra a partir da vida. Mas pode-se, a partir da obra, interpretar a vida, escreveu em um de seus ensaios mais famosos, Sob o Signo de Saturno. O que diz sobre o filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940), vale em boa extensão para ela mesma, e os fulcros entre as instâncias surgem na entrevista com Cott, ao final da qual fica a impressão de que Sontag está mais em seus livros do que considerava.

Embora seu pensamento seja límpido a maneira articulada como falava, em parágrafos extensos e bem cuidados, é frisada por Cott no prefácio a figura que fica desse livro é mais errática, humana e acessível do que a imagem de séria Minerva, mecha branca sobre a fronte, que se tem dela.

É essa a Sontag que, na íntegra, nos convida a ler sua obra e nos faz pensar sobre o que, no mundo de hoje, captaria sua atenção.

ESTAR NO MUNDO

O que quero é estar totalmente presente na minha vida -ser quem você realmente é, contemporânea de si mesma na sua vida, dando plena atenção ao mundo, que inclui você. Você não é o mundo, o mundo não é idêntico a você, mas você está nele e presta atenção nele. O escritor faz isso -presta atenção no mundo. Sou contra essa ideia solipsista de que está tudo na nossa cabeça. Mentira, há um mundo lá fora quer você esteja nele ou não.

ESCREVER SOBRE A DOENÇA

Escrever não costuma ser agradável para mim. Geralmente é muito cansativo e entediante, porque passo por muitos rascunhos quando escrevo. E, apesar do fato de que tive
de esperar um ano para começar a escrever, A Doença como Metáfora foi uma das poucas coisas que escrevi bem rápido e com prazer, pois podia me conectar com tudo que estava acontecendo diariamente na minha vida.

ENVELHECER

Você não pode se irritar com a natureza. Não pode se irritar com a biologia. Todos nós vamos morrer -é algo muito difícil de aceitar- e todos vivenciamos esse processo. A sensação é de que existe uma pessoa -na sua cabeça, basicamente- presa nesse repertório fisiológico que vai sobreviver pelo menos uns 70 ou 80 anos, normalmente, em uma condição decente qualquer. Em certo momento ela começa a se deteriorar, e então durante metade da sua vida, talvez até mais, você observa essa matéria se desgastar. E não pode fazer nada a respeito.

LEITURA

Ler é minha diversão, minha distração, meu consolo, meu pequeno suicídio. Quando não consigo suportar o mundo, me enrosco a um livro, e é como se uma nave espacial me afastasse de tudo. Mas minha leitura não é nada sistemática. Tenho muita sorte de conseguir ler rápido, acho que, comparada à maioria das pessoas, sou uma leitora veloz, o que me dá uma vantagem grande de poder ler bastante, mas também tem suas desvantagens porque não me envolvo muito com aquilo, apenas absorvo e deixo digerindo em algum lugar. Sou muito mais ignorante do que as pessoas pensam. Se você me perguntar o que significa estruturalismo ou semiologia, não saberei dizer. Sou capaz de me lembrar de uma imagem numa frase de Barthes e ter uma ideia geral daquilo, mas não entender muito bem.


ARGUMENTOS

Não tenho paciência para ensaios que usam um argumento linear. Sinto que tenho de tornar as coisas mais sequenciais do que realmente são porque minha mente simplesmente salta, e um argumento, para mim, se parece muito mais com os raios de uma roda do que com os elos de uma corrente.


AUTONOMIA

Meu desejo era ter diversas vidas, e é muito difícil ter diversas vidas quando temos um marido -pelo menos no tipo de casamento que eu tinha, algo inacreditavelmente intenso. [...] Por isso digo que, em algum momento da nossa trajetória, precisamos escolher entre a Vida e o Projeto.


