quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Medíocres e perigosos


Por Matheus Pichonelli
Da Carta Capital


O reacionário é, antes de tudo, um fraco. Um fraco que conserva ideias como quem coleciona tampinhas de refrigerante ou maços de cigarro – tudo o que consegue juntar mas só têm utilidade para ele. Nasce e cresce em extremos: ou da falta de atenção ou do excesso de cuidados. E vive com a certeza de que o mundo fora da bolha onde lacrou seu refúgio é um mundo de perigos, pronto para tirar dele o que acumulou em suposta dignidade.

Como tem medo de tudo, vive amargurado, lamentando que jamais estenderam um tapete à sua passagem. Conserva uma vida medíocre, ele e suas concepções e nojos do mundo que o cerca. Como tem medo, não anda na rua com receio de alguém levar muito do pouco que tem (nem sempre o reacionário é um quatrocentão). Por isso, só frequenta lugares em que se sente seguro, onde ninguém vai ameaçar, desobedecer ou contradizer suas verdades. Nem dizer que precisa relaxar, levar as coisas menos a sério ou ver graça na leveza das coisas. O reacionário leva a sério a ideia de que é um vencedor.

Para ele, tudo o que é diferente tem potencial de destruição

A maioria passou a vida toda tendo tudo ao alcance – da empregada que esquentava o leite no copo favorito aos pais que viam uma obra de arte em cada rabisco em folha de sulfite que ele fazia – e cultivou uma dificuldade doentia em se ver num mundo de aptidões diversas. Outros cresceram em meios menos abastados – e bastou angariar postos na escala social para cuspir nos hábitos de colegas de velhos andares. Quem não chegou aonde chegou – sozinho, frise-se – não merece respeito.

Rico, ex-pobre ou falidos, não importa: o reacionário clássico enxerga em tudo o que é diferente um potencial de destruição. Por isso se tranca e pede para não ser perturbado no próprio mundo. Porque tudo perturba: o presidente da República quer seu voto e seus impostos; os parlamentares querem fazê-lo de otário; os juízes estão doidos para tirar seus direitos acumulados; a universidade é financiada (por ele, lógico) para propagar ideias absurdas sobre ideais que despreza; o vizinho está sempre de olho na sua esposa, em seu carro, em sua piscina. Mesmo os cadeados, portões de aço, sistemas de monitoramento, paredes e vidros anti-bala não angariam de todo a sua confiança. O mundo está cheio de presidiários com indulto debaixo do braço para visitar familiares e ameaçar os seus (porque os seus nunca vão presos, mesmo quando botam fogo em índios, mendigos, prostitutas e ciclistas; índios, mendigos, prostitutas e ciclistas estão aí para isso).

Como não conhece o mundo afora, a não ser pelas viagens programadas em pacotes que garantem o translado até o hotel, e despreza as ideias que não são suas (aquelas que recebeu de pronto dos pais e o ensinaram a trabalhar, vencer e selecionar o que é útil e o que é supérfluo), tudo o que é novo soa ameaçador. O mundo muda, mas ele não: ele não sabe que é infeliz porque para ele só o que não é ele, e os seus, são lamentáveis.

Muitas vezes o reacionário se torna pai e aprende, na marra, o conceito de família. Às vezes vai à igreja e pede paz, amor, saúde aos seus. Aos seus. Vê nos filhos a extensão das próprias virtudes, e por isso os protege: não permite que brinquem com os meninos da rua nem que tenham contato com ideias que os retirem da sua órbita. O índice de infarto entre os reacionários é maior quando o filho traz uma camisa do Che Guevara para casa ou a filha começa a ouvir axé e namorar o vocalista da banda (se ele for negro o infarto é fulminante).

Mas a vida é repleta de frestas, e o tempo todo estamos testando as mais firmes das convicções. Mas ele não quer testá-las: quer mantê-las. Por isso as mudanças lhe causam urticárias.

Nos anos 70, vivia com medo dos hippies que ousavam dizer que o amor não precisava de amarras. Eram vagabundos e irresponsáveis, pensava ele, em sua sobriedade.

Depois vieram os punks, os excluídos de aglomerações urbanas desajeitadas, os militantes a pedir o alargamento das liberdades civis e sociais. Para o reacionário, nada daquilo fazia sentido, porque ninguém estudou como ele, ninguém acumulou bens e verdades como ele e, portanto, seria muito injusto que ele e o garçom (que ele adora chamar de incompetente) tivessem o mesmo peso numa urna, o mesmo direito num guichê de aeroporto, o mesmo lugar na fila do fast food.

Para não dividir espaços cativos, frutos de séculos de exclusão que ele não reconhece, eleva o tom sobre tudo o que está errado. Sabendo de seus medos e planos de papel, revistas, rádios, televisão, padres, pastores e professores fazem a festa: basta colocar uma chamada alarmista (“Por que você trabalha tanto e o País cresce tão pouco?”) ou música de suspense nas cenas de violência (“descontrolada!”) na tevê para que ele se trema todo e se prepare para o Armagedoon. Como bicho assustado, volta para a caixinha e fica mirabolando planos para garantir mais segurança aos seus. Tudo o que vê, lê e ouve o convence de que tudo é um perigo, tudo é decadente, tudo é importante, tudo é indigno. Por isso não se deve medir esforços para defender suas conquistas morais e materiais.

E ele só se sente seguro quando imagina que pode eliminar o outro.

Primeiro, pelo discurso. No começo, diz que não gosta desse povinho que veio ao seu estado rico tirar espaço dos seus. Vive lembrando que trabalha mais e paga mais impostos que a massa que agora agora quer construir casas em seu bairro, frequentar os clubes e shoppings antes só repletos de suas réplicas. Para ele, qualquer barberagem no trânsito é coisa da maldita inclusão, aqueles bárbaros que hoje tiram carta de habilitação e ainda penduram diplomas universitários nas paredes. No tempo dele, sim, é que era bom: a escola pública funcionava (para ele), o policial não se corrompia (sobre ele), o político não loteava a administração (não com pessoas que não eram ele).

Há que se entender a dor do sujeito. Ele recebeu um mundo pronto, mas que não estava acabado. E as coisas mudaram, apesar de seu esforço e sua indignação.

Ele não sabe, mas basta ter dois neurônios para rebater com um sopro qualquer ideia que ele tenha sobre os problemas e soluções para o mundo – que está, mas ele não vê, muito além de um simples umbigo. Mas o reacionário não ouve, os ignorantes são os outros: os gays que colocam em risco a continuidade da espécie, as vagabundas que já não respeitam a ordem dos pais e maridos, os estudantes que pedem a extensão de direitos (e não sabem como é duro pegar na enxada), os maconheiros que não estão necessariamente a fim de contribuir para o progresso da nação, os sem-terra que não querem trabalhar, o governante que agora vem com esse papo de distribuir esmola e combater preconceitos inexistentes (“nada contra, mas eles que se livrem da própria herança”), os países vizinhos que mandam rebas para emporcalhar suas ruas.

O mundo ideal, para o reacionário, é um mundo estático: no fundo, ele não se importa em pagar impostos, desde que não o incomodem.

Como muitos não o levam a sério, os reacionários se agrupam. Lotam restaurantes, condomínios e associações de bairro com seus pares, e passam a praguejar contra tudo.

Quando as queixas não são mais suficientes, eles juntam as suas solidões e ódio à coletividade (ironia) e passam a se interessar por política. Juntos, eles identificam e escolhem os porta-vozes de suas paúras em debates nacionais. Seus representantes, sabendo como agradar à plateia, são eleitos como guardiões da moralidade. Sobem a tribunas para condenar a devassidão, o aborto, a bebida alcoolica, a vida ao ar livre, as roupas nas escolas. Às vezes são hilários, às vezes incomodam.

Mas, quando o reacionário se vê como uma voz inexpressiva entre os grupos que deveriam representá-lo, bota para fora sua paranóia e pragueja contra o sistema democrático (às vezes com o argumento de que o sistema é antidemocrático). E se arma. Como o caldo cultural legitima seu discurso e sua paranoia, ele passa a defender crimes para evitar outros crimes – nos Estados Unidos, alvejam imigrantes na fronteira, na Europa, arrebentam árabes e latinos, na Candelária, encomendam chacinas e, em QGs anônimos, planejam ataques contra universitários de Brasília que propagam imoralidades.

O reacionário, no fim, não é patrimônio nacional: é um cidadão do mundo. Seu nome é legião porque são muitos. Pode até ser fraco e viver com medo de tudo. Mas nunca foi inofensivo.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Reflexões sobre a morte, por La Rochefoucauld

Detalhe de estela funerária romana do século 1 a.C. (Foto: Marie-Lan Nguyen/CC)

Por Alcir Pécora
Da Revista Cult

O embate entre jesuítas e jansenistas que absorveu boa parte da vida religiosa, intelectual e política ao longo do século 17, na França, exibe uma de suas facetas mais esclarecedoras em torno do sentimento diante da morte. Assim, seguindo os passos dos Exercícios Espirituais de seu Patriarca, Inácio de Loyola, os jesuítas tendiam a enxergar na morte uma fertilíssima fonte de imaginação, queera também a mais importante ocasião de uma consciência do desengano dos bens mundanos, traduzindo-se num ato de conversão em favor de uma vida racional e pia. Já os jansenistas, os quais, a certa altura, arrebataram a aristocracia parisiense em revolta contra a crescente centralização monárquica, eram mais pessimistas sobre o que a morte pudesse oferecer deproveito à alma ou ao espírito humanos – como seguramente nenhum bem oferecia ao corpo.

Mais próximo dessa última posição, o Duque François de La Rochefoucauld (1613-1680), um dos mais importantes homens de armas e letras do período, empregou-se a expor o seu pensamento a respeito da morte naquela que se tornou aúltima e mais longa de suas Reflexões ou Sentenças e Máximas Morais. Apresento a seguir uma modesta tentativa de traduzi-la, tomando por base o texto da quinta edição, de 1678:

“Após ter falado da falsidade de tantas virtudes aparentes, é razoável dizer alguma coisa da falsidade do desprezo pela morte. Eu quero falar sobre esse desprezo pela morte que os ímpios se vangloriam de retirar de suas próprias forças sem a esperança de uma vida melhor. Existe diferença entre suportar constantemente a morte e desprezá-la. O primeiro é bastante comum, porém creio que o outro jamais é sincero. Apesar disso, escreveu-se tudo o que poderia haver de mais persuasivo a respeito de a morte não ser um mal; os homens mais fracos, assim como os heróis, deram mil exemplos célebres para firmar essa opinião. Eu duvido, entretanto, que alguém de bom senso já tenha acreditado nisso; o esforço empregado para persuadir aos outros e a si mesmo bem demonstra que a empreitada não é fácil.

