sexta-feira, 25 de abril de 2014

“Sou um grande desconhecido no Brasil”


O escritor José Luiz Passos (Foto: Fernanda Fiamoncini)

Por Gabriela Soutello
Da Revista Cult

“Quando, aos poucos, Pedro de Alvarenga Rubião, protagonista do sexto romance de Machado, Quincas Borba, passa a acreditar que é Napoleão III, o assombro dos seus amigos e convivas vem acompanhado, também, de uma estranha sensação de respeito”. É calcado sobre essa perspectiva dual que estrutura a complexidade ambivalente dos indivíduos, que José Luiz Passos defende as personagens machadianas como pessoas: reais, ilimitadas, mutáveis e autônomas, autoconscientes e construtoras de um universo próprio em constante embate moral frente à observação e avaliação de um outro.
Na segunda edição de Romance com pessoas – A imaginação em Machado de Assis, revisada e ampliada, o autor explora, em ensaios críticos, as intenções que delimitam o ser e o parecer diante do plano social das narrativas machadianas. As principais diferenças entre a primeira edição (Edusp, 2007), e a lançada, em abril pela editora Alfaguara, consistem no acréscimo de ensaios e no corte de redundâncias, além da diminuição das notas de rodapé, da atualização da bibliografia e dos novos títulos entre as seções. Segundo José Luiz, trata-se de um livro “com um apelo menos acadêmico, mais arejado e agradável de se ler”. Para o autor, ganha um novo espírito e vira o ensaio literário “de um escritor que tenta entender outro escritor”.
José Luiz Passos é recifense, graduado em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor de Literatura brasileira e portuguesa na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, país em que realizou mestrado e doutorado e onde vive há dezoito anos. Levantando questões como a dissimulação, a confiabilidade duvidosa, a escassez de idealismos românticos e as contradições, instabilidades e transformações típicas da complexidade humana, que lhe deram dois consagrados prêmios nos últimos meses, ele expõe de maneira nova e precisa o estudo de mecanismos psicológicos e representativos existentes nas pessoas de Machado de Assis.
Em entrevista à CULT, José Luiz discutiu a estrutura narrativa do livro, as assimetrias das personagens de Machado, a complexidade espacial dos seus próprios romances e o seu papel como escritor pernambucano – “imigrante brasileiro em um país estrangeiro”, ainda pouco conhecido no Brasil.

Qual é o principal enfoque dado por você no livro Romance com pessoas – A imaginação em Machado de Assis (2014)?
Existe uma diferença radical entre a maneira como Machado de Assis concebe a vida interior de seus personagens e aquela como os outros escritores do século 19 no Brasil fizeram a mesma coisa. Machado cria uma noção de interioridade para o personagem brasileiro, o que chamo de vida moral, ou seja, experiências e sentimentos que associamos a uma avaliação de nós mesmos: emoções reflexivas como a culpa, a vergonha o remorso ou o ressentimento. O que tento mostrar é que Machado de Assis é o autor brasileiro que traz para a literatura latino-americana, talvez pela primeira vez, a noção da “pessoa” como como lastro para a ficção; sujeitos que se assemelham à maneira como nós próprios nos concebemos. O livro pretende analisar a linguagem moral que usamos para avaliar quem nós somos perante os outros. É um estudo da composição da imaginação moral dos personagens, que mostra o adensamento crescente na composição do caráter psicológico desses sujeitos. E esse estudo parte de uma hipótese fundamentalmente textual.

Qual é essa hipótese? De que maneira ela é abordada no livro?
Ela vem da leitura dos romances e dos contos que fiz durante anos, além do estudo da biblioteca de Machado de Assis – inclusive a “marginalia”, ou seja, daquilo que ele anotou e sublinhou. Foi assim que entendi o interesse que ele tinha na literatura do Renascimento (e, depois, na do século 18), em Cervantes e particularmente em Shakespeare. Tentei acompanhar, na obra de Machado, como ele teria se interessado por autores ingleses em uma época em que a literatura latino-americana estava voltada predominantemente para o modelo francês. Romance com pessoas é um livro ensaístico e livre, que muda de perspectiva e se aproxima da história literária, da filosofia, da crítica e da sociologia. Vou lançando mão de vários métodos, exemplos e estudos de caso para traçar, aos poucos, um painel, a fim de entender o desenvolvimento e a construção da personagem machadiana e dos valores associados à profundidade psicológica em seus personagens. Romance a romance, o livro vai mostrando como esses heróis, protagonistas e narradores constituem uma vida interiormente mais complexa, por causa da relação que estabelecem com o tempo; são personagens que se mascaram e mudam ao correr da pena.

Como se deu a escolha do título?
O título parece esquisito, mas é a hipótese central do livro: pode-se pensar que a diferença entre uma pessoa e uma personagem esteja no fato de que a pessoa existe e a personagem não, porque é ficção. Na verdade, há personagens que foram concebidas para se parecerem com pessoas, como é o caso das de Machado, enquanto outras estão mais próximas a valores típicos ou ideais: “A virtude”, “A adúltera”, “O vilão”, como à época do Romantismo e do Naturalismo. Estas, por causa da sua simplicidade de individuação, não representam aspectos fundamentais daquilo que associamos às pessoas, porque ninguém é tão pura quanto Iracema nem tão vilanesco quanto João Romão, o dono da pensão em O cortiço. Reconhecemos neles símbolos ou arquétipos. Por outro lado, há personagens que se parecem com pessoas, tamanha é a complexidade de suas vidas. Esse tipo de realismo psicológico, que também está em Tolstói, Henry James e Dostoiévski, é o que me interessa esclarecer. Romances com pessoas são justamente aqueles romances escritos com personagens tão densos quanto pensamos que somos nós próprios.

De que maneira é possível associar, hoje, as “pessoas” machadianas com as pessoas reais?
Bentinho, de Dom Casmurro, por exemplo, era um crápula, mas um crápula que às vezes é encantador e às vezes sofre, enquanto nos encena seu drama de consciência disfarçado de libelo acusatório. Os personagens de Machado são ambivalentes, problemáticos, ardilosos e volúveis. Não há como você colocar o dedo e dizer que “essa pessoa é só isso”, porque ela não é. Elas nos encantam precisamente por causa dessa grande variedade de emoções e experiências pelas quais passam, e é nessa variedade que se constitui uma forma mais robusta de pensar o que é a pessoa humana na modernidade: pessoas contraditórias, pessoas que não se conhecem de fato, múltiplos e desiguais. Nós passamos por várias metamorfoses na vida e reconhecemos essas metamorfoses como uma das riquezas e condições de se estar na modernidade; por isso posso trocar de sexo, posso trocar de emprego, de filiação política. Tal capacidade radical de mudança no sujeito (e do sujeito para com os demais) é algo que caracteriza a modernidade. A loucura, o descontrole, a incontinência da imaginação são algumas das questões trabalhadas por Machado. Suas pessoas possuem relações contraditórias e complexas com o passado, e assim o reinventam e manipulam para poder entender suas motivações e atuar nelas, levando em consideração as motivações dos outros. Isso pouco existe em Alencar, por exemplo. O dinamismo moral é uma prerrogativa fundamental do sujeito machadiano.

Por que motivo você acredita que Machado tenha criado essa identidade moral em seus personagens?
Quando falo “moral” não quero dizer “moralizante”, mas eticamente complexo. Esse é um momento em que nossos escritores passam a prestar mais atenção a questões psicológicas, como delírios, sonhos, a loucura. Machado tinha grande interesse em dinâmicas moral e politicamente complexas, nas quais alguém precisa esconder ou fingir convicções ou sentimentos, para não se dar mal ou perder a possibilidade satisfazer seus desejos de controle sobre o outro. A cidadania relativa que alguns desses sujeitos (tanto os “de cima” quanto mais subalternos) têm lhes dota de uma capacidade para escamotear suas emoções. Na obra de Machado esse aspecto vai crescendo e se fortalecendo, transformando-se numa crítica social contundente, sobretudo a partir de [Memórias Póstumas de] Brás Cubas (1881), que se adensa até o último romance, Memorial de Aires (1908). Seus modelos literários influenciaram uma visão diferente em relação aos valores do século 19. Há em Machado uma espécie de anacronismo deliberado, já que, em vez de apoiar o cientificismo e o positivismo do período, ele adota uma perspectiva mais cética. Vai buscar, como modelo, autores que na época eram “démodé”, resultando numa mirada crítica para com os valores da época, enfatizando reflexões sobre problemas de natureza ética.

Diante de um outro, qual seria então o seu papel, José Luiz, como escritor?
Escrevo porque eu sou crítico literário – do ponto de vista mais pragmático, é isso que sei fazer. Mas, de um ponto de vista existencial, escrevo para expressar da melhor maneira possível questões que (espero) tenham relevância coletiva, muito embora representem demônios particulares, que não se calam. Então, com isso busco tornar visíveis relações e problemas que de outra maneira não seriam suficientemente inteligíveis ou articuláveis sem a mediação da escrita. Como escritor tenho meus horizontes literários na relação com um Pernambuco agrário, bem como na realidade iniludível de que sou imigrante brasileiro em país estrangeiro. Essas questões – que têm a ver com a distância e a adaptação – eu desenvolvo na minha ficção, porque são questões que não me abandonam; e sinto vontade de fazer com que sejam relevantes para outras pessoas, não apenas para mim. O gênero do romance é o que eu mais admiro e o mais gosto de ler, então passei a fazer, tanto na crítica quanto na ficção literária, tentativas de responder a questões que para mim existem como expressão de uma linguagem individual na busca de uma experiência na imaginação de outros.