ERUDITO & POPULAR

No final dos anos 50, vivi num universo totalmente acadêmico. Ninguém sabia de nada, e eu não conhecia uma única pessoa com quem pudesse compartilhar essas coisas, então não comentava nada com ninguém. Não perguntava coisas do tipo: Você ouviu aquela música?. As pessoas que eu conhecia falavam de Schönberg. Muita gente diz um tanto de baboseiras sobre os anos 50, mas é verdade que, naquela época, havia uma separação completa entre as pessoas antenadas com a cultura popular e aquelas envolvidas com a alta cultura. Nunca conheci ninguém que se interessasse pelas duas coisas; eu sempre me interessei pelas duas e costumava fazer tudo sozinha porque não tinha ninguém com quem compartilhar. Em determinado momento, é claro, tudo mudou. E isso é o interessante dos anos 60. Mas agora, como a alta cultura está sendo liquidada, as pessoas querem dar um passo para trás e dizer: Ei, espera um minuto, Shakespeare ainda é o maior escritor que já existiu, não se esqueçam disso.


TEMAS

Eu não fazia ideia de que estava dizendo a mesma coisa desde que comecei a escrever. É impressionante, mas não gosto de pensar muito nisso porque pode acontecer algo com o que tenho na minha cabeça. A maioria das coisas que faço, ao contrário do que pensam, é muito intuitiva e nada premeditada, e não aquele tipo de atividade cerebral calculada que as pessoas imaginam. Apenas sigo meus instintos e minhas intuições.


FOTOGRAFIA

Eu amo fotografias. Não tiro fotos, mas observo, gosto, coleciono, sou fascinada por elas... é um interesse antigo e muito apaixonado. Comecei a ter vontade de escrever sobre fotografia quando percebi que essa atividade central refletia todos os equívocos, contradições e complexidades da nossa sociedade. Esses equívocos, contradições ou complexidades definem a fotografia, a maneira como pensamos. E considero interessante que essa atividade, que para mim envolve tirar fotografias e também observá-las, encapsula todas essas contradições -não consigo pensar em outra atividade em que todos esses equívocos e contradições estejam tão incorporados.


FRAGMENTOS

A Vênus de Milo nunca teria se tornado tão famosa se tivesse braços. Começou no século 18, quando as pessoas viram a beleza das ruínas. Suponho que o amor pelos fragmentos tem primeiro a ver com certo sentido do páthos da história e com as devastações do tempo porque o que aparecia para as pessoas na forma de fragmentos eram obras, cujas partes despencaram, foram perdidas ou destruídas. E agora, é claro, é possível e muito convincente que as pessoas criem obras na forma de fragmentos. Os fragmentos no mundo do pensamento ou da arte parecem ruínas, como aquelas artificiais que os ricos colocavam em suas propriedades no século 18.

SENTIR E PENSAR

Uma das minhas campanhas mais antigas é contra a distinção entre pensar e sentir, o que é realmente a base de todas as visões anti-intelectuais: cabeça e coração, pensamento e sentimento, fantasia e julgamento... não acredito que isso seja verdade. Temos mais ou menos o mesmo corpo, mas tipos muito diferentes de pensamentos. Acredito que pensamos muito mais com os instrumentos dados pela cultura do que pelo corpo, e disso surge uma diversidade muito maior de pensamento no mundo. Tenho a impressão de que o pensar
é uma forma de sentir, e que o sentir é uma forma de pensar.

METÁFORAS

Não que eu seja contra poesia -ao contrário, as duas coisas que mais leio são poesia e história da arte. Mas, na medida em que existe uma coisa chamada prosa e outra coisa chamada pensamento, acho que fico girando e girando em torno do problema do que é a metáfora.Não é como uma comparação: se você diz que uma coisa é como outra coisa, tudo bem, você deixa claro quais são as diferenças... embora às vezes não fique tão claro, porque a poesia pode ser muito compacta. Mas quando você diz, por exemplo, a doença é uma maldição, vejo como um tipo de colapso do pensamento -é uma forma de parar de pensar e cristalizar as pessoas em determinadas atitudes.