Podemos ter diversos motivos de desgosto na vida, porém jamais temos razão para desprezar a morte; mesmo aqueles que voluntariamente se entregam a ela não têm a morte por coisa tão pequena, e eles se horrorizam e repudiam-na, como os demais, se ela lhes chega por uma via distinta da que escolheram. A desigualdade que notamos na coragem de um número infinito de homens de valor deve-se a que a morte se revela de modos diferentes à sua imaginação e mostra-se mais presente num período do que em outro. Ocorre, assim, que após terem desprezado aquilo que não conhecem, eles temem enfim aquilo que conhecem. Se não quisermos acreditar que ela é o maior de todos os males, será preciso evitar encará-la em todas as suas circunstâncias. Os mais hábeis e os mais corajosos são os que encontram os pretextos mais honestos para impedirem-se de tomá-la em consideração.

Porém qualquer homem que saiba vê-la tal como é, acha que é uma coisa pavorosa. A necessidade de morrer gerava toda a constância dos filósofos. Eles acreditavam que era preciso ir de bom grado aonde não podiam deixar de ir; e, não podendo eternizar suas vidas, não há nada que tenham deixado de fazer para eternizar sua reputação e livrar do naufrágio o que não podia estar a salvo. Contentemo-nos com a boa disposição de não dizer a nós mesmos tudo aquilo que pensamos, e esperemos mais de nosso caráter do que desses frágeis arrazoados que nos fazem crer que podemos nos aproximar da morte com indiferença.

A glória de morrer sem abatimento, a esperança de ser lembrado com saudade, o desejo de deixar uma bela reputação, a confiança em estar livre das misérias da vida e em não mais depender dos caprichos da fortuna são remédios que não devem ser desprezados. Porém não devemos acreditar igualmente que sejam infalíveis. Eles fazem pela nossa confiança o mesmo que frequentemente faz uma simples cerca, na guerra, para dar confiança aos que devem se aproximar do lugar de onde atiram. Quando estamos afastados, imaginamos que ela possa cobrir-nos, porém, quando estamos próximos, achamos que é de pouca valia. É vanglória acreditar que a morte nos pareça de perto aquilo que julgamos de longe, e que nossos sentimentos, que não passam de fraquezas, sejam de uma têmpera forte o bastante para não sofrer dano algum na mais dura de todas as provas.

É também conhecer mal os efeitos do amor-próprio pensar que ele possa ajudar-nos a ter por nada aquilo que deve necessariamente destruí-lo; e a razão, na qual acreditamos encontrar tantos recursos, é, neste encontro, fraca demais para nos persuadir do que queremos. Ao contrário, é ela que mais frequentemente nos trai e que, ao invés de nos inspirar o desprezo pela morte, faz-nos descobrir o que tem de horrendo e terrível. Tudo o que a razão pode fazer por nós é aconselhar-nos a desviar os olhos para colocá-los em outros objetos.

Catão e Brutus escolheram os ilustres. Um criado, há algum tempo, contentou-se em dançar no cadafalso onde ia sofrer o suplício da roda. Assim, embora os motivos sejam diferentes, produzem os mesmos efeitos. De maneira que, por mais desproporção que haja entre os grandes homens e a gente comum, a verdade é que vimos uns e outros, mil vezes, receberem a morte com um mesmo rosto; porém, isto sempre ocorreu com a diferença de que, no desprezo que os grandes homens mostram pela morte, é o amor pela glória que lhes desvia a vista, e, no da gente comum, é apenas um efeito das parcas luzes que a impedem de conhecer o tamanho de seu mal e deixam-na livre para pensar em outra coisa”.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Clarice Lispector: Jornalista de Carteirinha

Por Oscar Pilagallo
Da Revista Bravo

Passeia pela Cinelândia “uma senhora já na casa respeitável dos 60, com o número de anos dobrado em banhas estranguladas num cinto flexível de 20 centímetros de largura e de cor de beterraba cozida. A gordura ia pulando em toda a circunferência e a mulher, felicíssima da vida, saltitando, como um periquito na alface”.

O parágrafo bem que poderia pertencer a uma crônica sobre a cena carioca. Poderia também ser excerto de romance ou conto em que o narrador tratasse um personagem com humor ferino. De um jeito ou de outro, estaríamos no campo da literatura. O texto, no entanto, não tem tal propósito. É apenas um artigo descartável com conselhos sobre elegância para as mulheres modernas do início dos anos 50. Assinado por certa Tereza Quadros e publicado em Comício, fugaz semanário do Rio de Janeiro, nunca teria emergido dos arquivos se por trás do pseudônimo não se escondesse a promissora romancista que, quase dez anos antes, lançara sua primeira obra, Perto do Coração Selvagem, com calorosa acolhida da crítica: Clarice Lispector (1920-1977).

Resgatado das traças da história pela professora de literatura Aparecida Maria Nunes, o artigo da seção Entre Mulheres de 19 de setembro de 1952 integra a produção da autora de A Hora da Estrela para jornais e revistas, em parte inédita em livro. Esse é o escopo de Clarice na Cabeceira – Jornalismo, com crônicas, reportagens, entrevistas e contos, além de comentários sobre moda, etiqueta e afins, que foi publicado às vésperas dos 35 anos da morte da escritora.

A reunião de textos de circunstância, pelos quais a própria autora parecia não nutrir grande apreço, estaria apenas raspando o fundo do tacho clariciano se não jogasse alguma luz sobre a biografia e a composição literária da escritora que, identificada por sua introspecção, sintaxe particular e imagens inusitadas, construiu um universo ficcional plenamente reconhecível.

Sem Deus e Contra o Estado

Um de seus primeiros trabalhos jornalísticos, de 1941, para a revista A Época, da Faculdade Nacional de Direito, permite, por exemplo, entrever sua visão de mundo. “Não há o direito de punir. Há apenas o poder de punir. O homem é punido pelo seu crime porque o Estado é mais forte que ele.” Segundo a estudante, “a guerra, grande crime, não é punida porque, se acima dum homem há os homens, acima dos homens nada mais há”.

Trata-se de uma declaração fascinante, diz o pesquisador norte-americano Benjamin Moser. O biógrafo de Clarice vê naquelas palavras uma dupla afirmação: de ateísmo, por parte de uma jovem educada na tradição judaica, e da ilegitimidade do Estado, feita em plena ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945).

As pinceladas biográficas são apenas uma pequena parte do que o livro oferece. Ao leitor que se aproxima da prosa de Clarice pela primeira vez, a coletânea serve como porta de entrada para um mundo em que o acesso é restrito pela alta voltagem de uma criatividade que, ao subverter convenções da língua, pode barrar a caminhada dos menos perseverantes. A autora revela plena consciência da diferença percebida entre os dois registros de sua produção: “Certas pessoas achavam meus livros difíceis e, no entanto, achavam perfeitamente fácil entender-me no jornal, mesmo quando publico textos mais complicados”.

A Clarice jornalista não era ignorada pelo público que primeiro a conheceu por intermédio dos livros. Ao menos quatro volumes já haviam recuperado parte do material disperso: De Corpo Inteiro e Entrevistas, que trazem uma seleção das conversas com personalidades; A Descoberta do Mundo, com crônicas para o Jornal do Brasil; e Outros Escritos, com conferências, reportagens, anotações pessoais e ensaios. Clarice na Cabeceira vem se somar a essas coletâneas, que refazem a trajetória da escritora na imprensa.

Receita para Matar Baratas

Nádia Batella Gotlib, autora de Clarice, uma Vida que Se Conta, estabelece uma distinção entre os textos literários – que se valiam da mídia apenas como veículo de divulgação – e aqueles escritos especialmente para jornais e revistas. Neles, a marca especial da escritora ganha traços particulares. “São textos em que tudo cabe, bem ao gosto de Clarice, numa mistura diferenciada de temas, linguagens, situações”, afirma a estudiosa.

Gotlib identifica na produção jornalística embriões da ficção. É o caso da sua “receita de assassinato” de baratas, objeto de duas colunas muito parecidas, publicadas em 1952 e 1960. O método consiste em colocar gesso numa mistura que, para o inseto, é uma iguaria. “Na manhã seguinte dezenas de baratas duras enfeitarão como estátuas a vossa cozinha, madame”, escreve Clarice. O fragmento, posteriormente reinventado como conto (A Quinta História) e romance (A Paixão Segundo G.H.), exibe vestígios da contundência mais tarde potencializada na ficção. “É uma literatura implacável e deliciosamente perversa”, avalia Gotlib.

Os textos para a imprensa também servem de espaço privilegiado às reflexões sobre a escrita. Em repetidas ocasiões, Clarice Lispector retorna ao tema, com definições complementares sobre seu ofício. Em notas avulsas publicadas na revista Senhor, em 1964, ela coloca a questão nos seguintes termos: “Escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra morde a isca alguma coisa se escreveu”. E arremata em seguida, com a perspectiva da ficcionista: “Escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu”.

Anos depois, no Jornal do Brasil, confessaria: “A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo”. Ela exemplifica: “Às vezes [a língua] reage diante de um pensamento mais complicado. Às vezes se assusta com o imprevisível de uma frase”. Mas a escritora não termina o parágrafo sem deixar claro que até aprecia as dificuldades: “Eu gosto de manejá-la – como gostava de estar montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às vezes a galope”.

Nem todos achavam que ela poderia cavalgar a língua a seu bel-prazer. O linotipista do jornal provavelmente era um deles. Na época, o responsável pela composição da página não raro se arvorava o direito de corrigir os autores. Clarice – transgressora capaz de começar o romance Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres com uma vírgula – não gostava que lhe tirassem vírgula nenhuma do lugar. Certo dia, dirigindo-se diretamente ao operário, ela disse: “A pontuação é a respiração da frase, e minha frase respira assim”. Depois veio a bronca, suavizada pela admissão de que ela era mesmo diferente: “E se você me achar esquisita, respeite também. Até eu fui obrigada a me respeitar”.