No prefácio do livro, Pedro Meira Monteiro cita que há uma inspiração weberiana despontada no livro. De que maneira a teoria da ação social de Max Weber se entrelaça com os personagens de Machado?
A teoria da Ação Social de Weber é justamente uma tentativa de entender o agir mediante as motivações envolvidas no ato. Nem toda ação humana é social; a ação é social quando um sujeito leva em consideração a expectativa de atuação ou a resposta de um outro. E, no momento em que você conta com a reciprocidade, você se põe no lugar do outro; você imagina a presença do outro como horizonte de atuação. O que Pedro Meira Monteiro destaca é meu uso da teoria da ação social de Weber para se entender a maneira como Machado descreve as motivações de seus personagens de modo mais moderno e complexo, em que, por exemplo, o amor não exclui o cálculo racional. Há uma nova racionalidade envolvida na constituição das motivações, por trás das atitudes desses personagens.

Com seu segundo romance, O sonâmbulo amador (2012), você recebeu dois prêmios recentes: o Grande Prêmio Portugal Telecom de literatura de 2013 e o 2º prêmio Brasília de literatura, na semana passada. Como é para você estar inserido nesse contexto literário?
Para mim foi uma grande surpresa, fiquei contente. Estou longe do Brasil há dezoito anos, nasci em Catende (PE), em uma usina de açúcar; comecei um mestrado na Unicamp (SP) e vim estudar nos Estados Unidos, em 1995. Tenho uma conexão forte com o Brasil: ensino literatura e cultura brasileira, sou casado com uma brasileira e falo português em casa com meus filhos. Como disse no discurso de aceitação do prêmio Portugal Telecom, sou desconhecido no Brasil. Nesse sentido, o prêmio é importante, porque, é claro que ele não torna meu romance melhor, mas o torna mais visível para pessoas que de outra maneira não o leriam. Assim, saio um pouco desse isolamento e entro em uma relação mais produtiva, mais integral, com o cenário literário brasileiro. Escrevo há vinte anos; esse livro é meu quarto livro. Tenho dois romances, dois livros de crítica, ensaios em português, inglês etc. Mas, como atuo na vida acadêmica, e ela tende a ser mais isolada do leitor médio e da grande mídia, eu sofria de certa distância com relação à circulação e aos debates literários. Essa distância não foi negativa, porque me deu espaço e uma reserva técnica de trabalho. Mas os meus livros são mais importantes do que eu, no sentido de que quero que as pessoas conheçam a história dos livros, e não a minha história. Antes dos prêmios, essa relação era mais complexa e até mais cruel, porque essa distância pesava. Agora não: acho que os prêmios são uma confirmação de que o caminho que escolhi é bem-vindo, e eu vejo neles um sinal de que eu vá adiante.

É possível estabelecer algum tipo de relação entre Romance com pessoas e O sonâmbulo amador?
Sou um romancista que tem interesse na construção dos personagens, e nem todos os romancistas são assim. Em um romance policial ou de autoajuda, por exemplo, a importância do enredo é maior que a do personagem; o que é importante é saber quem matou ou qual é a jornada que você precisa fazer para chegar a um contentamento interior seguro, inquestionável. Por outro lado, há uma literatura em que poucas coisas acontecem, há mais reflexão do sujeito a respeito de si mesmo, como acontece em Proust, Machado e Clarice Lispector, com suas articulações sobre o indivíduo no mundo, sobre o mistério do outro, sobre o problema da incomunicabilidade. Há uma preocupação com a vida interior, uma relação complexa com o tempo, um passado que irrompe no presente como obstáculo, como fardo ou como chave. Encontramos isso em Dom Casmurro e em Memorial de Aires, por exemplo. Da mesma forma, meus romances não são lineares; frequentemente o passado retorna a meus personagens como enigma com o qual eles precisam lidar. Em O sonâmbulo amador há uma temática relacionada à ideia da interioridade, destacada através do sonho, do desejo, do trauma. Em Machado, a grande questão da vida interior também passa por aí. Aprendi com ele. Até poderia dizer que copiei dele… Então, acho que há, sim, uma ligação orgânica entre os dois livros.

Você é um escritor pernambucano, nascido em Recife. Em sua opinião, como está o panorama cultural pernambucano hoje? Existem outros autores da região do nordeste que você destacaria?
Há uma efervescência cultural no Nordeste. Por exemplo, filmes como O som ao redor (2012) e Tatuagem (2013), o teatro pernambucano e nomes importantes na literatura. Eu apontaria, entre vários outros, Ronaldo Correia de Brito, cearense que mora há muitos anos no Recife; Marcelino Freire, que é do sertão e vive em São Paulo; Wellington de Melo, Christiano Aguiar, Lira Neto, Samarone Lima; Ariano Suassuna, ainda atuante; Francisco J. C. Dantas, do Sergipe, um dos gigantes, na minha opinião; juntamente com o mestre Raimundo Carrero, também do sertão de Pernambuco, além de, entre os mais jovens, Bruno Liberal, que venceu o Prêmio Pernambuco no ano passado. Então, há um bom momento na ficção do Nordeste e há pessoas que não são do Nordeste mas que estão lá, como Maria Valeria Rezende, que é de Santos (SP), se não me engano, e mora na Paraíba há muitos anos. Para que um autor nordestino seja publicado e distribuído nacionalmente é preciso passar por um sistema cultural estabelecido no eixo Rio-São Paulo, e alguns autores do Nordeste não conseguem chegar até aí – não porque não sejam bons, mas porque as portas para os que vêm de fora são poucas. Porém, de modo geral, acho que esse é um bom momento; não só na literatura, mas também no jornalismo, na biografia, no cinema e na música.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Heidegger privado

 Martin Heidegger, identificado com um x, em um ato de propaganda nazista em novembro de 1933. / Ullstein Bild


Por Luis Fernando Moreno Claros 
Do El País

Três novos volumes pertencentes à monumental edição das obras completas de Martin Heidegger (1889-1976), aparecidos em março na Alemanha, chamaram a atenção para a personalidade e a obra do autor controverso de Ser e tempo, “protagonista supremo da filosofia do século XX” para muitos, “filósofo nazista” e trapaceiro para outros. Tais volumes constituem as primeiras revelações dos chamados “livros pretos”, as cadernetas de capas de borracha preta que Heidegger usava para fazer anotações sobre seus pensamentos. Ele começou a usar este tipo de caderno em 1931 e continuou usando até pouco antes de sua morte.

Por vontade sua, as cadernetas só deveriam ser publicadas como epílogo de suas obras completas. Mantidas no Arquivo de Marbach, ninguém podia lê-las até então. O filho não-biológico de Heidegger, Hermann, proprietário do legado de seu pai, manteve um silêncio ciumento sobre o mistério do seu conteúdo; mas também deu a entender que, entre pensamentos muito valiosos para interpretar a obra de Heidegger, as cadernetas continham “respostas” que esclareceriam o seu envolvimento e ruptura com o Nacional-Socialismo. Além disso, revelaria alguma coisa a mais até então escondida? E uma pergunta candente: Heidegger era antissemita? A partir daí que os estudiosos do filósofo, e não apenas eles, esperavam com expectativa o aparecimento desses volumes. Será que vai atender a tantas expectativas?

Estes três volumes protegidos contêm a transcrição meticulosa de 14 livros negros intitulados “Reflexões”. Dos 34 conservados, ainda restam ser publicados mais 20 com títulos como “Anotações”, “Sinais” e “Noturno”, entre outros; mais 6 volumes devem sair para completar os 102 planejados para culminar na enorme “obra completa” de Heidegger. As mais de mil e seiscentas reflexões heideggerianas, a maioria numerada, que são agora divulgadas pela primeira vez, datam do período entre 1931 e 1941; uma década maldita para os alemães e pouco encantadora para Heidegger. Hitler chega ao poder em 1933; neste mesmo ano, “o filósofo do ser”, o “rei secreto do pensamento” – era assim que os alunos chamavam o professor Heidegger – é nomeado reitor da Universidade de Friburgo. Em 1939, estoura a Segunda Guerra Mundial e, de fundo, a humilhação dos judeus, premonitória de seu extermínio.
Surpreendentemente para muitos de seus conhecidos que não viam nele um “nazista”, Heidegger comungou com os novos detentores do poder na Alemanha; não revelou nem farejou o perigo, mas muito pelo contrário. Enquanto o filósofo Jaspers, amigo de Heidegger, e muitos jovens “heideggerianos” seguidores de seus seminários – Karl Löwith, Hans Jonas, Günther Anders, Herbert Marcuse ou Hannah Arendt – ficaram chocados por aquele revés político, o novo reitor desfilava aqui e ali vestindo a águia alemã sobre a lapela; ou posava para a foto oficial da Universidade com bigode estilo Chaplin-Hitler, rosto severo de führer e olhos iluminados. Em conversa com Jaspers, que expressou que Hitler não era um homem de cultura e muito pouco se poderia esperar dele, Heidegger lhe respondeu: “Isso não importa, o senhor apenas observe suas mãos bonitas”. O “filósofo do começar” se emocionou com Hitler, acreditou que seu advento simbolizava o início de uma nova era que iria encaminhar os alemães à verdade e ao orgulho de sua existência.

Heidegger, bombástico e vazio em sua gravidade política, agiu como um pequeno ditador durante o ano em que atuou como reitor: surpreendeu a universidade. Acreditando ser um novo Heráclito, um filósofo fundador e único, conclamou os alunos a pensar tudo de novo, a “decidir” estabelecer a sabedoria e a cultura como valores absolutos que deveriam ser consagrados com fanatismo. Os outros professores e autoridades nacional-socialistas não concordavam com esse desejo tão temerário de renovação e isolaram Heidegger. Seus anseios de führer universitário, talvez até mesmo de nazista iludido, entravam em confronto com a verdade do que estava acontecendo em todos os lugares, o que não demorou a advertir, assim como confiou a suas cadernetas. Na verdade, o triunfo era do partidarismo e a bruta cultura imposta pelos vencedores – uma “cultura” de corte “popular” –; triunfavam o “ruído” e a “propaganda” (“arte da mentira”) – anotou ele. A Universidade se encontrava tomada por estudantes em uniforme das SA; era preciso medir as palavras naquela instituição transformada em “escola técnica”. Em suma, Heidegger ficou desiludido.