ESTEREÓTIPOS

As pessoas dizem o tempo todo: Ah, não posso fazer isso. Tenho 60 anos, estou velha demais. Ou: Não posso fazer isso, tenho 20 anos. Sou nova demais. Por quê? Por que dizer isso? Na vida você quer manter o máximo possível de opções abertas, mas é claro que quer poder ser livre para fazer escolhas verdadeiras. Quer dizer, não acho que você possa ter tudo, e é preciso fazer escolhas. Os americanos tendem a pensar que tudo é possível, e eu gosto disso nos americanos [rindo]; nesse sentido me sinto muito americana.

MASCULINO E FEMININO

Sinto uma lealdade intensa para com as mulheres, mas ela não se estende ao ponto de dar minha obra apenas para revistas feministas porque também sinto uma lealdade intensa para com a cultura ocidental. Apesar do fato de ser profundamente comprometida e corrompida pelo sexismo, é essa a cultura que temos, e sinto que precisamos trabalhar com essa coisa comprometida, ainda que sejamos mulheres, e fazer as correções e transformações necessárias.

TRANSSEXUALIDADE

Certamente haverá outros relatos no futuro, mas o que as pessoas mais notaram sobre a mudança de Jan Morris é que ela realmente se identifica com uma ideia bem convencional de feminilidade -quando James Morris cogitou como seria se tornar Jan Morris, pensou o seguinte: Eu gostaria de vestir isso, agiria dessa ou daquela maneira, sentiria isso ou aquilo, e ela o fez em termos que considero estereótipos culturais convencionais.

INFÂNCIA

Comecei a ler aos três. O primeiro romance que me comoveu foi Os Miseráveis -chorei, solucei, lamentei. Quando você é uma criança leitora, acaba lendo os livros que estão pela casa. Lá pelos 13 anos, li Mann, Joyce, Eliot, Kafka, Gide -basicamente os europeus. Só fui descobrir a literatura americana muito depois. Descobri um monte de escritores nas edições da Modern Library, que eram vendidas numa loja de cartões comemorativos da Hallmark, e eu costumava guardar minha mesada e comprar todos. Cheguei a comprar uns abacaxis também, como A Riqueza das Nações, de Adam Smith [rindo]. Eu achava que tudo da Modern Library devia ser ótimo.


ORIGENS

Não quero retornar às minhas origens. Acho que elas são apenas o ponto de partida. Minha interpretação é de que já cheguei longe demais. E o que me agrada é a distância que já percorri desde minhas origens. Isso porque tive, como já mencionei, uma infância sem raízes e uma família extremamente fragmentada. Em Nova York tenho vários parentes próximos que nunca vi. Não sei quem são. E isso tem apenas a ver com o fato de eu fazer parte de uma família que ruiu, se desintegrou ou se separou. Não tenho nada a que retornar, não consigo imaginar o que encontraria. Passei a vida toda me distanciando.

AMOR

Pedimos tudo do amor. Pedimos que seja anárquico. Pedimos que seja o elo que une a família, que permite que a sociedade seja ordenada, que permite que todos os tipos de processos materiais sejam transmitidos de uma geração para a outra. Mas acredito que a conexão entre amor e sexo é muito misteriosa. Parte da ideologia moderna do amor consiste em assumir que amor e sexo andam sempre juntos. Acho que eles podem andar juntos, mas acredito mais numa coisa em detrimento da outra. Talvez o maior problema dos seres humanos seja o fato de as duas coisas simplesmente não caminharem juntas. E por que as pessoas querem se apaixonar? Isso é muito interessante. Em parte, as pessoas querem se apaixonar da mesma maneira como voltam a uma montanha-russa -mesmo sabendo que seu coração vai se partir.

AUTODIDATA
Penso em mim mesma como alguém que se criou -é uma ilusão que funciona. Também penso em mim mesma como autodidata, apesar de ter tido uma excelente educação -Berkeley, Chicago, Harvard. Mas ainda acho que, em essência, sou autodidata. Nunca fui discípula nem protegida de ninguém, não fui lançada por ninguém, não fiz minha carreira por ser amante, esposa ou filha de alguém. Nunca esperei que fosse de outra maneira.

