segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Simetria e estética no pensamento científico

Por Marcelo Gleiser
Da Ilustríssima

RESUMO Lançado recentemente nos Estados Unidos, novo livro de Frank Wilczek faz uma ode à beleza do mundo natural por intermédio da mente e da lógica de um físico teórico. Na obra, dedicada ao público não especializado, o Nobel de Física de 2004 vê a beleza como expressão de simetria, e a simetria, como verdade.

*

Quando lemos livros sobre ciência para o público não especializado, nos deparamos com uma curiosa divisão dentre autores, dependendo de como escrevem as palavras universo e natureza: enquanto alguns (eu incluído) preferem usar iniciais maiúsculas (Universo e Natureza), outros optam por minúsculas. Volta e meia, tenho que convencer meus editores sobre as nobres razões de minha escolha.

Em julho, foi lançado nos EUA o novo livro do prêmio Nobel de física Frank Wilczek, um dos grandes nomes da ciência mundial. (No Brasil, por enquanto disponível apenas na versão em inglês.) Fiquei feliz ao ver que Wilczek também opta pelas maiúsculas. Lendo A Beautiful Question: Finding Nature's Deep Design (uma bela questão: buscando pelo código profundo da natureza) *[Penguin, 400 págs., R$ 142,60 na Livraria Cultura]*, a razão para a escolha de Wilczek fica clara: o livro, extremamente acessível e inspirador, manifesta a veneração, quase sagrada, que o autor tem pela Natureza.

É uma ode à beleza do mundo natural vista através da ótica matemática dum físico teórico. Para Wilczek beleza é uma expressão de simetria; e simetria, de verdade: uma opção estética ganha valor moral. Nisso, ele se alinha com toda uma visão platônica da ciência, segundo a qual os segredos mais profundos da Natureza são um código matemático, decifrável pela mente humana.

Com frequência, a linguagem de Wilczek é lírica, quase mística: Mudança Sem Mudança: Que mantra estranho, não humano, para a alma da criação!

Para ele, o objetivo da física é revelar a alma da criação. Uma Bela Questão é uma peregrinação pela história da ciência, celebrando em particular a eficácia da matemática como portal para a descoberta da verdade - verdade aqui significando uma descrição precisa dos fenômenos naturais, das partículas subatômicas ao cosmo como um todo:

Nossa questão nos convida a descobrir a beleza na raiz das coisas. Para sermos capazes de respondê-la, temos que trabalhar de dois modos. Devemos tanto expandir nosso senso de beleza quanto nossa compreensão da realidade. Isso porque a beleza que encontramos no mundo natural é tão estranha quanto sua estranheza é bela.

SINFONIA

Esse é o canto das sereias, que aqui nos convida a mergulhar em busca do misterioso código natural, o canto que seduziu Pitágoras, Platão, Kepler, Newton, Maxwell, Einstein e muitas das mentes mais brilhantes da história. Tudo é Número, ouvimos, os segredos da Natureza são um enigma matemático cuja chave é a simetria. Compreender o mundo é ler a mente do Artesão, a divindade que, segundo Platão, arquitetou o cosmo, e que Wilczek usa metaforicamente como a encarnação duma espécie de inteligência que existe na Natureza. Para obtermos uma Teoria de Tudo, apanhado dos detalhes físicos da criação, temos que seguir a sinfonia da simetria.

A questão é de grande importância, e não apenas para cientistas ou filósofos. Ao desvendar o código da criação, transcendemos nossa essência humana, estabelecendo uma conexão com uma dimensão além do tempo. Interessante que é essa, também, a dimensão da experiência religiosa, ao menos segundo a definição do psicólogo William James: uma conexão espiritual com o cosmo. Existem muitos caminhos que levam ao conhecimento do mundo e de nós mesmos, e as artes e as disciplinas humanas têm um papel complementar ao da ciência. Todos são tentativas de compreensão da dimensão humana.

Um aspecto importante na posição de Wilczek e que deveria servir de exemplo para todos cientistas é que ele nunca abandona a franqueza: Nem todas as ideias sobre a natureza da realidade que consideramos belas são verdadeiras...e nem todas as verdades sobre a natureza da realidade são belas. Bom manter a humildade perante o pouco que sabemos, mesmo quando julgamos uma ideia bela demais para estar errada.

Wilczek é um dos poucos físicos vivos cujo trabalho tem, hoje, um status icônico entre seus colegas. Em sua pesquisa, faz uso frequente da simetria, da busca por padrões ordenados em diversos aspectos da Natureza, do subatômico ao cósmico. Nos seus textos para o público não especializado, encontramos metáforas que ilustram também seu modo de pensar: Átomos são instrumentos, seus sons revelados na luz que emitem.