Em 28 de abril de 1934, ele escreveu: “Meu cargo foi posto à disposição, já não é possível uma responsabilidade. Que viva a mediocridade e o ruído!”. Heidegger estava irritado com os nazistas, embora em privado. Logo viu que o grande perigo que estava à espreita na Universidade e, por extensão, na Alemanha constituía “essa mediocridade e essa nivelação que dominam sobre todas as coisas”. Para ele, era insuportável que “professores de escolas asselvajados, técnicos desempregados e pequenos burgueses complexados se colocassem como guardiães do povo”. Em outras anotações posteriores – críticas, como todas as suas – se interrogava sobre a valentia do perguntar, tão cara à sua filosofia. “Por que falta agora no mundo a disposição de saber que não temos a verdade e que devemos perguntar de novo?”. Na época em que vive, escreve novamente, as ciências do espírito se veem submetidas a “uma visão política do mundo”, a medicina se converte em “técnica biologicista”, o direito é “supérfluo” e a teologia “carece de sentido”.

Após o fracasso de seu mandato como reitor, afastado da política (“a real política, uma prostituta”), Heidegger continuou com suas palestras e seminários. Em 1936, começou suas palestras sobre Nietzsche e a interpretar a poesia de Hölderlin. Nos livros negros de 1938 e 1939, os dois autores são onipresentes; o filósofo os via como portadores de “verdades” que os alemães não entendiam. Incompreendidos e solitários, sentia-se próximo a seus destinos: Alemanha, “povo de pensadores e poetas”, não sabe como “povo” apreciar os seus pensadores e poetas. Entretanto, começa a guerra. Heidegger, confinado à sua cabana alpina de Todtnauberg, se concentrou em suas especulações sobre a "existência" ou Dasein imerso nos entes e jejum do “ser”. Em suas notas jamais vemos um eu pessoal que expresse sentimentos; Heidegger é frio e dramático, sem um pingo de humor; só abstração e torção das ideias que saíam de sua caneta.

Algumas anotações de 1941, com ecos antissemitas, causaram polêmica na imprensa internacional. Heidegger, que nunca falou sobre o Holocausto, rejeitava as teorias raciais classificando-as de “mero biologicismo”, mas também escreveu que “... os judeus, dado o seu acentuado dom calculista, vivem desde há muito tempo segundo o princípio racial; daí que agora se opõem com tanto afinco à sua aplicação”. Outras reflexões sustentam que “judaísmo”, “bolchevismo”, “nacional-socialismo” e “americanismo” são estruturas supranacionais que fazem parte do poder ilimitado de uma “trama universal” – “Machenschaft” – a qual só move “interesses” que causaram a guerra mundial. A guerra é a consumação da “técnica”; seu último ato será a “explosão em pedaços de terra e o desaparecimento da humanidade”. Tal resultado não seria uma “desgraça”, escreve o filósofo, “porque o Ser ficaria limpo de suas profundas deformidades causadas pela supremacia das autoridades”. Em outra nota, Heidegger sentencia: “Só restam duas possibilidades ao homem espiritual ativo: estar na ponte de comando de um caça-minas ou voltar o barco do mais extremo perguntar em direção à tempestade do Ser”. Ele escolheu a segunda opção.

No fim da guerra, em 1945, Heidegger é inscrito nas milícias populares para a defesa de Friburgo, mas o Reich capitulou antes que ele pudesse travar combate; sua luta particular se seguiu depois. Rotulado de nazista, os aliados o proibiram de dar aulas. O que mais irritou a comissão que julgou a sua adesão ao nacional-socialismo foi a ausência de arrependimento por parte do famoso professor. Ele se mostrou distante, mudo. Quando voltou a ficar famoso, em vez de dizer algo contundente sobre seu passado ou os crimes nazistas, continuou guardando silêncio. Hannah Arendt atribuiu o seu silêncio enfatizando sua falta de caráter e covardia. Mas havia algo substancial por trás de semelhante silêncio? Um filósofo tão abstrato podia dar respostas claras? (“Toda pergunta, um prazer; toda resposta, um desprazer”, escreveu). Será necessário um estudo profundo dessas cadernetas negras para determinar se as reflexões trazem luz à escuridão de Heidegger. Para começar, uma frase iluminada do próprio Heidegger: “Errar é dom mais escondido da verdade”.


sexta-feira, 11 de abril de 2014

Como Matisse e Picasso converteram a velhice em arte

O pintor Pablo Picasso em 1962
O pintor Pablo Picasso em 1962

Por *Simon Schama
Do Financial Times

Em março de 1946, Pablo Picasso fez uma de suas visitas quinzenais a Henri Matisse em Vence, a alguns quilômetros de Nice. Cinco anos após a crise médica que quase o matara, Matisse, aos 76 anos, ainda era inválido: tinha passado por uma cirurgia radical do cólon e agora fazia boa parte de seu trabalho numa cadeira de rodas ou na cama. Mas sua fertilidade criativa era fenomenal, e ele desfrutava do que descreveu com gratidão e assombro evidentes como sua segunda vida.

As provas dessa ressurreição estavam quase todas no papel: desenhos ilustrativos feitos para livros de poesia renascentista e moderna e, colados ou pregados nas paredes, exemplos da forma radicalmente nova de modernismo que Matisse acabara de inventar: os recortes, uma série extensa dos quais seria publicada como Jazz pelo crítico e editor Tériade, seu amigo, em 1947.

Como sempre, Matisse ficou feliz em ver Picasso, mas, também como sempre, não tinha ilusões quanto à pureza das motivações de seu amigo e rival. Em carta a seu filho Pierre datada de 19 de março, ele escreveu: Picasso veio me ver três ou quatro dias atrás com uma moça muito bonita [Françoise Gilot, amante e musa de Picasso]. Ele não poderia ter sido mais simpático e falou que voltaria e teria muito para me contar. (...) Ele viu o que queria ver: meus trabalhos em papel recortado, minhas pinturas novas, a porta pintada etc. É só isso que ele queria. Ele vai fazer bom proveito de tudo isso com o tempo. Picasso não é franco e direto. Todo o mundo sabe disso há 40 anos.

Matisse tinha consciência havia muito tempo do hábito de Picasso de furtar coisas aqui e ali, algo que frequentemente interpretava como um elogio indireto ou então como incentivo à competição mútua que eles travavam havia quase meio século. Em outros momentos, não gostava nem um pouco. Em 1926, Matisse escreveu a sua filha Marguerite: Não vejo Picasso há anos. Não quero vê-lo de novo. Ele é um bandido que espera para me emboscar. Picasso teria sido o primeiro a admitir o roubo. Quando garoto, o único verbo que ele sublinhou em seu livro didático de latim foi latrocinor: Eu saqueio. Atuo como pirata, assaltante...

A relação entre Picasso e Matisse alternava entre a camaradagem, a desconfiança e o enfrentamento uma espécie de embate clássico entre o porco-espinho e a raposa de Arquíloco; o mestre que sabia uma coisa grande (podemos chama-la de decoração, como fazia Matisse) e o mestre que sabia muitas; o essencialista e o enciclopedista. O que Picasso, o enciclopedista, pensava do recurso mais essencialista de Matisse, os recortes? Embora não existam, que eu saiba, registros de opiniões explícitas dele feitas na época, sabemos que sempre que Picasso pronunciava a palavra decorativo era em sentido pejorativo, com frequência para ironizar os mestres renascentistas e barrocos que ele mais repudiava Rafael (cujo trabalho, ele dizia, ninguém compraria se fosse oferecido como novo no século 20), Ticiano, Tintoretto, Rubens e, estranhamente, Caravaggio, todos os quais ele descartava como sendo bombasticamente cinematográficos.

Matisse, por outro lado, tinha passado boa parte de sua vida defendendo a seriedade do decorativo e a integridade moral do prazer. Para uma obra de arte, o decorativo é uma coisa excepcionalmente preciosa. É uma qualidade essencial.

PRAZER EM IMAGENS

Matisse acreditava na conexão orgânica entre a forma decorativa e o caráter irreprimível da natureza. Ele tinha se engajado em buscar uma linguagem visual que destilasse e traduzisse a experiência do prazer em imagens, sem perda de intensidade sensorial uma linguagem que, na realidade, atuasse como uma espécie de gatilho memorial de deleite terreno.

Após seu surto mais recente de doenças e cirurgias, ele acreditava ter milagrosamente encontrado uma economia visual do prazer, justamente como a que buscava. Mas também se mostrava defensivo em relação a como os recortes seriam recebidos. De fato, houve velhos admiradores e colaboradores dele, como o historiador de arte Christian Zervos, que viram os recortes como apenas uma espécie de hobby constrangedor, próprio de sala de aula infantil, que ninguém teria levado a sério se não tivesse saído das mãos semiparalisadas do mestre.

Zervos era amigo íntimo de Picasso; logo, é possível que Picasso também subscrevesse a essa avaliação arrasadora. Mas há algumas evidências de antes e depois da morte de Matisse, em 1954, de que Picasso ficou assombrado com a simplicidade e vitalidade dos recortes. A instância mais óbvia disso foi seu enorme mural La Paix, de 1952, que representou um aceno a seu amigo, recordando Le Bonheur de Vivre, de Matisse, criado quase meio século antes. Boa parte de sua carreira artística desde então foi exemplificada na árvore frutífera plana e estilizada, no sol fértil, até no aquário de peixinhos dourados, mas que, com sua aparência recortada e grampeada, evidentemente visava a estética dos recortes. Embora La Paix faça um esforço grande para alcançar um tom de brincadeira de menino, Picasso tinha que fazer força para atingir a inocência, enquanto para Matisse isso era tão natural quanto respirar.