ZERAR

Sabe, eu tenho uma fantasia persistente -é claro que nunca a realizo porque não sei como, e talvez também não tenha tanto tempo de vida para fazê-la valer a pena- mas tenho essa fantasia de jogar tudo para o alto e começar do zero, usando um pseudônimo que ninguém relacionaria a Susan Sontag. Eu adoraria fazer isso, seria maravilhoso começar de novo e não ter de carregar o peso de uma obra já feita.

MUDANÇAS

Sinto que estou mudando o tempo inteiro, algo difícil de explicar, porque as pessoas costumam acreditar que a atividade do escritor está ou ligada à expressão de si ou à criação de uma obra que convença ou mude as pessoas de acordo com as visões do escritor. Não acho que nenhum dos dois modelos faça sentido para mim. Quer dizer, escrevo em parte para mudar a mim mesma, de modo que não tenha que pensar sobre alguma coisa depois de escrever sobre ela. Na verdade escrevo para me livrar dessas ideias.


TAREFA

Antes eu disse que a tarefa do escritor é prestar atenção no mundo, mas obviamente acredito que a tarefa do escritor, como a concebo em relação a mim mesma, também é manter uma relação agressiva e antagônica para com todos os tipos de falsidade... [...] Acho que sempre deveria haver pessoas autônomas que, por mais quixotesco que pareça, tentam arrancar mais algumas cabeças [da Hidra de Lerna], tentando acabar com a alucinação, a falsidade e a demagogia, tornando as coisas mais complicadas, pois existe um impulso inevitável para tornar as coisas mais simples.


VIDA & OBRA

Se algo que na verdade acontece cabe perfeitamente num personagem que estou escrevendo, posso muito bem usar aquele fato em vez de criar algo diferente. Então às vezes emprego coisas da minha própria vida porque parecem funcionar, mas não acho que eu esteja representando a mim mesma. [...] Eu estou interessada é no que está no mundo. Toda a minha obra é baseada na ideia de que realmente existe um mundo, e sinto que estou nele de fato.


PARAR DE PENSAR

Para mim, a coisa mais terrível seria sentir que concordo com as coisas que já disse e escrevi -isso me tornaria ainda mais desconfortável, pois significaria que parei de pensar.


FRANCESCA ANGIOLILLO, 43, é editora-adjunta da Ilustríssima.

LEDA CATUNDA, 54, é artista plástica. Ela participa da exposição Geração 80: Ousadia & Afirmação na galeria Simões de Assis, em Curitiba, até 1/8.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Nossos gostos culturais estão muito infantilizados?


Michael Hogan e Ed Cumming

Do "Guardian"
Tradução de Paulo Migliacci


Michael Hogan, crítico de entretenimento

O nerd meiguinho mostrou os dentes esta semana quando o ator Simon Pegg criticou os filmes de super-heróis como infantis e sugeriu que a indústria do cinema havia emburrecido. Isso pode ser um exemplo clássico de sujeito com telhado de vidro atirando pedra, no caso de Pegg, cuja carreira inteirinha consiste em ser o palhaço príncipe dos nerds, como ele mesmo conta em sua autobiografia Nerd Do Well [trocadilho que contraria a expressão ne'er do well, que descreve os sujeitos que jamais se dão bem]. Mas concordo com a crítica.
A cultura pop desativou os nossos cérebros e paralisou nosso desenvolvimento. Os cinemas estão repletos de espetáculos de computação gráfica, desenhos animados fofos da Pixar e entediantes continuações de passados sucessos. Todos os nossos restaurantes servem hambúrgueres artesanais, hot dogs finos e frango frito falsamente irônico. Nossos guarda-roupas estão lotados de blusas com capuz, macacões, camisetas com logotipos e outras formas de roupas de bebê superdimensionadas. Nossos feeds de Facebook estão repletos de monossílabos infantis e de fala de bebê simulada. É como se estivéssemos congelados na adolescência, e o pronunciamento de Pegg procede, ainda que seja um tanto absurdo, vindo dele.
Depois da inevitável tempestade em xícara de chá que o Twitter sempre propicia, ele retirou o que havia dito, em um post de blog no qual critica sua afirmação anterior (bem, pelo menos não foi uma carta aberta). Simon Pegg pode ter se colocado em uma enrascada, mas o ponto original de seu argumento continua válido. A vingança dos nerds agora se completou, e eles herdaram o planeta. Mas sua produção subsequente nos transformou em crianças grandes, obcecadas por quadrinhos, jogos de computador, fast food e nostalgia preguiçosa. Os sonhos que sonhávamos acordados em nossas infâncias dos anos 80 e 90 se tornaram realidade no século 21 e isso representa um desperdício cretino para todos nós.