A respiração da frase, aliás, é tema recorrente de Clarice. Ainda no JB, a romancista voltaria ao assunto um ano depois de chamar a atenção do funcionário. “Escrever é saber respirar dentro da frase”, explicou. E agregou ao trecho uma ponderação que valeria mais que boa parte da exegese acadêmica sobre sua obra: “É pôr algum silêncio tanto nas linhas como nas entrelinhas para que o leitor possa respirar comigo, sem pressa, adaptando-se não só ao seu ritmo como ao meu, numa espécie de contraponto indispensável”.

A escritora não fazia questão de desobedecer as regras da língua portuguesa, apenas não se importava tanto assim com a norma culta. “Tenho o maior respeito pela gramática, e pretendo nunca lidar conscientemente com ela”, avisou seus leitores. “Em matéria de escrever certo, escrevo mais ou menos certo de ouvido, por intuição, pois o certo sempre soa melhor.” Se o resultado era digerível para o leitor médio, é porque Clarice procurava se comportar: “Não se assustem, nesta coluna esforço-me por não usar uma sintaxe que me é íntima e natural”.

Clarice foi uma jornalista relutante. Receava que a atividade pudesse comprometer sua ficção. “Como não deixar o jornalismo interferir com a literatura? Tenho medo”, comentou em 1968 ao entrevistar o dramaturgo Henrique Pongetti (1898-1976). Ela explicou o que a afligia: “Mesmo escrevendo uma crônica só uma vez por semana, sinto já um certo desgaste. [...] O que me dá medo é o de chegar, por falta de assunto, à autorrevelação, mesmo à minha revelia”. Em outra ocasião, acrescentaria: “Sinto-me um pouco como se estivesse vendendo minha alma”.

As entrevistas são um capítulo à parte. Clarice conversou com personalidades, em geral de seu círculo de amizades, e transcreveu os diálogos no Jornal do Brasil e nas revistas Manchete e Fatos e Fotos. Aparecida Maria Nunes contabiliza cerca de 100 entrevistas realizadas, um quinto das quais é reproduzido em Clarice na Cabeceira. Dessas, várias são inéditas em livro, inclusive a primeira, de 1940, com o poeta Tasso da Silveira (1895-1968), e a última, de 1977, com a artista plástica Flora Morgan Snell.

Nesses encontros, ela se expunha pessoalmente e opinava a respeito dos interlocutores. Sobre a atriz Elke Maravilha, por exemplo, lançou um olhar penetrante: “Capricha muito na arte de viver, mas o que sabe mesmo é interpretar o seu melhor personagem”. A conversa data de dezembro de 1976, um ano antes da morte da escritora. “Foi amor à primeira vista”, disse Elke. A escritora notou que a entrevistada chegou com um “vestido longo de cetim branco, com pala de brocados”. Pouco depois, Elke a presenteou com um modelo igual, que ela própria costurou a mão.

Sem pudores, Clarice estabelecia com os entrevistados uma relação que ia muito além do contato profissional. O encontro em 1968 com Tom Jobim (1927-1994) é antológico. A certa altura, depois de uma divagação de um dos pais da bossa nova, ela solta: “Não estou entendendo nada do que nós estamos falando, mas faz sentido”. E mais adiante: “Estou simplesmente misturando tudo, mas não é culpa minha, Tom, nem sua: é que esta entrevista foi se tornando meio psicodélica”. O compositor não demora a revelar as circunstâncias em que rola o papo: “Desculpe, eu não quero mais uísque por causa da minha voracidade, tenho é que beber cerveja porque ela locupleta os grandes vazios da alma. Ou pelo menos impede a embriaguez súbita”. E Clarice não deixa de informar o leitor: “Foi devidamente providenciada a ida da empregada para comprar cerveja”.

A jornalista gostava de provocar. Também em 1968, olhos nos olhos de Chico Buarque, ela comentou: “Você [...] deslumbrou-se com as próprias capacidades, entrou numa roda-viva e ainda não pôs os pés no chão”. E ele: “Tenho cara de bobo porque minhas reações são muito lentas, mas sou um vivo”. Mais adiante, a repórter cutucou novamente: “Você também tem o ar de quem é facilmente enganado: é verdade que você é crédulo ou está de olhos abertos para os charlatães?” E Chico: “Não é que eu seja crédulo, sou é muito preguiçoso”. No fim, como fazia em quase todas as entrevistas, ela perguntou: “O que é o amor?” O compositor de A Banda disse não saber definir e devolveu a pergunta. “Nem eu”, respondeu a romancista.

Assim era Clarice Lispector. Ela não queria explicar os sentimentos, as pessoas, o mundo. Só queria escrever, a seu modo, sobre eles.


De Frente com Clarice 
Algumas declarações tiradas de entrevistas feitas pela escritora

“Sou um sujeito que defende ferozmente a sua solidão. (...) Eu não quero ser nem canalha da esquerda nem canalha da direita.” Do dramaturgo Nelson Rodrigues, em 1968

“Sou contra a arte de consumo. Claro, Clarice, que eu amo o consumo... Mas do momento em que a estandardização de tudo tira a alegria de viver, sou contra a industrialização. Sou a favor do maquinismo que facilita a vida humana, jamais da máquina que domina a espécie humana. Claro, os artistas devem preservar a alegria do mundo. Embora a arte ande tão alienada e só dê tristeza ao mundo. Mas não é culpa da arte porque ela tem o papel de refletir o mundo. Ela reflete e é honesta. Viva Oscar Niemeyer e viva Villa-Lobos! Viva Clarice Lispector! Viva Antônio Carlos Jobim!” Do compositor Tom Jobim, em 1968

“Às vezes, estou procurando criar alguma coisa e durmo pensando nisso, acordo pensando nisso – e nada. Em geral, eu canso e desisto. No outro dia, a coisa estoura e qualquer pessoa pensaria que era gratuita, nascida naquele momento. Mas essa explosão vem do trabalho anterior inconsciente e aparentemente negativo.” Do cantor Chico Buarque, em 1968

“Você prefere inclusive ser uma grande escritora. Mas eu renunciei há muito tempo a essa vaidade. Quero comer, beber, fazer amor e morrer. Não me considero responsável pela literatura.” Do cronista José Carlos de Oliveira, em 1968

“Você, Clarice, é uma pessoa com uma dramática vocação de integridade e de totalidade. Você busca, apaixonadamente, o seu self – centro nuclear de confluência e de irradiação de força – e essa tarefa a consome e faz sofrer.” Do psicanalista Hélio Pellegrino, em 1977

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Indicação de Cinema para Semana: "Cyrano de Bergerac"

Por Oziella Inocêncio

Em 1897, Edmond Rostand criou Cyrano de Bergerac : herói romântico que nutre uma imensa paixão por sua prima Roxane. A história foi levada às telas do cinema em 1950 pela United Artists, sob a direção de Michael Gordon e produção de Stanley Kramer, tendo no elenco José Ferrer como Cyrano, Willian Prince como Christian de Neuvillette e Mala Powers como Roxane. A obra em preto e branco rendeu a Ferrer o Oscar de Melhor Ator pelo seu desempenho. 

Cyrano é gentil, um perfeito cavalheiro, exímio poeta e espadachim.  Contudo, as pessoas veem apenas seus quase sete centímetros de nariz. Conta-se que a equipe do filme necessitou de seis dias para fabricar os moldes da protuberante peça nasal. 

O filme começa em uma grande sala de teatro, onde Cyrano está assistindo um espetáculo de teatro. Descontente com a fraca atuação do ator principal, ele obriga-o a retirar-se de cena após rir dele perante o público. Com o fim abrupto da apresentação, Cyrano paga as despesas da peça, mas ainda assim se vê obrigado a duelar com um desafeto em meio a multidão. Ele conduz o duelo embalado por uma poesia que profere ao rival a cada golpe de espada, vencendo o oponente com tranquilidade. A partir deste pequeno trecho do filme, fica bem claro o talento dele com as palavras. Talento este que utiliza para ajudar Christian de Neuvillette (William Prince) a conquistar o amor de Roxane (Mala Powers), mesmo tendo grande paixão pela prima, que considera inatingível devido a sua aparência.

Neste cenário romântico, entra em cena um novo rival; Antoine, o conde de Guiche (Ralph Clanton), que os envia para Guerra com o objetivo de tirá-los de seu caminho na luta pelo amor de Roxane. A partir daí, o filme conduz o espectador a uma série de aventuras e desventuras com um final surpreendente. Não há quem não se emocione com a história de um herói que de galã não tem absolutamente nada - sua beleza é sua inteligência, coragem e caráter.

Não por acaso, o diretor Michael Gordon reuniu para os papéis principais os atores José Ferrer e Ralph Clanton, respectivamente nos papéis de Cyrano e Duque de Guiche, que já haviam representado os mesmos papéis em 1946 nos teatros da Broadway. Cyrano de Bergerac recebeu outras versões em 1990 com Gérard Depardieu e 2008 em um musical com Kevin Kline. Atualmente, o filme está em domínio público para acesso através da internet e disponível em VHS e DVD.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Literatura brasileira, os silêncios e as exclusões

Escritora identificou o quanto nossa produção cultural permanece cheia de preconceito 
malgrado o pretenso "intelecto"

Por Márcia Lira
Da revista Literatura Hoje

Um estudo sobre a literatura brasileira divulgado nesta segunda-feira (18) é literalmente um tapa na cara da sociedade, e sem luva de pelica. A autora, Regina Dalcastagnè, é jornalista, doutora em teoria da literatura, professora e dedicou 15 anos à pesquisa que mostra o quanto ainda somos preconceituosos, machistas, patriarcalistas e como ainda estamos muito aquém do que acreditamos quando o assunto é aceitar as diferenças.
 
A pesquisadora se debruçou sobre “um total de 258 obras, correspondente à soma dos romances brasileiros do período entre 1990 e 2004, publicados pelas editoras Companhia das Letras, Record e Rocco e identificados pelo grupo de pesquisa” (de artigo sobre a pesquisa). A pesquisa foi chamada Eu quero escrever um livro sobre literatura brasileira. Só para dar um exemplo, ela mostra que o personagem médio do romance brasileiro é um homem branco, heterossexual, intelectualizado, sem deficiências físicas ou doenças crônicas, membro da classe média e morador de grande centro urbano.