Após a morte de Matisse, Picasso voltou-se ao que era mais natural para sua personalidade erudita e combativa: brincadeiras no panteão, divertimentos com os mestres. Um ano antes, aos 71, Picasso tinha estado em crise. Françoise Gilot tivera a ousadia de abandoná-lo. Como era inevitável para um artista para quem o erótico e o ato criativo eram praticamente a mesma coisa, houve a sensação de que o fracasso com Gilot também o deixara num beco sem saída como pintor. Por volta do Natal de 1953, Gilot veio para levar embora os dois filhos deles e evitou ver Picasso. Esse fato desencadeou um momento de autocomiseração, algo até então pouco característico do artista; sua postura de se vangloriar foi esvaziada de poder erótico, logo, de poder gerativo.

Para se recuperar, ele buscou um projeto em que pudesse reafirmar a masculinidade agressiva que, como se fosse jovem, ele ainda sentia que era diretamente vinculada à sua criatividade; um projeto rico em substância histórica, mas em que ele pudesse engajar-se com os mestres passados em um espírito de desafio mútuo. Picasso voltou-se a um trabalho memorial alternativo: a história da pinturalidade. A morte de Matisse, o modernista supremo da vertente pintural, ainda era recente, e Picasso se esforçava para de alguma maneira homenagear ou assimilar o instinto de Matisse de vitalidade alegre, sem produzir o tipo de pastiche trabalhoso que tinha sido La Paix. O que se viu nos 20 anos seguintes e vale a pena destacar por quanto tempo a obsessão se manteve foi um embate prolongado com os mestres passados: Velázquez, Manet, Cranach, Poussin, David, El Greco, Degas e, finalmente e mais marcantemente, Rembrandt.

O flerte prolongado de Picasso com os mestres não se caracterizou pela reverência. Havia uma atitude de punhos cerrados: Picasso os enfrentava para os derrubar. Num gesto irônico de reverência invertida, Picasso aludia a Velázquez como aquele filho da mãe. Picasso considerava que sua curiosidade criativa tinha começado com uma viagem a Madri em 1897, quando ele tinha 16 anos, e tinha sido assombrado desde então pela inteligência astuta do pintor, sua qualidade de camaleão. Como o próprio Picasso, não havia nada que o mestre do século 17 não pudesse fazer, desde o hiper-realismo e a linearidade clássica até as marcas mais livres e sugestivas; não houve limite de gênero que ele tivesse medo de cruzar, nem convenção que ele não tivesse desrespeitado.

Em resposta a perguntas sobre sua fixação com a arte do passado, Picasso disse que, para ele, não havia arte do passado; que qualquer arte que não pudesse viver no presente nem sequer deveria ser levada em conta. A verdade era que o historicismo tardio de Picasso remetia a ele próprio e seu próprio pavor crescente da obsolescência o medo de que, especialmente do outro lado do oceano, seu tipo de trabalho estivesse sendo encurralado num movimento de pinça. Por um lado, pelo desmonte das barreiras entre o objeto corriqueiro e o objeto esteticamente carregado, feito por Marcel Duchamp, e, por outro, pelo minimalismo elevado da abstração sua insistência em que a pintura verdadeira não fosse mais que a soma de seus materiais.

Picasso reagiu admiravelmente, diga-se de passagem a essas duas temeridades dizendo, concretamente, não se deixem enganar. A moldura conta. A arte arbitrária é uma contradição em termos, uma declaração de suicídio. Quanto à pintura: ela nunca pode ser separada por completo da memória, da autobiografia, da história vexada de seus próprios problemas. Logo, indivisivelmente, é uma reação à visão que Picasso tinha de seu próprio último ato mas também ao último ato do modernismo que ele próprio inventara, se não inteiramente, pelo menos em grande parte sozinho; uma resposta que aniquilava as simplicidades da representação, sem jamais aniquilar o mundo.

NATUREZA E CÂNONE

Matisse se concentrara em inventar uma arte em que o tempo era suspenso; uma que pudesse captar sensações momentâneas e, com a criação de padrões sugestivos (o que exigia a colaboração ativa do olhar convidado), prolongar a sensação por tempo indeterminado, como se ele tivesse pressionado o pedal de sustentação de um piano.

Era um conceito de permanência que não poderia ser mais diferente do trabalho de Picasso de vasculhar o cânone. Em vez do panteão, havia o panteísmo: a crença de Matisse na perene vitalidade orgânica da natureza, no poder de ressurreição desta, por assim dizer. Foi o que ele teve que mais perto chegou de uma convicção religiosa formal.

Para Matisse, a forma sólida era apenas o invólucro dentro do qual se encontrava o pulsar real da cor e da linha solta. Eram essas qualidades que conferiam à decoração a força de terapia. Clinicamente. Enquanto para Picasso a virilidade robusta tinha sido a norma, ao longo de sua longa vida, Matisse sinalizara sua própria trajetória na arte com episódios de doença traumática (ou dele próprio ou as doenças graves que abateram sua mulher, Amélie). Enquanto era jovem assistente de advogado e convalescia após uma dessas doenças, Matisse teve sua primeira apresentação a cromos reproduções coloridas, produzidas em massa, muitas vezes de pinturas famosas, o que o levou a sair de casa e comprar sua primeira caixa de tintas para copiar as reproduções. Pouco tempo depois ele conheceu os desenhistas que trabalhavam para uma fábrica têxtil local em Saint Quentin, que abriram sua cabeça para a possibilidade de que trechos de cor estilizados e achatados pudessem influir terapeuticamente sobre a imaginação, na realidade sobre o metabolismo inteiro, ajudando a restaurá-la ao equilíbrio sereno.

Contudo, antes do colapso dramático de sua saúde que o levou a passar por uma cirurgia de grande porte, em 1941, Matisse (um pouco como Picasso) vinha sofrendo de um senso de exaustão imaginativa, e Hitler e a blitzkrieg não ajudaram a dissipar essa dor de cabeça. A ânsia de achatar tinha dado certo até demais. Olhando para o trabalho de Matisse na década de 1930, percebe-se a sensação de tédio, de que tudo era um replay cansado, que afetaria Picasso uma década mais tarde. A provação médica à qual Matisse sobreviveu por pouco suspendeu esses dilemas conceituais. Quando Matisse voltou ao trabalho, foi com um sentimento tão profundo de urgência e gratidão que suas angústias anteriores em relação ao desenho e à pintura lhe pareceram nada mais que petulância superficial. Minha operação terrível me rejuvenesceu por completo e me converteu em filósofo. Eu tinha me preparado tão completamente para me despedir da vida que hoje me parece que estou tendo uma segunda vida.

Mesmo que Matisse, quando fazia os recortes de Jazz, não soubesse bem onde estava indo ou o que faria com eles, ele certamente tinha algo pelo qual buscar. Esse algo era a linguagem de sinais com a qual a memória de sensações pudesse ser expressa sem recorrer a qualquer tipo de descrição mimética, exceto uma do tipo mais impreciso e análogo. Matisse ficou cada vez mais fascinado pelos recortes, que diferiam de um vocabulário visual simbólico ou emblemático, por exemplo, pelo fato de destilar a essência de alguma coisa: a sensação experiente de sua presença um nu, uma medusa, uma pessoa descendo um tobogã até seus elementos essenciais.

Matisse dizia que passava horas, dias ou o tempo que fosse preciso estudando o que tinha em mente para um recorte, antes de empunhar a tesoura; assim, o procedimento de trabalho se convertia numa sucessão feliz de cálculos meditativos e impulso físico dinâmico. Formas de locomoção, das quais ele agora era incapaz, são recorrentes nos recortes: a natação, é claro, mas também o voo, ambas as quais geravam experiências visuais que eram, rigorosamente falando, desamarradas, sem peso, e nas quais a luz, o espaço, a forma, o volume e a massa tinham que ser ajustados, ou, melhor, nunca eram finalmente fixados e determinados. Não eram apenas as formas que ele representava com precisão como estando em movimento cinético suave, orgânico naquela luz sem sombras, era a natureza da própria visão.

Quando ele finalmente punha mãos à obra com a tesoura, lâminas trabalhando mais rápido ou mais devagar, segundo a resistência variada do material, ele de fato decolava: Eu diria que é o equivalente gráfico e linear à sensação de voo, comentou.

O que o idoso também estava criando eram memórias, mas memórias de uma ordem inteiramente distinta do arquivo de Picasso dos dilemas da representação além do lugar que ele ocupava nelas. Às vezes as memórias eram longínquas. Matisse deixou claro que Jazz recuperou as experiências da infância, do circo e da fazenda: as formas descobertas no processo de recordação sendo ao mesmo tempo vívidas e ambíguas. O caubói que se assemelha a uma mancha aleatória de Rorschach; o lobo que é brincalhão como nos contos de fada, que, afinal, são os contos mais apavorantes de todos.

As memórias podiam ser míticas ou longínquas. Quando Matisse retornou do Taiti (para onde viajou em 1930, aos 60 anos de idade), se surpreendeu pelo fato de sua experiência no Pacífico Sul não lhe ter proporcionado inspiração visual alguma. Filtradas pela memória, porém, e traduzidas em reinos submarinos dourados, as medusas e as anêmonas marinhas franjadas se espalham pelo campo visual oceânico.

Essa liberdade, não apenas da pintura em cavalete, mas também da margem de contenção, da moldura, foi o que Matisse buscou com o jogo de formas ao qual de alguma forma infundiu vida orgânica independente, formas que encarnavam as formas da natureza, sem laboriosamente emular estas últimas, mas também sem afastar-se por inteiro de sua presença visual e tátil. Assim, os limites do espaço designado eram alegremente ultrapassados; a distinção entre a figura e o solo era mostrada com ambiguidade (especialmente quando Matisse incorporava as formas descartadas de um recorte na mesma composição). Ele descrevia a correspondência entre o jogo dessas formas e o que tinha provocado sua gênese visual como sendo uma relação uma afinidade que, em seguida, ele disse que era na realidade amor, e que sem esse amor não pode mais haver qualquer critério confiável de observação, logo, qualquer arte.