Ed Cumming, editor de artigos da revista do Observer

Como ele mesmo percebeu rapidamente, as palavras de Pegg foram um passo em falso. Mas é possível compreender o motivo: o lamento de todos os homens que começam a envelhecer por as coisas já não serem o que eram. Para os nerds, o problema não é que existam astronautas e super-heróis demais, mas que agora o tipo errado de pessoas gosta deles. Pode-se compreender por que isso irrita o sujeito - constrói uma persona em torno de encontrar valor em formas de arte negligenciadas, e agora de repente todo mundo mais também as adora. A primeira estratégia, nesse caso, é redefinir sua posição e insistir em chamar quadrinhos de graphic novel - um exemplo clássico de insistir em um rótulo inteligente que na verdade prova burrice. O passo seguinte é deixar essas coisas no passado, como Pegg alega estar acontecendo com ele. Mas sua declaração não nos engana.
Ele recua a filmes como Taxi Driver, esquecendo que em 1976 o épico de Scorsese foi superado nas bilheterias por King Kong e pela versão de Nasce uma Estrela com Barbra Streisand, que ninguém compararia ao Rei Lear de Kosintev. Thor e Capitão América podem ter faturado mais, mas os filmes mais comentados do ano passado foram um longa de três horas sem trama aparente sobre o amadurecimento (Boyhood) e um filme de arte sobre um baterista de jazz (Whiplash). O Oscar de melhor ator foi para uma interpretação de um astrofísico que sofre de uma profunda deficiência física. Onde está o emburrecimento? Online, todo mundo pode ser crítico e criador - má notícia para a velha guarda mas boa notícia para a cultura pop.



MH: Os filmes que você citou foram os mais mencionados pelos críticos de grandes jornais, pelos comitês de seleção para prêmios e pela pavorosa elite metropolitana, mas não no mundo real. Nas bilheterias tanto britânicas quanto mundiais, nenhum deles esteve entre os 50 filmes mais assistidos - lamentavelmente liderado por Transformers, que encabeçou os 10 mais em companhia de quatro filmes de super-heróis, quatro continuações e uma aventura espacial.

Quando eu era menino (é aqui que entra a música do anúncio da Hovis), havia um Guerra nas Estrelas ou Super-Homem por ano, se a gente tivesse sorte. Eram verdadeiros eventos para a comunidade, e os cinemas locais lotavam de crianças de verdade, e não de homens de meia-idade e infantilizados falando sem parar sobre repaginações, arcos narrativos e histórias sombrias sobre origens, em um esforço por tentarem se convencer de que não estão aprisionados em um eterno loop adolescente.
Hoje em dia, com um olho nos lucrativos mercados estrangeiros, o outro no merchandising e o terceiro (estamos falando de ficção científica - três olhos são admissíveis) na risonha audiência de homens-meninos, há meia dúzia de adaptações de histórias sobre aventureiros mascarados a cada ano. Os Vingadores: Era de Ultron (acho que a história gira em torno de sabão em pó) continua a liderar as bilheterias, e no verão podemos esperar Ant-Man e The Fantastic Four - para não mencionar novas sequências nas franquias Jurassic Park, Exterminador do Futuro e Missão Impossível, e mais incontáveis outras continuações idiotas de filmes de grande sucesso. É como apanhar na cabeça com um martelo de burrice, e não deveria ser considerado coisa de velhote ou esnobismo dizê-lo.