Com tantas informações interessantes, representadas no infográfico abaixo, originalmente publicado no Ponto Eletrônico, há de se esperar um debate também no campo literário sobre o valor das diferenças e a importância de dar voz à nossa multiplicidade também nessa área cultural. E não acho que é o caso de apontar um ou outro autor porque ele segue o padrão, afinal a liberdade criativa merece respeito. A meu ver é o caso de coletivamente pensar e repensar como o nosso discurso de multiplicidade fica na superfície, a ponto de não ser refletido na nossa produção cultural.


quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

A hora e a vez do cliqueativismo


Por Muniz Sodré
Da Revista Novae

Parece não haver dúvidas quanto à contribuição da mobilização digital (ou ciberativismo, ou ainda cliqueativismo) para a derrubada de governos, como ocorreu no Egito, ou para a elaboração de leis, como a da Ficha Limpa no Brasil.

Estes temas foram amplamente levantados na Campus Party Brasil, um mar de barraquinhas multicoloridas, que se realizou em São Paulo no começo deste mês. O título do encontro devia justificar-se pela poderosa influência monoglótica do ciberespaço que, ao menos, respeitou o “s” de Brasil.

Numa reportagem de O Globo (30/1/2013), assinada por Paulo Justus, o ativista Lucas Pretti (responsável pelo portal de petições online Change.org) garantia:

“A pressão que se faz na internet é real. Não existe mais a barreira entre o virtual e o real. As pessoas criticam o cliqueativismo porque acreditam que há uma barreira entre o que se faz na internet e o que acontece na realidade. Mas essa barreira já caiu desde os anos 2000, porque, hoje, com os dispositivos móveis, aquilo que acontece no Facebook está nos nossos bolsos”.

Os exemplos oferecidos pelo ativista eram uma petição em que 15 mil pessoas instavam o governador Geraldo Alckmin a assinar leis de combate à obesidade infantil em São Paulo e também a negociação entre as baianas que vendem acarajé no estádio da Fonte Nova, em Salvador, e a FIFA. As baianas estavam preocupadas em saber se poderiam vender o produto durante os jogos da Copa.

Democracia representativa

A palavra “ativismo” está simbolicamente marcada por toda uma tradição política. Não falta quem possa achá-la forte demais para questões de natureza tão gerencial como obesidade infantil ou comércio de acarajés. Não é este, porém, o ponto para o qual queremos chamar a atenção, e sim para aquela alegada “queda de barreiras entre o virtual e o real”.

É que, coincidente com a realização da Campus Party, corria na internet um manifesto com milhares de assinaturas contra a posse de Renan Calheiros na presidência do Senado. Muitas assinaturas, sim, mas pelo visto foram inócuas as suas repercussões reais, como comprovou o ato de posse do prócer alagoano, atestado pela foto jornalística em que ele e o ex-presidente Fernando Collor de Melo gargalhavam. Numa foto posterior, em O Globo, Calheiros aparecia desfilando em meio a uma tropa formada em sua homenagem, enquanto sete (precisamente sete gatos pingados) manifestantes exibiam ao fundo cartazes de “Fora, Renan!”.

Ao que tudo indica, há uma forte discrepância entre virtual e real no que diz respeito à pressão no espaço público. Pode-se passar por cima da situação no Egito, onde tudo continua como dantes no quartel de Abrantes, talvez pior, com internet e tudo. O real-histórico não é feito de bytes, as lutas sociais que refletem contradições entre classes (sim, as classes continuam existindo…) ou entre aparelhos de Estado e povo não podem ser reduzidas a meios técnicos de mobilização de pessoas. A democracia representativa, ainda que aos pedaços, persiste como um tríptico de povo, organizações e Estado. Real, tudo isso. Dentro de casa, à frente do computador, o ativismo é um mero flatus vocis.

Outro olhar

De um modo geral, fica a impressão de que esse ativismo apolítico é comercialmente útil como plataforma de lançamento de novos recursos eletrônicos. Tanto assim que a Telefônica/Vivo aproveitou o grande público da Campus Party para lançar o primeiro smartphone que funciona na plataforma Firefox OS. A notícia, que não se dá ao trabalho de divulgar as vantagens nem o preço do novo gadget, avisa apenas que ele chegará às lojas no segundo semestre deste ano.

Ao mesmo tempo, numa das palestras mais aguardadas da Campus Party, Buzz Aldrin, o segundo homem a pisar na Lua, convidou os campuseiros a olharem para Marte, a nova fronteira espacial que, segundo ele, será alcançada entre os anos 2035 e 2040. Argumentou: “Por que ir a Marte? Chegando ao espaço, melhoramos a vida na Terra. Isso traz tecnologia a nossas vidas. Celulares, TV, GPS não seriam possíveis sem um plano espacial”.

Olhemos, pois, ciberativamente, para Marte.



quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Feminicídio

Cena do filme Anticristo (2009), de Lars Von Trier (Foto: Reprodução)

Por Marcia Tiburi
Da Revista Cult

Anticristo, o polêmico filme de Lars Von Trier de 2009, conta a história de uma mulher que sofre pela morte acidental do filho pequeno. A opção do diretor dinamarquês parece ser a de investir na mítica culpa feminina estabelecendo um elo entre o desejo sexual irrefreável da personagem – caracterizada como quase ninfomaníaca – e o acidente que vitima a criança. O conflito entre a mulher e a mãe talvez esteja no fundo obscuro do filme. Mas isso é o que menos importa diante de um elemento mais curioso e politicamente mais perigoso.

Trata-se do fato de que a personagem interpretada pela atriz Charlotte Gainsbourg é uma estudiosa do que se chama de “feminicídio”, do qual ela mesma será vítima. Ela morre ao final, depois de ter mutilado o marido e ter se automutilado sexualmente, como se seus corpos desejantes devessem ser punidos de um crime. Mas, obedecendo à realidade, ela é que é morta e queimada pelo marido diante de sua casa. A morte por incineração é comum como crime doméstico em alguns países. O que o filme nos diz é que o destino das mulheres é padecer sob a culpa até sua eliminação como papel queimado.

Marcadas para morrer

Feminicídio é um termo cada vez mais corrente entre nós. Usado há séculos para falar do assassinato de mulheres, ele foi retomado em termos críticos há poucas décadas por uma teórica feminista inglesa chamada Diana Russell, que percebeu o significado misógino deste tipo de assassinato. Fala-se de feminicídio desde então para referir-se ao assassinato de uma pessoa por ela ser “mulher”.

A pergunta simples que é preciso fazer nesta hora envolve entender o elemento absurdo que a constitui: por que alguém seria morta apenas por sua condição de mulher? Ou, na via do assassino, por que alguém mataria outrem pelo fato de que este outro seja “mulher”? Podemos nos perguntar o que há de crime ou pecado, de ofensa ou de erro em ser “mulher”? Qual o teor desse ódio?

Não há discussão sincera sobre este tema que não seja obrigada a lutar contra o cinismo de respostas como a que dá Lars Von Trier em seu filme exemplar: a culpa é das próprias mulheres. O preço a ser pago para a portadora da culpa é a morte. O argumento da culpa feminina é usado por assassinos, estupradores e praticantes de violência contra mulheres em geral. O algoz se defende quando a opinião pública o questiona dizendo que “ela estava querendo”, que “ela sabia o que iria acontecer”. Os estupradores autorizam-se a estuprar e até matar porque a “outra” não se “portou” como “devia”. Casos exemplares em nossa época não podem ser esquecidos: o da jovem indiana morta em dezembro do ano passado e das garotas estupradas pela banda New Hit, na Bahia.

Assim como genocídio é o termo usado para falar do assassinato étnico, feminicídio é o termo usado para falar de assassinato de mulheres motivados pelo fato de que sejam mulheres. É como se as mulheres estivessem desde sempre marcadas culturalmente por seu “sexo”, como disse Simone de Beauvoir, mas neste caso, mais ainda, é preciso ver que marcadas para morrer por conta deste “sexo” com que são marcadas culturalmente.

Sob a prática patriarcal oculta-se mais do que o absurdo do suposto “motivo para os homens”. A autorização soberana dos homens contra as mulheres é a característica do Patriarcado: o poder total na mão dos homens apenas porque são homens. O patriarcado é uma espécie de ordenamento fundamentalista, simbólico, político, econômico e jurídico, que implica que homens possam fazer o que quiserem com mulheres e nem serem culpados por seus atos. O rebaixamento das mulheres em qualquer campo é  a ponta do iceberg do assassinato de antemão autorizado e sempre possível.

O patriarcado tratará como anomalia tudo o que se coloca contra a sua ordem. Daí a antipatia que tantos têm pela coragem feminista: ela representa a contraparte soberana que assusta porque ameaça mostrar o jogo sujo das relações de gênero a que as mulheres estão submetidas.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Indicação de Cinema para a Semana: O Som ao Redor

 
Cena de O som ao redor: luta espinhosa contra blockbusters e comédias televisivas nacionais

Do Brasil de Fato
Por Maria do Rosário Caetano


“Com o nome cinema pernambucano, a luta de classes volta ao cinema brasilei­ro”. Esta constatação, feita pelo ensaísta e professor da USP Jean-Claude Bernar­det, está registrada na revista Teorema, editada em Porto Alegre por um grupo de intelectuais, professores universitá­rios e críticos.

Bernardet, autor de livros seminais, como Brasil em Tempo de Cinema (1966, estudo sobre os principais fil­mes do Cinema Novo), refere-se a um conjunto de filmes realizados em Recife nos últimos anos. Entre eles, vale desta­car Um Lugar ao Sol e Doméstica, am­bos de Gabriel Mascaro, Vigias, de Mar­celo Lordello, e – principalmente – O Som ao Redor, primeiro longa ficcional de Kleber Mendonça. Depois de uma sé­rie de curtas (destaque para Eletrodo­méstica e Recife Frio) e do longa docu­mental Crítico, Kleber, de 44 anos, doze deles dedicados à crítica cinematográfi­ca, realizou um dos filmes mais comen­tados e premiados do país. Exibido em dezenas de festivais mundo afora (Prê­mio da Crítica Internacional, em Roter­dã, e integrante da lista dos melhores do ano, do crítico A.O. Scott, no New York Times), o filme foi reconhecido também em casa (nos festivais de Gramado, Rio e São Paulo).