AMOR E DESEJO

Podemos supor que falar de amor e arte na mesma frase não teria feito sentido algum para Picasso. A não ser que o amor fosse eufemismo para falar do desejo, que, esse sim, era outra questão. Assim, quando, em 1965, Eros teve um embate sério com Tanatos, sob a forma de uma cirurgia de grande porte da próstata de Picasso, de seu cólon ou de ambos , o efeito sobre sua arte foi previsivelmente traumático. Recuperando-se lentamente, Picasso, nos últimos anos de sua vida (ele morreu na primavera de 1973) entrou em modo de combate. O niilismo emocional, o máximo de que ele é capaz em termos de grito de ira diante da impotência, não induz Picasso a qualquer reinvenção séria, algo comparável com os recortes de Picasso. Em vez disso, ele recicla suas distorções mais agressivas dos anos 1930, mas intensificadas mesmo que, por baixo de toda a fúria, a pintura seja tão sedutora quanto sempre.

É às gravuras que Picasso vai se render. E é aqui que ele finalmente convoca seu mais improvável companheiro de voyeurismo: Rembrandt van Rijn. Conforme foi observado primeiramente pela especialista em Picasso, Janie Cohen, o artista já idoso juntou-se a um longo rol de antecessores picturais obcecados por Rembrandt, falando dele o tempo todo; com frequência assinando livros de suas obras como Rembrandt e projetando um slide de A Ronda Noturna na parede de seu estúdio em Mougins, no sul da França, durante dias a fio.

Em suas águas-fortes, Picasso projetou a virilidade de seu passado. As imagens alternam de modo perturbador entre a ostentação e a auto-ironia. Em uma das gravuras mais elaboradas, que Picasso intitulou O Teatro de Picasso, a teatral Ecce Homo, de Rembrandt, mostrando Cristo sendo exibido à multidão por Pôncio Pilatos, foi refeita em tom blasfemo como pantomina da história erótica do próprio artista. Picasso aparece como versão gnômica do Salvador, sentada no centro do palco, e a multidão que clama por sua imolação é composta por uma plateia irada de suas esposas e amantes.

Ao final, portanto, Picasso foi incapaz de libertar-se de suas múltiplas histórias erótica, estética, temática, que colidiram, desabaram e afundaram sobre elas mesmas. O que era totalmente inconcebível, evidentemente, era que ele pudesse compartilhar o desejo de Matisse de, ates de morrer, recuperar o olhar inocente, enxergar o mundo novamente através dos olhos de uma criança, como disse o pintor.

Exceto por uma vez, bem no final. Foi na escolha que Picasso fez de uma pintura que serviria de cartaz de uma exposição de obras recentes a ser promovida em maio de 1973 em Avignon. Picasso não viveu para ver a exposição, que, em sua maior parte, foi recebida com silêncio constrangido ou o revirar dos olhos de críticos. Mas houve aquele cartaz não a visão de uma criança, mas a imagem de uma, ou, pelo menos, de um jovem de olhos arregalados, segurando, fascinado, os pincéis e a paleta. Foi a versão de Picasso de um trabalho pequeno criado por Rembrandt quando jovem (e que hoje se encontra em Boston), em que uma figura que lembra a de um boneco está em transe criativo. A luz de sua ideia brilha ardente na margem do painel oculto. Foi também a derradeira versão que Picasso criou dele mesmo: a memória de um momento em que tudo era absorvido e não havia produção, um tempo em que suas pinceladas eram ávidas de possibilidade.



*SIMON SCHAMA é editor colaborador do Financial Times.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Os fiordes de todos nós


Por Clariana Zanutto e Gustavo Ranieri
Foto: Nelson D'aires
Da Revista da Cultura

Quando o poeta gaúcho Mario Quintana escreveu Das utopias (Se as coisas são inatingíveis ora, / Não é motivo para não querê-las / Que tristes os caminhos se não fora / A mágica presença das estrelas!), publicado no livro Espelho mágico, Valter Hugo Mãe ainda não era nascido. Mas tais versos contam muito sobre a personalidade deste escritor angolano de 42 anos, radicado em Portugal desde pequeno e vencedor, em 2007, do importante Prêmio Literário José Saramago. Valter, como não se incomoda de dizer, é um ser utópico. Sim, acredita que evoluiremos como sociedade a caminho de não haver mais disputas e ódios ao redor das relações humanas – “mesmo que leve um milhão de anos”, em suas próprias palavras. Mas essas esperanças convictas não o impedem (e por que impediriam?!) de sentir com demasiada profundidade tristezas e decepções.

Ao mesmo tempo que celebra o lançamento do livro A desumanização – que se soma a mais de 30 títulos, de poesias e romances, já publicados de sua autoria –, chegando ao mercado brasileiro neste mês, ele permanece abalado pela crise econômica e social instaurada em seu país e no resto da Europa. “Nós sabemos ser melhores, sabemos perfeitamente criar uma sociedade melhor, mas nós não fazemos isso. Reincidimos no erro. Isso está levando a uma perda enorme de identidade e, fatalmente, a uma desumanização.”

Na nova publicação, Valter, pela primeira vez, ultrapassa na sua narrativa as fronteiras portuguesas, ao contar uma história toda vivida e sentida na Islândia. De imediato, o leitor se depara com o enterro da criança Sigridur, irmã gêmea de Halla. É essa última que narrará, ao longo do tempo que passa desde o falecimento, o ambiente paranoico que devasta sua família, a ruptura da infância, o contato com a dor e o consequente amadurecimento precoce... Enfim, o que as perdas levam e trazem de volta. “Os meus livros são sempre uma espécie de interpelação ao Criador. Eles são uma tentativa de que Ele se explique, que a natureza se explique”, conta o escritor que, aproveitando o convite da Revista da Cultura, concretizou com o fotógrafo e cumpadre, Nelson d’Aires, o projeto antigo de traduzir em imagens conceituais aspectos de sua essência.

Há muito marcado por referências artísticas islandesas – o livro, por exemplo, é dedicado ao músico e compositor Hilmar Örn Hilmarsson –, foi há quatro anos que Valter pisou no país nórdico pela primeira vez. Para escrever e concluir a trama, ficou por lá, entre indas e vindas, alguns bons meses. “De início, a relação com a Islândia foi tão forte que toda a primeira visão era muito turística. Precisei de uns dias para conseguir escrever alguma coisa que não parecesse o guia turístico de um idiota que teve a oportunidade de viajar. Creio que só ao fim de dez dias que eu tomei nota de uma frase que está no livro: ‘A Islândia pensa’. E isso aconteceu porque eu estava em uma paisagem tremenda, sozinho. E, em vez de achar que via, achei que estava sendo visto. Subitamente, tive a sensação de que aquela natureza não pode ser burra, que aquela natureza deve conter uma inteligência que nos escapa.”

A desumanização é um livro muito denso, bonito. E a sensação que ficou da nossa leitura é que se trata de uma publicação inteira sobre fragilidades. O que as fragilidades contam sobre a sua pessoa? 
Acho que lido com a fragilidade desde sempre. E lido desta forma, me expondo. Porque achei sempre que morreria muito cedo. Achei sempre que eu era um ser humano muito pouco viável. É verdade que, à semelhança da Halla, dessa menina narradora do livro, eu tive um irmão morto. Tenho um irmão que morreu, e morreu antes de eu próprio nascer. Então, nunca tive a sensação, a ilusão de que a vida é eterna, ou de que a vida é muito longa. Sempre achei a vida muito urgente. E sempre achei que perco tempo. Cresci um pouco com esta ideia estranha de ganhar coragem. Mas, ao mesmo tempo, talvez, também uma ideia de valer pouco a pena, porque vai ser tudo muito rápido e vai terminar tudo da mesma maneira. Acho que sempre assumi muito a minha vulnerabilidade, e acho até que toda vulnerabilidade é o modo como podemos honestamente mostrar a maneira mais genuína de ser gente.

Não seríamos nada sem essas fragilidades?
Seríamos só bichos. Ser gente é exatamente isso, é ser vulnerável. É sermos permeáveis. É rendermo-nos, por exemplo, a questões que vão muito além dos nossos interesses mais egoístas. Fragilizarmo-nos por causa dos outros. Então, acho que sim. Acho que essa sua leitura consegue chegar à minha identidade.

As fragilidades te impulsionam então, te movimentam...
Isso que me move, sim. A forma como nós podemos, subitamente, aceitar estar na mão de alguém. Que é um modo de confiança. Acho que a humanidade é uma porcaria enquanto não for de confiança. Então, quero muito isso! E ser de confiança tem essa espécie de transparência.

É como se a humanidade fosse várias partes de um quase nada, mas que juntas formam o ser humano?
Sim, justifica. Sabe uma das passagens de que mais gosto no livro? É quando o pai da Halla lhe diz que a humanidade começa no outro. Acredito muito nisso. Acho que, se não houver alteridade, se não houver o outro e a expectativa do outro, então nós também não somos gente. Podemos ter a aparência de gente, podemos parecer humanos, mas a humanidade tem de ser dois. E, então, o sentido da vida para mim é o outro. Não existo enquanto ser absoluto. Existo para os outros. Só vale a pena se, efetivamente, nós formos uma espécie de corrente, alguém que participa em uma entidade maior, em um coletivo.

Você até desmente Sartre no livro ao dizer que o inferno não são os outros. Pelo contrário, eles seriam o paraíso. Por que, em sua opinião, é difícil para muitos compreender que o outro é uma ferramenta necessária para a nossa existência?
É uma ferramenta necessária até para a nossa identidade. Não seríamos quem somos sem a presença ou sem a expectativa da presença do outro. Acho que a humanidade vai a meio caminho. Ou melhor, talvez nem a meio caminho... E somos profundamente imperfeitos. Estamos ainda muito perto da dimensão mais animal. Então, todos os erros são possíveis. Vocês aí no Brasil tinham um homem absolutamente maravilhoso, chamado Milton Santos (1926-2001). E ele dizia uma coisa linda: “A humanidade ainda não começou”. Parece uma tragédia, mas não é. É uma posição de profunda esperança. Porque ele achava que, quando a humanidade começasse, ela seria incapaz de atrocidades. Ele não se conforma com essa ideia de que ser gente é ser também mau, é ter um lado terrível, ser capaz de tudo. Ele acha que, um dia, ser gente vai significar exatamente o contrário. Ser gente vai significar a incapacidade da atrocidade. E eu tenho muita esperança nisso. Acho que pode levar uns milhões de anos, mas um dia o pensamento vai ser todo ele consumado a favor do coletivo. Para uma espécie de cuidado absoluto pelo universo. Penso assim, mas sei que vivo perdido em uma utopia. Embora queira achar que não estou sozinho, é muito fácil achar que fiquei louco (risos).