EC: Há muitos filmes como esses porque eles refletem os apetites da era. Se por mundo real você quer dizer as audiências dos filmes de maior sucesso, então estamos falando de principalmente de rapazes jovens, que sempre gostaram de tiroteios e pancadaria, mas agora se sentem ansiosos quanto aos efeitos da tecnologia e portanto atraídos por filmes que refletem esses medos.
Além disso, existe tanta opção no mundo do entretenimento que as audiências de cinema se deixam atrair por extremos: as lutas mais empolgantes, os efeitos especialíssimos. Os filmes de grande orçamento não concorrem mais só com outros filmes, mas com Grand Theft Auto, Call of Duty e qualquer que seja a mais recente novidade que as pessoas estão baixando em seus celulares. É reducionista dizer que isso é necessariamente infantil. A concorrência gera inovação.
Os grandes estúdios de Hollywood podem depender de marcas conhecidas para sustentar um filme e atrair a atenção inicial das pessoas, mas para além disso há muito trabalho interessante em circulação. Nem mesmo Simon Pegg ousaria argumentar que os filmes de Christopher Nolan sobre o Batman foram piores do que as lambanças anteriores. X-Men, Transformers e Homem de Ferro provaram que se pode fazer mais com o gênero do que medíocres filmes de Super-Homem. JJ Abrams deu vida nova a Jornada nas Estrelas, e parece provável que faça o mesmo com Guerra nas Estrelas. Anjos da Lei 2 foi ainda mais engraçado que o original. Não deveríamos nos deixar enganar por nomes conhecidos.

MH: Quer dizer que a trilogia Cavaleiro das Trevas (quase oito horas de resmungos autoindulgentes com um pedacinho bacana ou outro) foi um pouquinho melhor que as versões cafonas de Joel Schumacher nos anos 90, Anjos da Lei 2 foi ligeiramente mais engraçado e alguns filmes de gente fantasiada e espaçonaves foram marginalmente melhores do que poderiam ter sido? Nossa, estou deslumbrado. Mais mediocridades da Marvel, por favor.
Mas, deixando o sarcasmo de lado, com certeza a era geek já chegou ao pico; será que a fixação de Hollywood por franquias que giram em torno de explosões não poderia ser atenuada em troca de dramas adultos e mais interessantes para a audiência geral? Com porcarias sobre robôs em uma ponta do espectro e bateria de jazz na outra, acho que a distância entre as salas de arte e o multiplex está se ampliando demais. Também gostaria que os preços dos ingressos caíssem para que as audiências não se sentissem compelidas a assistir só aos sucessos garantidos e pudessem experimentar mais. Nerds do planeta, tirem seus óculos 3-D e camisetas falsamente irônicas sobre Bobba Fett (pelo menos até que comece o frenesi de Guerra nas Estrelas, em dezembro). Vocês nada têm a perder exceto a virgindade.


EC: Não sei se você merece vencer um debate sobre a infantilização da cultura pop com uma piadinha sobre virgindade. Mas, deixando isso de lado, sim: a moda de filmes marcados por explosões criadas em computador vai passar. A História separará o joio do trigo. Mas é um mito pensar que algum dia existiu demanda pelo tipo de drama sério sobre o qual você fala. É como imaginar que os romances vitorianos fossem todos brilhantes como os de Dickens, e não histórias vulgares sobre quem dormiu com quem. Cada era tem suas modas, seus artefatos culturais improváveis. Alegar que a nossa é de alguma maneira mais pueril do que qualquer das precedentes, ou que nossos interesses são menos dignos de respeito, é o cúmulo do narcisismo; é até infantil.