O Som ao Redor tem uma missão espinhosa: conquistar o pú­blico brasileiro, acomodado aos block­busters e às comédias televisivas nacio­nais, rebatizadas pelo cineasta Guilher­me de Almeida Prado de “globochan­chadas”. Se conseguir mobilizar públi­co significativo, o filme de Kleber Men­donça romperá barreira que drena os ca­minhos do cinema de baixo orçamento (o filme custou apenas R$1,8 milhão) e lançamento restrito. O Som ao Redor es­treou em apenas 13 salas, número insig­nificante se comparado aos 1.228 cine­mas ocupados por mais um filme da ci­nessérie dos vampiros light (Amanhecer – Parte 2).

Ao referir-se a estas produções vitima­das pela falta de espectadores, Bernar­det recorreu à polêmica expressão “fil­mes irrelevantes”, cunhada pelo cine­asta Eduardo Escorel. Ou seja, evocou realizações cinematográficas, majoritá­rias no cinema brasileiro, que não con­seguem, por razões de mercado, dialogar com seu público potencial.

O Brasil lança em média 80 filmes na­cionais por ano. Os títulos internacio­nais aqui lançados são três ou quatro vezes mais numerosos. E oriundos, em sua maioria absoluta, dos EUA (que fi­cam com média de 80% do número to­tal dos mais de 120 milhões de ingres­sos vendidos).

Pernambuco tem sido (fora Rio e São Paulo) o estado que mais produz filmes no Brasil. E algumas das produções per­nambucanas conseguiram romper a bar­reira dos 100 mil espectadores, uma fa­çanha para um filme de baixo (ou mé­dio) orçamento, lançado por pequenas distribuidoras (com mínimo investi­mento em publicidade) e em poucas sa­las. Neste quadro, destacaram-se Bai­le Perfumado, de Lírio Ferreira e Pau­lo Caldas, visto por 100 mil espectado­res; Amarelo Manga, de Claudio Assis, que vendeu 140 mil ingressos, e Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes (130 mil espectadores).

Quantos espectadores O Som ao Re­dor mobilizará ao término de sua tra­jetória por todos os estados brasileiros, iniciada em apenas três capitais (São Paulo, Rio e Recife)? Só o tempo dirá. Este filme se constituirá, caso consiga transformar-se em sucesso de bilheteria, em estimulante paradigma.

Não se pode (nem se deve) medir a re­levância de um filme apenas por seu êxi­to de bilheteria nas salas de cinema. Afi­nal, O Som ao Redor terá, ainda, muitas vitrines para expandir sua difusão: os ci­neclubes, o DVD, a TV por assinatura, a TV aberta, as novas mídias digitais. Pode (pois tem qualidades para isto) ga­nhar relevância similar à de Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967). O cineas­ta Cacá Diegues costuma dizer que Ter­ra em Transe segue em cartaz há mais de quatro décadas, pois continua sendo exibido, motivando novos estudos e cau­sando polêmica. Bilheteria não é tudo. Mas, é óbvio, quanto mais espectadores um filme de notáveis qualidades temáti­cas e artísticas mobilizar, mais relevante ele se tornará.

Especulação imobiliária

O que faz de O Som ao Redor um filme tão significativo e tão bom? A res­posta mais evidente nos leva à capacida­de que o diretor Kleber Mendonça teve de somar ousadia e inventividade esté­tica a uma acurada abordagem de temas essenciais à compreensão de nosso tem­po (a luta de classes, a especulação imobiliária, a violência urbana e rural, o ra­cismo velado à brasileira, o consumismo desenfreado).

Como os grandes filmes, O Som ao Redor não é um experimento formalis­ta para iniciados. Ao contrário. Ele abre portas para o diálogo com o público, ao estabelecer vigoroso corpo-a-corpo com seu tempo histórico, sem esquecer os afetos e sensibilidades de seus personagens. Que, aliás, são muitos.

A narrativa se compõe com fragmen­tos de histórias de moradores de uma rua de classe média do Recife. Nela re­sidem um senhor de engenho (Senhor Francisco, interpretado por W.J. Solha), que expandiu seus negócios ao lucrativo ramo da especulação imobiliária, um fi­lho (amante de uma festa regada a cho­rinho, mas amedrontado pela violência urbana), dois netos (um que trabalha alugando apartamentos da família, e ou­tro, estudante universitário, que arrom­ba carros). Reside, na mesma rua, uma família nucleada em uma mãe estressa­da (interpretada pela atriz paraense Ma­eve Jinkings), que não suporta os latidos de um cão de guarda.

O senhor Francisco e seus descenden­tes, mais a família atormentada pelo ca­chorro constituem os principais perso­nagens do núcleo dos bem-nascidos. Na base da pirâmide social estão os empre­gados domésticos (em relação freyriano­ afetiva com os patrões) e os “vendedores de segurança”. Na liderança deste grupo está Clodoaldo, magistralmente inter­pretado por Irandhir Santos. Ele chega à rua recifense oferecendo, de porta em porta, “segurança privada”. E o faz com dois ou três ajudantes, um deles com um olho furado.

Em O Invasor (2001), Beto Brant e seu roteirista Marçal Aquino mostram um intruso (oriundo do lumpemprole­tariado paulistano) que “invade” a vi­da de empresários metidos em falcatru­as (imobiliárias). Este tipo de “invasão” se dá também em O Som ao Redor. Os “vigilantes privados” se imiscuem na vi­da dos moradores, a quem bisbilhotarão sem descanso.

A única “reviravolta” da trama se dará no embate entre o senhor de engenho/especulador imobiliário e o vigia Clodo­aldo e seu irmão (em interpretação su­ave de Sebastião Formiga). Este confronto de classe se desenvolverá de forma surpre­endente e, por mais paradoxal que pare­ça, velada. Afinal, a ação que ganhará relevo no impactante desfecho do filme se concentra (no plano das imagens) em mais um ardil da incansável dona de ca­sa estressada contra o barulhento cão de guarda. Um dos finais mais arrebatado­res do cinema brasileiro.

Filme de cinéfilo

Kleber Mendonça, depois de três déca­das de cinefilia e doze anos de crítica ci­nematográfica, sabe que centenas de fil­mes estão impressos indelevelmente em sua memória. Ele mesmo cita produções que o influenciaram. Como Cabra Mar­cado para Morrer (Eduardo Coutinho, 1984), com o qual dialogou ao criar a abertura do filme: uma sucessão de fotos (em preto e branco) de engenhos outro­ra senhoriais, que dominam a paisagem do poderoso estado de Pernambuco desde os tempos em que era uma promisso­ra Capitania Hereditária. Há outras fon­tes de diálogo.

O Som ao Redor, ao captar o medo dos moradores dos grandes centros ur­banos, soma cinema social com cinema de gênero. O resultado só encontra si­milar em um filme brasileiro recente (e tão bom quanto O Som ao Redor): Tra­balhar Cansa, de Juliana Rojas e Mar­co Dutra. Como o pernambucano Kleber Mendonça, a dupla paulistana soma ci­nema social (a partir das densas pesqui­sas que embasaram A Comédia do Tra­balho, do grupo teatral Cia. do Latão) com “horror” metafísico. Que fique cla­ro: nenhum dos dois projetos tem nada a ver com filmes de terror explícito, ali­mentados por sustos brutais e jorros espetaculares de sangue.

Kleber disse, em debate público, no Festival de Gramado, que O Som ao Redor é irmão de Trabalhar Cansa (2011). Disse também que gosta mui­to do cinema de John Carpenter (um dos mestres do horror) e de Elia Suleiman (uma espécie de Chaplin palesti­no). Há que se acrescentar, também, diálogo (mesmo que involuntário) com Short Cuts – Cenas da Vida, de Robert Altman. Além de somar vidas fragmen­tadas numa Los Angeles urbana e caó­tica, Altman recorre à “tempestade” de insetos (e helicópteros), de proporções bíblicas, que cai sobre a cidade. O efeito é quase surrealista. No filme pernam­bucano, dois momentos saem do regis­tro realista: o banho de cachoeira, no Engenho, cuja água cristalina transforma-se em sangue, e um “arrastão” de moleques de rua, que perturba o so­nho da filha da mulher estressada pe­lo cachorro.

Quem for ver o filme do pernambuca­no constatará que além das qualidades estéticas e temáticas já ressaltadas, ele brilha em outro quesito: o som. Kleber, auxiliado pelo trilheiro sergipano, o cra­que DJ Dolores (de Narradores de Ja­vé e Os Últimos Cangaceiros), construiu densa camada de sonoridades. Sonori­dades urbanas que potencializam de for­ma arrebatadora este denso painel de es­tórias de pessoas apavoradas-atormen­tadas por medo potencial. E que reva­lorizam, como Fernanda Torres e Wal­ter Salles haviam feito com Vapor Ba­rato (em Terra Estrangeira), a belíssima Charles Anjo 45, de Jorge Benjor.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

A Tensão Política nas Redes Sociais

Da Revista Trópico
Por Giselle Beiguelman

Redes sociais e de compartilhamento de conteúdo tornaram-se centrais no nosso cotidiano. O protesto contra o Facebook (Quit Facebook Day/Dia de Sair do Facebook) e a guerra de vídeos no YouTube em torno do confronto da Frota da Liberdade são dois acontecimentos recentes sintomáticos desse processo.

De natureza política totalmente distinta (o primeiro contra a política de privacidade de uma empresa e o segundo contra e a favor da ação de Israel na Faixa de Gaza) apontam para as ambivalências da Web 2.0: seu potencial de domesticação e de tensionamento da esfera pública.

O Dia de Sair do Facebook chamou a atenção para a falta de clareza do uso que esta rede social faz dos dados dos seus usuários e sua abertura aos anunciantes do serviço.

O protesto, realizado dia 31 de maio de 2012, era contra a fragilidade da política de privacidade do Facebook e seus vínculos com seu modelo de negócios, baseado em publicidade direcionada.

Esse sistema, que também é utilizado pelo Google e outros serviços, permite que as informações associadas aos perfis de seus usuários sejam vinculadas a anúncios.

No caso do Facebook, que é o site mais acessado do mundo segundo dados do Ad Planner, o combustível dessa máquina é formado pelos inúmeros aplicativos e plug-ins sociais que são oferecidos aos membros.

Eles estimulam a publicação de dados relacionados aos gostos e comportamentos e permitem o mapeamento da distribuição dos anúncios das empresas que compram espaço publicitário no Facebook.
 
Corpos informacionais

Num mundo mediado por bancos de dados de toda sorte –de programas de busca a redes sociais, passando pelas “Amazons” da vida e as catracas da empresa e da escola–, somos uma espécie de plataforma que disponibiliza informações e hábitos conforme construímos nossas identidades públicas nos diversos serviços relacionados ao nosso consumo, lazer e trabalho.