Mas não é justamente de utopias que o mundo é construído?
Acho que sim. E, se vocês querem saber, acho que o mundo está atravessando uma fase depois de uma euforia – e nós, aqui na Europa, sentimos isso muito, é muito nítido. A Europa está ficando fascista, horrorosa, preconceituosa, velha, má. E é muito claro que, depois de uma euforia, com uma espécie de consumismo sem raciocínio, consumismo sem inteligência, o que está acontecendo é que nós estamos, outra vez, perdendo valores. A partir do momento em que falta o emprego, em que falta o dinheiro, falta imediatamente humanidade. Então, as coisas não são nada progressivas. A gente vai progredindo e vai regredindo. Dá um passo em frente, dá dois atrás. Nada é garantido! E é muito claro, para mim, que a Europa ou o mundo, eventualmente, só vai avançar quando aparecer, assim, uma figura inesperada. Uma espécie de [Mahatma] Gandhi. Um Gandhi qualquer, um [Nelson] Mandela. Alguém que, subitamente, apareça quase com a dimensão de um herói. Porque os homens comuns já não podem nada. Acho que só quem tiver uma grande utopia, só quem for capaz de uma utopia vai conseguir ajudar-nos.

E como você vê essa crise especificamente em Portugal?
Vocês não podem imaginar a tristeza profunda em que os portugueses estão vivendo. Vocês sabem que – acontece isso comigo, agora –, quando tenho alguma alegria, eu me calo. Não digo nada em respeito à tristeza profunda em que vivem as outras pessoas. E as coisas estão muito difíceis. Estão difíceis com os meus amigos, estão difíceis com a minha família. O que está acontecendo neste momento é uma crise muito maior do que simplesmente financeira, é uma crise de valores, em que as pessoas estão muito perdidas. E o que acontece é que há cada vez menos generosidade. As pessoas vão ficando insensíveis, porque todo mundo passa dificuldade, então, não há como ficar chorando o vizinho, porque toda a gente está igualmente sufocada.

O seu abalo com essa situação atual transparece também com a sua literatura, com tudo o que você faz?
Sim. Ainda que eu possa usar A desumanização para pensar acerca de outras coisas, muito do título serve para fazer a minha crítica. Eventualmente, o livro não seria tão... agressivo, agreste, se o momento em que estamos todos vivendo não fosse agreste também. Há sempre alguma coisa que passa. Assim: a minha família foi sempre uma família muito normal, muito convencional. Sempre no limite do trabalho e do mérito do trabalho e sem nenhuma folga, sem nada grátis. Então, qualquer problema que aconteça ao país, acontece imediatamente à minha família. Não tem como eu deixar de ficar afetado. Fico zangado, porque a construção [da união] europeia foi uma promessa completamente diferente. O que se prometeu foi completamente outra coisa e, neste momento, nós estamos outra vez sendo instrumentalizados pelos interesses da Alemanha. E a Alemanha está outra vez desenvolvendo um pensamento de extrema direita, as ideologias nazistas, as ideologias fascistas estão regressando. E agora os culpados já não são somente os judeus. Os culpados são todos os povos, todos os latinos. E é muito fodido ficar vendo e sentir certa impotência diante do gigante alemão na Europa.

Sente-se uma falta de representação.
É tão demolidor que é o nosso próprio governo que fica instrumentalizado, ou seja, é o nosso próprio governo que vai desenvolvendo o seu pensamento fascista e vai ficando do lado desta usurpação. E nós, enquanto povo, sentimos que não temos defesa, que não estamos representados. Então, ninguém consegue reverter essa situação em favor do povo, e a sensação é de que, efetivamente, há uma meia dúzia de famílias que voltam a recobrar o poder oligárquico que outrora já tiveram e que vão voltar a ter. É muito violento. Percebo muito bem como nós estamos ao pé das guerras outra vez.

Há no livro um trecho que demonstra esse desalento, quando você escreve: “Sem ninguém no presente, nem no futuro, um indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes”. É uma leitura real dessa tristeza com o ser humano contemporâneo?
Muito. Quando recebi o Prêmio [Literário José] Saramago [em 2007], não tive tempo de pensar em um discurso. E aquilo que disse sem bem pensar e sem bem perceber o que estava dizendo é que a escrita, para mim, era um exercício de solidão. O que eu queria dizer e o que penso é que, em última análise, não existe isso da comunicação. É muito frustrante perceber que, por mais esforço que façamos para entender os outros e para sermos entendidos, há uma distância que nunca vai ser percorrida. Então, o esforço é sempre muito ingrato. E a minha utopia, da qual há pouco falávamos, é que ao mesmo tempo o homem possa desenvolver uma capacidade de não se esquecer. Porque nós esquecemos. Nós podemos, em um determinado momento, sentir uma plenitude profunda, experimentando a companhia de alguém ou experimentando uma obra musical, uma viagem, a visão de uma lagoa. Mas, o mais certo é que nós esqueçamos essa plenitude. O mais certo é que essa plenitude nunca traga uma redenção.

Ao falar de comunicação, podemos pensar também que, apesar de tudo o que foi possibilitado nesse sentido pela tecnologia, nenhum homem descobriu ainda com exatidão qual o sentido que se encontra na vida e o que estamos fazendo aqui. E, nesse seu novo título, essa questão volta à tona. É mais agoniante pensar nesse sentido existencial ou é mais agoniante largar mão de buscar uma resposta para a nossa existência?
É muito mais agoniante buscar uma solução. Mas tenho a sensação... Como é que eu digo isso... Creio que o mundo é um problema. E aquilo que somos e como somos é uma tentativa de solução, porque o mundo é esse desafio colocado a cada um de nós, e o modo como somos é uma tentativa de superação desse desafio. Por isso, somos como sabemos, somos como podemos; mas, dentro da medida do possível, somos a solução. Então, é muito mais fácil ignorarmos o mundo como um problema para podermos não ser responsáveis por uma solução. Mas, ao mesmo tempo, depois de termos, de alguma forma, essa percepção, é praticamente impossível voltar ao lugar zero, voltar ao início, voltar à ingenuidade sem obrigação.

A desumanização é o seu primeiro romance que se passa fora de Portugal. Essa vontade de se deslocar, ir para outro lugar é, de alguma forma, relacionada à sua história, ao que você está vivendo aí no país também?
Começa por essa minha vontade de fugir. Há algum tipo de fórmula. Para mim, não é que tenha ficado fácil escrever livros. Se algum dia for fácil escrever um livro, então, é porque deu errado. Mas, para mim, escrever sobre Portugal já era, assim, uma ajuda. Então, quis voltar ao início. Quis voltar, tanto quanto possível, ao início das coisas, colher outras referências, lidar com referências que não fossem as minhas. Então, escolhi a Islândia. A Islândia é um país que eu vinha cobiçando desde muito novo e ela inspirava para mim essa ideia de recôndito, de solidão, de disciplina, de coragem. E parti para a Islândia por isso. É quase uma vontade de fugir, de fugir do óbvio. Vou voltar algum dia, vou voltar a escrever sobre Portugal, histórias portuguesas que vão servir como histórias universais, porque é esse o meu interesse. Mas foi muito importante para mim, de repente, saber menos, partir para um livro sabendo ainda menos do que aquilo que costumo saber.

Os fiordes islandeses são a paisagem comum a toda história de A desumanização. Há, de alguma forma abstrata, um fiorde interno, fazendo você se sentir igual no livro, como uma montanha rígida, mas que dia a dia é invadida pela água e tudo que traz e leva?
Procuro muito enrijecer, nesse sentido de robustecer, fazer com que nem toda água me mude, nem toda água possa estragar tudo. E, ao mesmo tempo, o fiorde é esse espaço de difícil acesso e acho que, nesse sentido, somos todos. Somos todos um espaço de difícil acesso, nessa ideia de que é muito impossível, neste estágio de evolução da humanidade, que os outros nos conheçam verdadeiramente.

Você falou há pouco sobre a urgência da vida. E a morte, de fato, é outro tema muito presente em sua obra. A perenidade humana é o que tanto o instiga em relação ao tema?
Acho frustrante que nós sejamos tão perecíveis e acho que quem morre com 100 anos morre cedo demais. Tenho sempre a sensação de que essa relação do tempo é muito falsa. O que nós temos que procurar é uma relação com a intensidade, uma relação com a entrega, uma espécie de completude, pois  a completude não tem a ver com o tempo. Um indivíduo de 20 anos pode estar muito mais maduro do que um de 100. Pode ter descoberto sobre si e descoberto em si um apaziguamento que um indivíduo com 100 anos não conseguiu. Então, sempre falo da morte como uma espécie de questão de mérito. Gostava de achar que nós só morremos quando merecemos morrer, como se já tivéssemos conquistado essa completude. E quero muito conquistar a minha morte nesse sentido, nessa exceção de, quando ela vier, eu não precisar ter medo nem lamentar, porque estarei completo.

Você se prepara para isso, está sempre atento?
Acho que todos nós nos preparamos para isso. Há um escritor tcheco que vive em Portugal, chamado Jorge Listopad, e ele diz que “quem não morreu está a morrer” e, por isso, só não se prepara para a aceitação da morte quem estiver muito distraído. Porque o tempo é isso. O tempo vai passando e nós não podemos construir a vida baseada nele. Temos de construir a vida na intensidade, na importância de cada coisa.