SONHO 

Platônico devoto, como muitos físicos e matemáticos, Wilczek usa a simetria como musa. Porém, ao contrário dos ortodoxos incapazes de autocrítica, o faz de forma lúcida, elogiando aqueles cuja fé não é simplesmente passiva, mas engajada com a realidade. Wilczek sonha de olhos abertos.

O livro é um manifesto apaixonado, uma meditação na qual a busca pela unificação das forças da Natureza - o grande troféu dos platônicos inspirados por uma curiosa união entre o reducionismo científico e um monoteísmo milenar - só será alcançada quando for encontrada a simetria-mãe, que se esconde, sorrateira, sob o véu da realidade que percebemos.

Nenhum físico competente questionaria o papel absolutamente essencial da simetria na construção de teorias que visam descrever quantitativamente os fenômenos naturais. O que permanece em aberto é até onde essa busca pode nos levar. A unificação das leis da Natureza através da simetria é um devaneio platônico ou um objetivo científico concreto?

Não é claro se é a Natureza ou a mente humana que usa a simetria como tijolo fundamental. Não há dúvida de que a simetria é uma ferramenta extremamente útil, que nos permitiu e permite descobrir incontáveis aspectos da realidade física. Dado esse sucesso, a tentação de levar essa estratégia ao extremo é compreensível.

Como escreve Wilczek, o Real tem implica no Ideal e vice-versa: a realidade é expressão da simetria pura. Mesmo que a física subatômica não seja tão bela como esperamos, vemos a realidade distorcida porque usamos os óculos errados: nas energias que podemos estudar hoje, a matéria expressa a simetria de forma imperfeita.

Existe, no entanto, um outro ponto de vista, que afirma que a realidade física é o que é, expressa da forma que a matéria a manifesta. Nesse caso, o Real precede o Ideal, e simetria é uma forma de quantificar parcialmente o que vemos. Se existem assimetrias, se a Natureza é ligeiramente imperfeita, é porque a realidade física pouco se importa com a noção de perfeição. Perfeição é uma expectativa humana, apenas isso. A simetria é uma excelente aproximação, mas não expressa a realidade física mais essencial.

Da mesma forma que podemos, como Wilczek, construir argumentos explorando a eficácia da simetria, podemos argumentar que são as assimetrias e imperfeições que revelam a essência da Natureza, como fiz em Criação Imperfeita: assimetrias na quantidade de matéria e antimatéria no Universo; assimetrias na formulação do Modelo Padrão das partículas elementares, que descreve como interagem através de três forças fundamentais; assimetrias na estrutura das proteínas dos seres vivos; nas formas das nuvens, das árvores, dos rostos humanos.

Imagine se Marilyn Monroe tivesse duas pintas no rosto, exatamente equidistantes de seu nariz? Essa Marilyn simétrica seria horrenda, não? A assimetria também pode ser bela; tudo depende de como definimos beleza, de como incorporamos a estética do imperfeito em nossa visão de mundo. A questão de Wilczek e dos platônicos continua sendo bela, mesmo que a resposta seja a imperfeição.

Podemos argumentar que o poder da matemática vem justamente de sua desconexão com a realidade, já que é uma idealização, uma aproximação das coisas que existem. Para encontrar soluções simétricas nas equações da física, temos que fazer aproximações, muitas vezes descartando certos termos, ou descontando pequenas imperfeições. Segundo esse prisma, a simetria é uma redução da realidade, e não a sua essência.

Isso não significa que devamos abandonar a simetria como ferramenta de exploração da Natureza. Devemos, no entanto, tratar a simetria e a assimetria como aspectos complementares da realidade física. É da tensão criativa entre a simetria e a assimetria que emergem muitas das estruturas que vemos no mundo. Metaforicamente, podemos dizer que as duas são o yin e o yang da criação.

Discuti essas ideias com o próprio Wilczek algumas vezes, em conferências e seminários. Imagino que ele concordaria comigo que uma Marilyn simétrica seria grotesca. Porém não tenho certeza que ele concorde com a importância da estética do imperfeito. Felizmente, a disputa pode ser resolvida, ao menos em princípio.

Nos próximos anos, experimentos no Grande Colisor de Hádrons (LHC), a máquina no Laboratório Europeu de Pesquisa Nuclear (CERN) que descobriu o famoso bóson de Higgs em julho de 2012, poderão (ou não) revelar a presença de partículas supersimétricas, componentes essenciais da construção simétrica que Wilczek e outros defendem como a essência da Natureza.

A tensão e a expectativa dos cientistas são palpáveis. Décadas de trabalho, carreiras inteiras dependem dos resultados. Em jogo estão duas visões estéticas antagônicas, dois modos de se pensar sobre o mundo que vêm definindo a história da filosofia por milênios.

No final, quem decide é a Natureza - ou ao menos o que podemos ver dela.


MARCELO GLEISER, 56, professor titular de física, astronomia e filosofia natural no Dartmouth College, nos EUA, é autor de A Ilha do Conhecimento (Record).