Em síntese, nos transformamos em corpos informacionais. Isso tende a se acirrar, conforme se popularizam os métodos de investigação genética e sua distribuição pela internet.

Afinal, foi isso o que o Projeto Genoma fez: converteu nossa compreensão do corpo, antes entendido como um arranjo de carne, ossos e sangue, em um mapa de informações sequenciadas em computador.

A artista e professora Victoria Vesna, da UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles) chama atenção para a dimensão política do assunto, quando afirma, no livro “Database Aesthetics”, que a corrida pelo patenteamento de genes nos coloca na encruzilhada de pensar que a vida pode estar convertendo numa questão corporativa.

No limite, a situação me faz pensar que um dia poderemos subitamente encontrar parte de nosso código genético no Google ou haquear o DNA de alguém via um site de compartilhamento baseado em Torrents.

Mas, enquanto isso não acontece, é importante deixar claro que já somos corpos informacionais que desovam e recebem dados pela internet e que a internet que importa é, cada vez mais, a que transita pelos dispositivos móveis, combinada a serviços relacionados a mídias locativas.

É essa combinatória que explica a animação dos publicitários com a cultura da mobilidade. A partir de programas instalados no aparelho não apenas é possível saber onde o portador do dispositivo está, mas ter essa informação compartilhada e combinada a bancos de dados e apontando para o que está em sua vizinhança.

Tudo isso mediado pelos encantos das redes sociais, onde somos mobilizados o tempo todo a mensurar nossa popularidade, competindo por números de amigos. Mais desconcertante do que essa abordagem quantitativa da sociabilidade e das relações afetivas, é pensar em como essas identidades se constroem.

Com perfis baseados nos vídeos que assistimos, músicas que gostamos, lugares que frequentamos e coisas bacanas e chatas que acontecem no cotidiano, passamos a ter nossa personalidade ancorada naquilo que consumimos.

O resultado desse processo é que as identidades pessoais passam a ser identidades corporativas, como mostraram, com abordagens distintas, Douglas Roushkoff, em “Life. Inc”, e Richard Sennett, em “A Corrosão do Caráter”.
 
Comunicação e mudança cultural

É difícil negar que esse seja um dos desdobramentos da vida mediada por redes sociais. Mas o embate de versões e documentários que acompanharam o confronto entre a marinha israelense e os ativistas da Frota da Liberdade e que resultou em nove mortos mostram também que as redes são o espaço privilegiado do debate político contemporâneo.

Como comentou Brian Stelter, no “New York Times”, quando os comandos israelenses atacaram a frota “os dois lados estavam bem armados –com câmeras de vídeo”.

Os ativistas enviaram imagens transmitidas do navio Mavi Marmara, via Livestream (um sistema de transmissão de vídeo ao vivo para a internet). Da mesma forma, o exército israelense postou em seu canal no YouTube vários vídeos com sua documentação.

Desnecessário dizer que as imagens são contraditórias: as dos ativistas mostram que foram atacados pela marinha israelense. As do exército de Israel, que este agiu em legítima defesa.

Os usos políticos de manipulação de imagem não são recentes, nem exclusivos da internet. Basta lembrar as famosas fotos da Revolução Russa, nas quais Trotsky aparecia e das quais foi deletado por ordem de Stalin. Apesar da importância desse tema, a manipulação de imagens foge da discussão que se faz aqui.

O que importa, nesse artigo, é chamar a atenção para esses recursos, como Twitter, Facebook e Youtube, que, ao mesmo tempo em que abrem possibilidades inéditas de fomento do consumo e controle, se tornam também dispositivos de uso crítico e criativo das mídias existentes.

Por isso, apontam para diferentes concepções e tendências políticas da ecologia midiática atual. A investigação das zonas de tensão que emergem nos confrontos e nas acomodações dessas tendências permite-nos entender seus procedimentos, tornando suas dinâmicas menos opacas.

Essas tensões são constitutivas das possibilidades de mudança cultural, mudanças essas que são operacionalizadas por movimentos sociais, ao propor e desencadear descontinuidades com as relações de poder que estão embutidas em instituições de vários tipos.

Movimentos sociais não são, contudo, meros conjuntos de indivíduos. São grupos que atuam no espaço público, sendo que esse espaço público hoje, na sociedade em rede, como mostrou Castells, é o espaço das redes de comunicação.

Ocupá-las, relativizando suas funcionalidades meramente publicitárias, é hoje, por isso, questão política fundamental.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Você Conhece??? [Heitor Villa-Lobos, maestro e compositor brasileiro]


Da página Pedagogia & Comunicação

05/03/1887, Rio de Janeiro (RJ)
17/11/1959, Rio de Janeiro (RJ)

Heitor Villa-Lobos se tornou conhecido como um revolucionário que provocava um rompimento com a música acadêmica no Brasil. As viagens que fez pelo interior do país influenciaram suas composições. Entre elas, destacam-se: "Cair da Tarde", "Evocação", "Miudinho", "Remeiro do São Francisco", "Canção de Amor", "Melodia Sentimental", "Quadrilha", "Xangô", "Bachianas Brasileiras", "O Canto do Uirapuru", "Trenzinho Caipira".

Em 1903, Villa-Lobos terminou os estudos básicos no Mosteiro de São Bento. Costumava juntar-se aos grupos de choro, tocando violão em festas e em serenatas. Conheceu músicos famosos como Catulo da Paixão Cearense, Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros e João Pernambuco.

No período de 1905 a 1912, Villa-Lobos realizou suas famosas viagens pelo norte e nordeste do país. Ficou impressionado com os instrumentos musicais, as cantigas de roda e os repentistas. Suas experiências resultaram, mais tarde, em "O Guia Prático", uma coletânea de canções folclóricas destinadas à educação musical nas escolas.

Em 1915, Villa-Lobos realizou o primeiro concerto com suas composições. Nessa época, já havia composto suas primeiras peças para violão "Suíte Popular Brasileira", peças para música de câmara, sinfonias e os bailados "Amazonas" e "Uirapuru". A crítica considerava seus concertos modernos demais. Mas à medida que se apresentava no Rio e São Paulo, ganhava notoriedade.

Em 1919, apresentou-se em Buenos Aires, com o Quarteto de Cordas no 2. Na semana da Arte Moderna de 1922, o aceitou participar dos três espetáculos no Teatro Municpal de São Paulo, apresentando, entre outras obras, "Danças Características Africanas" e "Impressões da Vida Mundana".

Em 30 de junho de 1923, Villa-Lobos viajou para Paris financiado pelos amigos e pelos irmãos Guinle. Com o apoio do pianista Arthur Rubinstein e da soprano Vera Janacópulus, Villa-Lobos foi apresentado ao meio artístico parisiense e suas apresentações fizeram sucesso.

Retornou ao Brasil em final de 1924. Em 1927, voltou à Paris com sua esposa Lucília Guimarães, para fazer novos concertos e iniciar negociações com o editor Max Eschig. Três anos depois, voltou ao Brasil para realizar um concerto em São Paulo. Acabou por apresentar seu plano de Educação Musical à Secretaria de Educação do Estado de São Paulo.

Em 1931, o maestro organizou uma concentração orfeônica chamada "Exortação Cívica", com 12 mil vozes. Após dois anos assumiu a direção da Superintendência de Educação Musical e Artística. A partir de então, a maioria de suas composições se voltou para a educação musical. Em 1932, o presidente Vargas tornou obrigatório o ensino de canto nas escolas e criou o Curso de Pedagogia de Música e Canto. Em 1933, foi organizada a Orquestra Villa-Lobos.

Villa-Lobos apresentou seu plano educacional, em 1936, em Praga e depois em Berlim, Paris e Barcelona. Escreveu à sua esposa Lucília pedindo a separação, e assumiu seu romance com Arminda Neves de Almeida, que se tornou sua companheira. De volta ao Brasil, regeu a ópera "Colombo" no Centenário de Carlos Gomes e compôs o "Ciclo Brasileiro" e o "Descobrimento do Brasil" para o filme do mesmo nome produzido por Humberto Mauro, a pedido de Getúlio Vargas.

Em 1942, quando o maestro Leopold Stokowski e a The American Youth Orchestra foram designados pelo presidente Roosevelt para visitar o Brasil O maestro Stokowski realizou concertos no Rio de Janeiro e solicitou a Villa-Lobos que selecionasse os melhores músicos e sambistas, a fim de gravar a Coleção Brazilian Native Music. Villa-Lobos reuniu Pixinguinha, Donga, João da Baiana, Cartola e outros, que sob sua batuta realizaram apresentações e gravaram a coletânea de discos, pela Columbia Records.

Em 1944/45, Villa-Lobos viajou aos Estados Unidos para reger as orquestras de Boston e de Nova York, onde foi homenageado. Em 1945 fundou a Academia Brasileira de Música. Dois anos antes de sua morte, o maestro compôs "Floresta do Amazonas"para a trilha de um filme da Metro Goldwyn Mayer. Realizou concertos em Roma, Lisboa, Paris, Israel, além de marcar importante presença no cenário musical latino-americano.

Praticamente residindo nos EUA entre 1957 e 1959, Villa-Lobos retornou ao Brasil para as comemorações do aniversário do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Com a saúde abalada, foi internado para tratamento e veio a falecer em novembro de 1959.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

James Joyce na Cultura Popular

James Joyce, Samuel Beckett, George Bernard Shaw e Oscar Wilde no episódio "In the name of the grandfather", 
d'Os Simpsons (Foto: Reprodução)


*Por Jonathan Goldman, da Revista Cult
Traduzido por Fabio Akcelrud Durão

James Joyce era viciado em cultura popular. Seus escritos estão, desde o começo, repletos de referências a entretenimentos populares de sua época, bem exemplificados com as histórias de “faroeste” que inflamam a mente do narrador do segundo conto de Dublinenses, “Um Encontro”, publicado em 1916, mas escrito mais de uma década antes. Quando publica Ulysses e Finnegans Wake, referências recorrentes a revistas, quadrinhos, canções populares, programas de rádio, filmes, televisão, ficção e fotografia erótica etc. já se tornam norma.