Recentemente, você declarou que esse novo livro, A desumanização, “estragou” a sua forma de escrever na medida em que você não conseguiria voltar a um estilo passado depois dessa publicação. Como é isso?
Há uma coisa que acontece sucessivamente nos meus livros que é: procuro fugir daquilo que fiz e isso tem a ver com alguma construção mental do livro, mas também muito com o modo como as expressões verbais são empregadas. Então, ao final de cada livro, os meus emails são todos parecidos com a obra (risos). Fico enviando torpedos aos amigos e os torpedos parecem coisas antigas, coisas literárias. O modo, às vezes, até como falo com a minha mãe ou com os meus amigos, é assim... Parece um teatro na vida real. E isso é muito assustador. Preciso, para começar outro trabalho, quase desencarnar daquele modo de falar, que durante um tempo é muito vívido, muito efetivo. Isso aconteceu várias vezes. No fim do romance O remorso de Baltazar Serapião foi terrível, porque o processo com a escrita daquele livro foi tão intenso que efetivamente – e, ainda por cima, é um livro que se passa na Idade Média – todo mundo achava que eu era antigo, que parecia uma pessoa medieval. E preciso fugir disso. Então, neste momento, procurando esquecer A desumanização, já estou tentando pensar em outras formas de dizer as coisas.

É natural então?
Uma coisa muito natural. Não saberia fazer de outra forma. Não saberia gostar de mim – e tenho muitos problemas com autoestima – se voltasse a me repetir, se me repetisse demasiado, se virasse um escritor de fórmulas.

A sua literatura também transmite uma imagem sua como um ser humano demasiadamente contemplativo. Você é assim de fato, do tipo que vai aos cafés e passa a tarde simplesmente olhando as pessoas, por exemplo?
Identifico-me com essa hipótese do contemplativo neste sentido: acho que nós primeiro precisamos identificar, para depois poder agir. É o que acho que faço um pouco com os meus livros. Procuro entender aquilo que me impressiona, aquilo que me provoca, aquilo que acho que está desarranjado. Mas o meu cotidiano não permite contemplações. Sou assim um pouco... Uma espécie de bombeiro: sofro de uma síndrome que é o das pessoas a quem todo mundo se confessa. Então, sou aquela visita dos hospitais, sou aquele indivíduo que, quando alguém tem um problema e é internado, normalmente só eu apareço (risos). O que é gratificante, às vezes, perceber que as pessoas esperam isso de mim, mas também é trágico, porque significa que esperam isso de muito pouca gente. Quando os meus amigos se divorciam, sou o primeiro a saber. Sou eu quem recebe eles na minha casa; que fica três horas ao telefone tentando apaziguar os casais; que eventualmente empresta dinheiro e toma conta das crianças. Eu sou, assim, certo bombeiro. Estou apagando fogos [incêndios].

E você gosta de ser dessa forma?
Eu não (risos). Não tenho como ser de outra forma, não consigo. Claro que já frustrei muita gente, claro que já deixei muita gente na mão, mas não fico bem com a minha consciência quando algum amigo confia em mim e espera de mim alguma coisa. Quero muito ser alguém de confiança. E isso tem um preço, que é efetivamente estar à altura da confiança e das expectativas das pessoas. E, então, é um mundo de gente... Às vezes, até gente que nem merece! Mas fico digerindo um bocado e tentando descobrir quem merece e quem não merece. Umas vezes acerto e outras vezes fico bem destruído. Mas prefiro partir do pressuposto de que é melhor confiar nas pessoas do que não confiar em rigorosamente ninguém. Por isso, prefiro acreditar que tenho vários amigos, eventualmente muitos amigos, do que viver a vida absolutamente sem amigo nenhum.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Tudo é vaidade


Da Ilustrada
Por João Pereira Coutinho

Qual a pergunta mais idiota que é possível ouvir quando temos uma biblioteca generosa? Exato, leitor: "Você já leu tudo isso?"

Engolimos em seco. Respiramos fundo. E depois explicamos, pela décima, centésima, milésima vez que uma biblioteca não é uma coleção de livros lidos. As bibliotecas são feitas de livros que lemos no passado, que consultamos no presente e que um dia, talvez, leremos no futuro. Ou que alguém lerá por nós.

Mas existe uma situação mais constrangedora no mundo das bibliotecas: quando descobrimos que uma parte delas nem sequer são constituídas por livros.

Aconteceu uma noite: fui convidado para um jantar em casa de um conhecido literato português. E, deambulando pela casa, encontrei uma estante com livros.

Ou, pelo menos, eu pensava que eram livros. Ao remover um deles, reparei que a coleção era mero enfeite, feito de lombadas e nada mais. O meu anfitrião presenciou o funesto momento. Ninguém disse palavra. Nunca mais fui convidado para jantar algum.

Ficou a lição: a posse dos livros começa por ser vaidade. Só residualmente é uma questão intelectual.

E é exatamente por isso que nunca comprei a febre triunfal dos e-books. Sim, tenho um bicho desses: um Kindle rudimentar, onde recebo jornais, revistas e os livros que desejo ler de imediato com uma ganância que arruína qualquer possibilidade de enriquecimento pessoal.

Mas todas as notícias apontam para o mesmo cenário: o negócio dos e-books brochou em 2013 e é provável que não recupere mais. A Barnes & Noble não está contente com o seu Nook e há rumores de que tenciona desistir do negócio. A Sony não tem dúvidas: desistiu mesmo. E até o Kindle já conheceu melhores dias. Como explicar o naufrágio?

Sociólogos diversos falam na saturação do mundo digital: a novidade de ontem virou rotina hoje e está morta amanhã. Outros, mais românticos, lembram que o livro tradicional não tem concorrência no "plano dos afetos" (grotesca expressão): quando o objeto é em papel, podemos tocá-lo, cheirá-lo. Eventualmente comê-lo.

E a seita dos economistas reduz tudo a meras contabilidades: segundo o "New York Times", os e-books levaram a uma queda no preço dos livros tradicionais (70% na Amazon, em alguns casos), o que reconciliou os leitores com o objeto físico.

É possível que tudo isso tenha dado seu contributo. Mas a razão mais funda para o desinteresse nos e-books está na vaidade humana: os livros, para a maioria, são objetos decorativos de afirmação pessoal e social.

Um Kindle pode armazenar milhares de obras que obtemos instantaneamente (e, com certos títulos clássicos, gratuitamente). Mas serão sempre milhares de obras escondidas no interior de um minúsculo aparelho —e não exibidas com orgulho nas estantes da sala, para impressionar as visitas.

No Kindle, é possível ler e apenas ler. Não é possível mostrar que se lê —uma diferença fundamental. Ora, sem essa dimensão fálica de espetáculo público, os e-books estariam sempre condenados.

Ou, então, condenados a servirem uma ilustre minoria para quem o livro, antes de ser objeto de estatuto social, é sobretudo a fonte mais preciosa que existe de conhecimento e lazer. O problema é que uma minoria, logicamente, não justifica um negócio global.

Se os e-books desejam sobreviver, talvez a solução passe por transformar livros tradicionais em livros digitais —mas um de cada vez, como se fossem CDs ou DVDs.

Tenho a certeza que milhares de kindles na estante da sala teriam um sucesso social que o solitário Kindle jamais será capaz de atingir.

P.S. - Parece que o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) errou ao afirmar, na sua pesquisa, que quase dois terços dos brasileiros toleram a violência sexual contra mulheres de minissaia. Não são 65% os tolerantes; são "apenas" 26%.

Em condições normais, saber que um quarto dos brasileiros continua a tolerar a brutalidade contra mulheres não alteraria o essencial do meu artigo da passada semana. Mas como acreditar em qualquer número do Ipea depois desse "flop" homérico?

Por mim, talvez fosse mais útil fazer outra pesquisa e tentar saber quantos brasileiros gostariam de espancar, não as suas mulheres —  mas os pesquisadores e responsáveis do Ipea. Tenho a certeza que os números seriam novamente alarmantes. E, dessa vez, verdadeiros.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Billie Holiday: a dor que se fez música


Por Wilson H. Silva

Eleanora Holiday nasceu em 1915, em uma família pobre residente em um gueto negro da Pennsylvania, quando seus pais, Clarence e Sadie, tinham respectivamente 15 e 13 anos. Apelidada de Lady Day, pelo saxofonista Lester Young com quem ela gravou alguns de seus mais vibrantes sucessos, como Easy Living e Foolin Myself, Billie teve sua vida e carreira profundamente marcadas pelo racismo e por eventos que fizeram dela uma mulher mergulhada na tristeza.

Uma situação que a cantora traduziu na voz cortante utilizada para interpretar blues cujas letras se aproximam de melancólico registro autobiográfico de sua tumultuada vida. Músicas com Lover Man (O amante), Good morning heartache (Bom dia, coração partido), That ole devil called love (Aquele velho diabo chamado amor) e What this thing called love? (O que é esta coisa chamada amor?), esta última do genial Cole Porter, são comoventes enredos para uma vida amorosa marcada por sobressaltos. 

Já a música Strange Fruit tornou-se um verdadeiro hino de denúncia ao racismo e God bless the child, considerada até hoje um dos maiores clássicos do jazz, é uma contundente denúncia da pobreza e da injustiça social que faz com que os poderosos consigam sempre mais, enquanto os fracos desfalecem.

Do gueto para o centro dos palcos

Suas tragédias pessoais começaram ainda na infância. Aos 10 anos, Billie foi estuprada por um vizinho. Típico da postura machista que até hoje cerca a violência contra as mulheres, ela acabou sendo condenada pelo ato e foi presa em um reformatório para jovens delinquentes, onde viveu mais uma brutal violência: como punição para seu mau comportamento, foi jogada em uma cela, durante toda uma noite, com o cadáver de um rapaz. 