E a cultura popular retornou o favor. No decorrer do último século, Joyce e sua obra foram apropriados por toda a gama de gêneros populares. Seus textos serviram de fonte para adaptações (por mais frouxas que fossem) no cinema, no rock, na opereta e nos romances gráficos, para não mencionar as versões literárias e teatrais que nos são mais familiares. A quantidade e variedade dessas adaptações atestam o calibre da realização literária e a estatura alcançada pelo conjunto de textos de Joyce, uma obra que fascina a tal ponto que deve ser continuamente relida e revisitada. Além disso, inúmeros textos populares invocam o ícone Joyce, seja usando seu nome ou imagem (adornado por chapéu, óculos e bigode). Tais referências, frequentemente encontradas nos lugares mais inesperados, apontam para o alcance cultural de sua reputação e a durabilidade de sua celebridade, questões relacionadas, mas bem distintas de seu legado literário.

Para colocar de outra maneira: James Joyce não apenas é reverenciado como um dos autores mais importantes do século 20, mas também aparece n’Os Simpsons, em animação, é claro, ao menos duas vezes. Um episódio mostra um carro alegórico dos “Romancistas Irlandeses Bêbados de Springfield”, com destaque para um personagem com cara de Joyce situado na frente, acenando para o público. Quando uma briga começa na multidão, ele pula para o meio da confusão. Vale notar que, na vida real, Joyce não era lá um grande lutador: na Paris dos anos 1920, circulava a história de que ele havia provocado um conflito e depois se escondido atrás de seu companheiro mais corpulento, exortando: “Pega ele, Hemingway!”. A falta de fidelidade à biografia de Joyce, no entanto, não vem ao caso. O fato de que n’Os Simpsons a imagem de Joyce era reconhecível tanto sublinha a permanência cultural do ícone, quanto sinaliza para as qualidades como que de culto entre seus fãs.

Esse também é o afeto do astuto tributo dedicado a Joyce pelos Pogues, uma banda anglo-irlandesa, cujo album If I Should Fall From Grace With God (1985) [Se Eu Perder a Graça com Deus] contém uma capa “alternativa” que mostra o rosto de cada um dos músicos superposto sobre uma fotografia icônica de Joyce (chapéu fedora, óculos escuros, mãos quase cruzadas). O original está no centro, exibindo uma banda de nove sósias de Joyce. O fato de que a imagem foi usada apenas para algumas edições especiais só enfatiza o caráter rarefeito do legado de Joyce. Cinquenta anos após sua morte, ele aparecia como um herói modernista para um disco pós-moderno e pós-colonial, em um LP digno de uma música irlandesa populista tornada cosmopolita e global.

Pedra de toque

Joyce morreu em 1941, e quase dez anos depois ele já era uma pedra de toque para a cultura popular. Pelo menos foi o que aconteceu no cinema, ao ser mencionado em duas produções auspiciosas. O Terceiro Homem, de Carol Reed (1949), contém uma cena na qual o protagonista Holly Martins, um autor de livros de faroeste (do tipo que atrairiam o protagonista de “Um Encontro”) é erroneamente tido por um escritor de alta literatura e obrigado a participar uma seção de perguntas e respostas com literatos de Viena. Um jovem austríaco coloca uma série de questões que culminam com: “Onde situaria o sr. James Joyce?”. Esse contraste entre a alta e a baixa cultura, sugerido pelo escritor de pulp fiction e o legendário modernista repete-se na referência ao autor em Sunset Boulevard (1951), dirigido por Billy Wilder. Lá, o protagonista, Joe Gillis, é um roteirista que, ao ser acusado de não escrever seriamente, pergunta se prefeririam James Joyce (ou Dostoiévski). Esses momentos cinematográficos aludem, na superfície, a um contraste entre Joyce como um avatar das esferas mais elevadas da cultura e formas de entretenimento popular nas quais ele é mencionado. Porém, a comparação não é tão simples assim. A autoconsciência sarcástica de tais cenas sugere uma relação mais próxima entre as noções de elite e de popular, um colapso das categorias de alto e baixo.

A complexidade continua em uma das imagens mais reproduzidas no universo joyceano: a fotografia tirada por Eve Arnold, em 1956, de Marilyn Monroe lendo Ulysses. O impacto previsto aqui depende da percepção de Monroe como uma vedete com cabeça de vento e a do romance como uma obra impenetrável. É claro, o primeiro impulso é perguntar se Monroe realmente leu o livro, algo ao qual Arnold se adiantou ao dizer que capturou a atriz em um momento de sincero relaxamento. Acima de tudo, a fotografia, que vem decorando livros de crítica joyceana ano após ano, mostra a cultura de Hollywood participando do status cultural rarefeito de Joyce.
Não foi muito depois dessas incursões cinematográficas que Joyce adentrou a música popular estadunidense, começando com o hit de Allan Sherman, “Camp Grenada” (1963), algumas vezes chamado de “Hello Muddah, Hello Faddah” [Oi mãe, Oi pai]. Uma paródia de cartas infantis escritas em colônias de férias, a canção menciona um treinador que “não quer maricas” [wants no sissies] e então lê Ulysses para os confusos meninos, aparentemente pensando que seu conteúdo sexual os tornará verdadeiros homens. 

Questões de cama também são abordadas em uma canção da banda californiana Jefferson Airplane, “rejoyce” (1968, minúscula intencional). Aqui, Grace Slick canta sobre os personagens Leopold e Molly Bloom, Buck Mulligan e Blazes Boylan: “Mulligan Stew for Bloom… Molly’s gone to Blazes… any woman whose husband sleeps with his head all buried down at the foot of the bed” [ensopado de Mulligan para Bloom... Molly foi para as chamas/Blazes... qualquer mulher cujo marido dorme com a cabeça toda enterrada no pé da cama]. A vida erótica dos Bloom continua a ser o foco na música popular e em “The Sensual World” (1989), Kate Bush inspira-se no monólogo interior de Molly Bloom, que conclui Ulysses. A canção começa com sinos de igreja como o pano de fundo sonoro para os devaneios noturnos de Molly. A versão original apropriou-se da linguagem do texto de Joyce e acabou tendo problemas legais com os herdeiros do escritor, que levaram a uma suspensão temporária e revisão. Depois de finalmente obter permissão, em 2011, Bush regravou a música como “Flower of the Mountain” (título tirado da autodescrição de Molly). Talvez não seja surpreendente que a música popular tenha centrado-se tanto no erotismo de Joyce – embora seja difícil imaginar tratamentos mais diversos do que os de Sherman, Bush e Jefferson Airplane.  A música pop e o rock mencionaram Joyce em outros casos, como em Lou Reed, Van Morrison e Black 47.

Como no exemplo do uso de Bush de Ulysses, a obra de Joyce tem sido adaptada repetidamente. O cinema foi particularmente ativo; embora Sergei Eisenstein houvesse considerado filmar Ulysses nos anos 1930, o primeiro projeto de levar Joyce para a tela foi uma versão de Finnegans Wake: o Passages from Finnegans Wake (1966), de Mary Bute. Adaptações posteriores incluem Ulysses (1967) e Um Retrato do Artista Quando Jovem (1977) (ambos dirigidos por Joseph Strick), Os Mortos (John Huston, 1987), baseado no conto de Dublinenses, e Bloom (Sean Walsh, 2003) – para citar apenas alguns. Outro gênero que se mostrou bem adequado para Joyce foi o romance gráfico. Em particular, Ulysses Seen, de Robert Berry, que tem aparecido online em partes desde 2009, traduz o método narrativo de Joyce em forma visual, usando esse meio para verter os monólogos interiores, por exemplo. A webpage de Ulysses Seen faz uso de tecnologia recente; ela inclui guias de leitura e um dispositivo de participação que constrói, por meio de ferramentas de chat e comentários, uma comunidade internacional baseada na internet. Com efeito, parece que é na world wide web que Joyce irá mais longe, em websites e mídias sociais – até que surja um novo formato, para adaptá-lo ainda mais uma vez.



*Jonathan Goldman é professor do New York Institute of Technology, autor de Modernism is the Literature of Celebrity.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Duas vidas - Godard e François Truffaut

Jean-Luc Godard e François Truffaut nos anos 60

Por Bruno Ghetti
Da Revista Trópico

O historiador e crítico francês Antoine de Baecque (1962) não era sequer nascido quando a França e o mundo foram tomados de assalto pelas inovações dos jovens cineastas da Nouvelle Vague. No entanto, ele é hoje uma das pessoas que mais estudaram, refletiram e escreveram sobre esse movimento cinematográfico, desencadeado em 1959, com o lançamento de “Os Incompreendidos”, de François Truffaut, e “Acossado”, de Godard.

Além de ter sido por três anos editor da revista "Cahiers du Cinéma", celeiro dos críticos-cineastas que fariam a revolução nouvelle-vaguiana no fim dos anos 50, De Baecque escreveu as principais biografias de Truffaut (1932-1984) e Godard (1930). É também autor de “La Nouvelle Vague – Portrait d’Une Jeunesse” (Retrato de uma Juventude, 1998), entre outros vários livros.

Para as duas biografias, De Baecque realizou uma meticulosa e obsessiva pesquisa documental, fazendo inúmeras entrevistas e consultando toda sorte de periódicos e um vasto conjunto de cartas pessoais.

Em 1996, o historiador lançou "François Truffaut - Uma Biografia" (Ed. Record), livro co-escrito com Serge Toubiana. Há alguns meses, publicou na França "Godard" (ed. Grasset, ainda não lançado no Brasil), um calhamaço de quase mil páginas sobre o diretor de “O Demônio das Onze Horas” (Pierrot Le Fou).

Entre uma e outra biografia, De Baecque escreveu o roteiro de "Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague", documentário de Emmanuel Laurent sobre o movimento, em cartaz em São Paulo.

“Truffaut sempre quis mostrar a sua vida para todos, no cinema, enquanto Godard sempre fez questão de esconder a sua”, diz De Baecque na entrevista a seguir, onde fala sobre o documentário, os diretores biografados e, evidentemente, sobre seu tema preferido: a Nouvelle Vague.

*

Truffaut e Godard foram cineastas e pessoas bastante diferentes entre si. O senhor vê pontos em comum na obra e na vida de ambos?

Antoine De Baecque: Eles fizeram filmes bem diferentes, mas acredito que suas obras se encontram em alguns pontos. E também possuem aspectos biográficos em comum. Os dois eram grandes amigos, se conheceram muito jovens e fizeram parte de um mesmo grupo que frequentava os cinemas e depois escrevia sobre os filmes. Esses jovens viviam em coletividade, criaram uma comunidade. Truffaut e Godard eram muitos próximos.