Quando finalmente foi libertada, Billie mudou-se com sua mãe para Nova Jersey, em pleno período da Grande Depressão nos EUA, e como muitas crianças negras da época, trabalhou como empregada doméstica. Odiando este tipo de trabalho, com apenas 14 anos Billie tornou-se prostituta em um dos mais famosos bordéis do Harlem, o bairro negro e boêmio de Nova York, uma atividade que lhe rendeu uma nova passagem pela prisão.

Disposta a sair da miséria, Billie bateu de porta em porta dos bares do Harlem, procurando emprego como dançarina e acabou sendo descoberta como cantora. Aos 15 anos, ela já estava cantando em vários clubes noturnos e aos 18, gravou seu primeiro disco. Nos anos seguintes, Billie cantou acompanhada de alguns dos melhores músicos e cantores negros de sua época, como Teddy Wilson, Duke Ellington, Count Bessie, Bessie Smith, Lester Young e Buck Clayton.

Apesar do sucesso, desde o início, os problemas não cessaram. O racismo, por exemplo, acompanhou sua carreira das formas mais absurdas. Quando ainda cantava com Count Bessie, um empresário de uma casa noturna a obrigou pintar o rosto com graxa preta, por considerá-la clara demais.

Em 1938, Billie, tornou-se uma das primeiras mulheres negras a cantar com uma big band de brancos (dirigida por Artie Shaw), mas os problemas continuaram: os produtores recusavam-se a gravar as músicas produzidas pela banda e Billie, várias vezes foi discriminada, inclusive nos hotéis nos quais o grupo se hospedava durante as turnês (que a obrigavam a utilizar o elevador de serviço e a proibiam de circular entre os hóspedes regulares), o que acabou resultando na saída de Billie, em protesto contra a situação.

Foi a fundação do Café Society, um clube que tinha como lema o lugar errado para as pessoas direitas e como regra a não segregação racial, que deu visibilidade nacional para Lady Day. Contratada em 1939 por Barney Josephson, o empresário judeu e ativista anti-racista que criou o clube, Billie tornou-se um imediato sucesso.

Sucesso em muito relacionado com uma de suas interpretações mais vigorosas e polêmicas: a música Strange Fruit, uma poderosa balada cujos versos mencionam que das árvores dos ultra-racistas estados do Sul dos Estados Unidos, brotam estranhos frutos, corpos negros que balançam na brisa sulista, em alusão aos enforcamentos praticados pela Klu Klux Klan e outros grupos racistas que empestavam os estados sulistas. 

Desencantos e perseguições

No auge da fama, em 1941, Billie acrescentou o casamento com Jimmy Monroe à longa lista de frustrações amorosas que marcaram sua vida. Aliás, foram os constantes casos de Monroe com outras mulheres que fizeram com que Billie compusesse uma de suas mais belas canções, Don´t Explain (Não se explique), escrita depois de ver o marido chegar em casa com a roupa manchada de batom. 

Pouco depois da separação com Monroe, ela se casou com um sujeito ainda pior: o trompetista Joe Guy, que além de a ter levado praticamente à falência parece ter sido responsável pela introdução de Billie no mundo do ópio e, posteriormente, da heroína. Um terceiro casamento, desta vez com Louis McKay, foi igualmente desastroso.

Em 1946, já bastante famosa, Billie foi chamada por Hollywood para fazer o filme New Orleans, com Louis Armstrong. Típico da indústria cinematográfica, o papel reservado para ela foi de uma empregada doméstica. Um papel que aceitou fazer para estar ao lado de seu ídolo desde a infância, mas sobre o qual ela protestou publicamente.

O longo e doloroso caminho ladeira abaixo se acentuou em 1947, quando a cantora foi presa por porte de heroína, ficando na cadeia por cerca de um ano, algo que raramente teria ocorrido com uma celebridade branca (muitas delas, no mundo do cinema e da música, notórias consumidoras de drogas das mais diversas). Além da prisão, Billie teve que amargar, até o fim de sua vida, a total proibição, por parte da polícia, de se apresentar em qualquer clube nova iorquino, o que em muito prejudicou sua carreira. 

Apesar de inúmeros sucessos que sucederam esse episódio como as espetaculares gravações de Fine and Mellow e de I loves you, Porgy (da ópera negra Porgy and Bess, escrita por George e Ira Gershwin) e uma ultra bem sucedida turnê pela Europa, em 1954,  a decadência de Billie era evidente. Ao voltar da Europa, a cantora foi presa novamente, desta vez na Filadélfia, que também a baniu para sempre de seus clubes. 

A experiência fez com que ela procurasse ajuda, internando-se numa clínica de reabilitação. No entanto, o abandono da heroína foi acompanhado pelo mergulho em três litros diários de vodka ou gim. 

O desfecho não poderia ser outro. Com o fígado e o coração em frangalhos, Billie morreu* na manhã de 17 de julho de 1959. Os capítulos finais de sua vida foram lamentavelmente dignos de uma trajetória marcada pela pobreza, pela perseguição policial e pela tragédia: Billie recebeu voz de prisão enquanto agonizava em seu leito de morte e no momento da autópsia os médicos encontraram US$ 750 que Billie havia escondido sob sua roupa. Era todo dinheiro que lhe restava, além de 70 centavos que estavam em sua conta corrente.

Dona de uma voz inconfundível, Billie foi referência fundamental para música contemporânea e para cantoras que vão de Janis Joplin a Nina Simone. Billie deixou gravada em sua autobiografia, Lady sings the blues (que recebeu uma fraca versão cinematográfica, em 1972, com Diana Ross interpretando Billie) uma frase que em muito sintetiza sua vida e suas melancólicas interpretações: "Eu vivi músicas como estas".

Uma vida que merece a homenagem de todo e qualquer um que dê valor à difícil arte de extrair beleza da adversidade.

* Há muitas versões históricas e romanceadas sobre a vida da cantora, entre elas há uma overdose de heroína, sobre a qual divergem alguns biógrafos.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Os 10 melhores poemas de Mario Quintana

Mario Quintana

Da Revista Bula
Fotografia: Liane Neves

Pedimos aos leitores, colaboradores, seguidores do Twitter e Facebook que apontassem os poemas mais significativos de Mario Quintana. Poeta, tradutor e jornalista, Mario Quintana estreou na literatura em 1940 com o livro “A Rua dos Cataventos”. O poeta também deixou um amplo trabalho de tradução, com destaque para as obras “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust, e “Mrs. Dalloway”, de Virginia Woolf. Em 1980 recebeu o prêmio Machado de Assis, pelo conjunto da obra. Mario Quintana concorreu por três vezes a uma vaga na Academia Brasileira de Letras, mas em nenhuma das ocasiões foi eleito. Ao ser convidado a candidatar-se uma quarta vez, e mesmo com a promessa de unanimidade em torno de seu nome, o poeta recusou.
Apesar da idolatria no Rio Grande do Sul e de dividir o posto, ao lado de Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu, de autores brasileiros mais citados na internet, Mario Quintana ainda não é considerado um poeta além-fronteiras.  De acordo com o crítico Antonio Carlos Secchin, “parece que apenas poetas cariocas e paulistas não precisam de gentílico. Difícil ler ‘o poeta carioca Vinícius de Morais’ ou ‘o paulista Oswald de Andrade’. Mas lemos a toda hora ‘o pernambucano João Cabral’. Infelizmente, apenas os do Rio e de São Paulo estão dispensados de exibir a carteira de identidade”.
A melhor definição para Mario Quintana, foi feita por ele mesmo, em 1984: “Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! Eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Nasci no rigor do inverno, temperatura: 1 grau; e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não estava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como Winston Churchill nascera prematuro — o mesmo tendo acontecido a sir Isaac Newton! Excusez du peu… Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que acho que nunca escrevi algo à minha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz. Dizem que sou tímido. Nada disso! Sou é caladão, introspectivo. Não sei porque sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros? Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático de farmácia durante cinco anos. Note-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Erico Verissimo — que bem sabem (ou souberam) o que é a luta amorosa com as palavras”.
Abaixo a lista com os dez poemas selecionados baseada no número de citações obtidas. Os poemas selecionados foram publicados nos livros “Mario Quintana — Poesia completa”, editora Nova Aguilar. Mario Quintana morreu em 5 de maio de 1994.

 A Rua dos Cataventos

Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.

Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arrancar a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!

Do amoroso esquecimento

Eu agora — que desfecho!
Já nem penso mais em ti…
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?

Segunda canção de muito longe

Havia um corredor que fazia cotovelo:
Um mistério encanando com outro mistério, no escuro…
Mas vamos fechar os olhos
E pensar numa outra cousa…

Vamos ouvir o ruído cantado, o ruído arrastado das correntes no algibe,
Puxando a água fresca e profunda.
Havia no arco do algibe trepadeiras trêmulas.
Nós nos debruçávamos à borda, gritando os nomes uns dos outros,
E lá dentro as palavras ressoavam fortes, cavernosas como vozes de leões.

Nós éramos quatro, uma prima, dois negrinhos e eu.
Havia os azulejos, o muro do quintal, que limitava o mundo,
Uma paineira enorme e, sempre e cada vez mais, os grilos e as estrelas…
Havia todos os ruídos, todas as vozes daqueles tempos…
As lindas e absurdas cantigas, tia Tula ralhando os cachorros,
O chiar das chaleiras…

Onde andará agora o pince-nez da tia Tula
Que ela não achava nunca?
A pobre não chegou a terminar o Toutinegra do Moinho,
Que saía em folhetim no Correio do Povo!…
A última vez que a vi, ela ia dobrando aquele corredor escuro.
Ia encolhida, pequenininha, humilde. Seus passos não faziam ruído.
E ela nem se voltou para trás!

Emergência

Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo —
para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.

Poeminho do Contra

Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão…
Eu passarinho!

Relógio

O mais feroz dos animais domésticos
é o relógio de parede:
conheço um que já devorou
três gerações da minha família.

Os Poemas

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.

Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem. E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti…

Esperança

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E — ó delicioso voo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança…
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA…

Envelhecer

Antes, todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.

Tic-tac

Esse tic-tac dos relógios
é a máquina de costura do Tempo
a fabricar mortalhas.