Truffaut era uma espécie de líder do grupo, embora fosse mais novo. Ao mesmo tempo, era muito atencioso e cuidou de associar Godard –e também Chabrol, Rivette e outros– à sua experiência cinéfila.

Penso que o que mais os aproxima é o fato de o cinema ter salvado a vida de ambos. Truffaut teve uma infância difícil, quase se tornou um delinquente. O cinema permitiu que ele ocupasse a sua vida, se encontrasse, se tornasse adulto com a ajuda dos filmes.

Para Godard, o cinema também foi uma salvação, embora ele fosse de família mais rica. A sua escolha do cinema foi algo consciente, um ato pensado de iconoclastia, de rompimento com sua cultura e os seus laços familiares.

Foi uma escolha existencial. Ele elegeu uma arte considerada menor e se dedicou ao cinema justamente por ele ser desprezado. A ambos, de maneiras distintas, o cinema permitiu que se tornassem adultos.

Os dois começaram a filmar na mesma época e se ajudaram muito no início da carreira. Truffaut deu dinheiro a Godard para fazer “Acossado”. Ambos realizavam filmes bem diferentes, mas tinham muita admiração pela obra um do outro, até meados dos anos 60.

Foi principalmente Truffaut que sempre deixou isso muito claro. Godard também tinha uma profunda afeição e muito interesse pelos filmes de Truffaut.


Terá sido por isso que Godard escolheu Jean-Pierre Léaud, ator que foi praticamente criado por Truffaut, para alguns de seus próprios filmes?

Sim. Acho que a escolha de Léaud foi uma maneira de homenagear Truffaut. Godard pegou emprestado um ator criado pelo amigo. Embora fizesse personagens bem diferentes com cada diretor, Léaud se tornou uma espécie de ser comum ou de criação comum de ambos.

Em 1958, Truffaut e Godard co-dirigiram um curta, “Une Histoire d’Eau” (Uma História da Água). Depois, em 1959, Truffaut contribuiu com o roteiro de “Acossado”. A partir do fim dos anos 60, eles seguiram caminhos bem distintos e chegaram a brigar. Qual dos dois, no seu modo de ver, manteve a trajetória mais coerente?

De Baecque: Truffaut, é inegável. Ele era um cineasta que até podia fazer um filme que negava o anterior, mas, ao mesmo tempo, cada um deles se unia ao que o antecedera. Juntos, todos constituem uma obra total.

O exemplo maior é a vida do personagem Antoine Doinel, que é mostrada numa série de filmes, desde a pré-adolescência até a idade adulta, sempre com muita coerência.

Truffaut também era muito coerente em suas declarações, na maneira de considerar sua vida e de vivê-la.

Godard, por sua vez, é um homem da ruptura. Entre 1967 e 1968, resolveu quebrar a imagem de principal vedete do cinema francês que exercera por toda a década de 60. Opta por se refugiar no anonimato, em sua militância política. Faz um exílio interior –rompendo com sua vida e seu cinema.

Também foi a partir daí que houve a ruptura entre os dois amigos. E foi por iniciativa de Godard que o rompimento aconteceu. Ele escreveu uma carta a Truffaut em 1973, repreendendo-o por não ter mudado com Maio de 1968 –afinal o mundo havia se transformado e, para Godard, não se poderia mais continuar vivendo e fazendo filmes da mesma maneira. A carta gerou um forte desentendimento, que fez os dois diretores romperem definitivamente.


Eles nunca mais se falaram?

Nunca mais. Nem se cumprimentaram. Houve até uma tentativa –oportunista, aliás-, da parte de Godard, em 1980, quando ele pensou num livro de entrevistas com ambos. Truffaut, porém, se recusou a participar e morreu sem voltar a falar com Godard.

A carta que Truffaut recebeu em 1973 foi muito dura, mas ele tratou de responder também com virulência. Em uma resposta de 20 páginas muito violenta, atacou Godard, acusando-o de vender a imagem de um homem que combatia grandes causas, mas era ao mesmo tempo extremamente egoísta e sempre tinha por único objetivo se auto-valorizar.

A visão de Godard traçada por Truffaut era forte, cruel e até caricatural, mas com alguns pontos bem justos. Estou certo de que Godard reconheceu muitas das acusações de Truffaut. A partir dali, ficaram estabelecidas duas maneiras muito distintas de considerar o cinema.


Na sua opinião, é possível dizer qual dos dois foi o mais importante para o cinema?

Para a história do cinema, foi Godard. Ele inventou um modo novo de fazer filmes e foi mais influente quanto à forma. Sua influência foi enorme, em todo o mundo.

Truffaut é também muito conhecido mundo afora, até por atingir mais intimamente o público. As pessoas se reconhecem em seu cinema autobiográfico, são tocadas pela verdade da palavra de Truffaut e sua generosidade. Eu diria que o cinema de Truffaut cria uma identificação mais forte, enquanto que o cinema de Godard exerce uma influência mais poderosa.


Os estilos dos diretores da Nouvelle Vague são bastante distintos. Há algum outro ponto em comum entre todos eles, fora serem "autores"?

Esse é o ponto que une todos os diretores da Nouvelle Vague. Eles são autores, a direção reflete a personalidade do cineasta, mesmo que eles contem histórias tão diferentes e de maneiras tão diversas. Eles chegam até mesmo a fazer cinemas opostos. Entretanto, sempre se vê nos filmes a personalidade do cineasta –eis o ponto comum aos diretores da Nouvelle Vague.


Por que Louis Malle _relevante diretor que começou a filmar na mesma época da Nouvelle Vague_ nunca foi incorporado oficialmente ao grupo? Teria sido por não o considerarem um “autor”?

É uma explicação. Seus filmes, de certa maneira, dão a impressão de que poderiam ter sido feitos por outros diretores -embora alguns sejam bem pessoais.

Malle teve também um itinerário biográfico distinto, com períodos de vida e de cinema muito contrastantes. Não é possível notar um fio condutor em sua obra, perceber a presença, a personalidade de Malle. Ele gostava, por exemplo, de confrontar seu cinema com o cinema americano, o indiano, com o documentário...


Os jovens cineastas da Nouvelle Vague idolatravam diretores americanos ou que filmavam nos EUA, como Alfred Hitchcock. Porém, Hitchcock fazia filmes muito diferentes dos realizados por eles: só filmava em estúdios, com estrelas famosas, sem improvisos e com pouca liberdade de movimentos de câmera. Não é um paradoxal esse apreço por Hitchcock?

Acho que isso pode ser explicado pelo contexto dos anos 50, quando Hitchcock foi descoberto na França. Para os jovens críticos e diretores da época, ele era um contra-exemplo muito forte do chamado “cinéma de qualité” (cinema de qualidade), realizado na França de então.

De certa maneira, eles consagraram Hitchcock como o primeiro autor, como se fosse o pai daquela geração. Notaram a mão autoral de Hitchcock na direção de seus filmes, o que foi uma percepção formidável!

A direção, a forma, eis o que conta em Hitchcock –ainda que os personagens sejam interpretados por estrelas, que sejam filmes de estúdio. Um olhar apenas basta para saber que se trata de um filme de Hitchcock. São obras muito pessoais, como as de Nicholas Ray, Samuel Fuller e outros autores americanos da época.

Os jovens franceses viram essa forma de liberdade suprema que é a liberdade da forma. Esse apreço por Hitchcock foi um escândalo, pois, nos anos 50, gostar de seus filmes era motivo de piada, raiva, incompreensão. Ele não era considerado um artista, mas um “money maker” (fazedor de dinheiro).

Na verdade, penso que os jovens cineastas inventaram um pouco Hitchcock como autor. Por vezes, o que dizem sobre ele é verdade –percebe-se isso na tela; por vezes, parece mais uma estratégia para permitir que se tornem eles mesmos.


Você escreveu as biografias de Truffaut e Godard. Qual das duas vidas lhe pareceu mais interessante?

O roteiro de “Truffaut, Godard e a Nouvelle Vague” foi feito entre as duas biografias, quando eu passava de uma personalidade para a outra, de um grupo de arquivos para o outro.

A vida de ambos é interessante. A de Godard é mais diversa, mais rica, pela maneira como ele fez seu cinema, pela forma como ele lidou com a política, a sociedade, a publicidade e o amor. A vida de Truffaut foi mais regrada, sempre muito centrada sobre seu próprio cinema.


E, além disso, Truffaut morreu jovem...

Sim, tem isso também. Ele morreu aos 52, e Godard continua vivendo quase 30 depois, com muito mais experiências. São duas vidas apaixonantes, mas diferentes, sem a mesma intensidade. E o mais curioso: Truffaut sempre quis mostrar a sua vida para todos, no cinema, enquanto Godard sempre fez questão de esconder a sua.


Qual é o melhor e qual é o pior filme de cada um deles?

Para mim, o melhor filme de Truffaut é “Duas Inglesas e o Amor” (1972) e o pior é “A História de Adèle H.” (1976). Quanto a Godard, para mim seu filme mais bonito é “O Demônio das Onze Horas” (1965) e o pior é... (pausa). Ah sim... (risos) É “Cuide da Sua Direita” (1987), um filme que não vale a pena ver.


O que você acha dos filmes recentes de Godard? Viu “Film Socialisme”?


Sim, vi “Film Socialisme” no Festival de Cannes. É seu ultimo filme, seu testamento. É, às vezes, impressionante; outras vezes, é sombrio. Mas achei muito tocante. Godard tenta fazer coisas que ele fazia antes, mas as realiza, sobretudo no meio do filme, com uma forma cinematográfica mais lenta, mais suave, como se quisesse parar o mundo de hoje.

O filme emociona por sua riqueza, por estar muito dentro do mundo atual, no começo e no fim. E, de repente, no meio do filme, tudo muda. É apaixonante, mesmo que seja pouco visto –há 20 anos os filmes de Godard praticamente não são mais vistos.

Os três filmes dos anos 2000 dirigidos por ele ("Elogio ao Amor, de 2001; "Nossa Música", de 2004; e "Film Socialisme", de 2010) são bem diferentes uns dos outros. Ele volta a colocar o risco no seu cinema. Muitas coisas sumiram –eles ficaram bem menos engraçados que antes. Mas jamais perderam a contemporaneidade. Godard segue com raízes nos anos 60, mas extremamente atual.