sexta-feira, 9 de outubro de 2015

A crueldade sádica e o medo de ser ridículo


Nelson Ascher
Da equipe de articulistas
Do Mais!


Certo historiador, cujo nome não vem ao caso, conta nas memórias que, entre seus amigos, havia um mais velho, poeta de talento e algum renome, e um outro, novato no mesmo mister. Quando o novato mostrou seus versos ao primeiro, este pediu-lhe, por favor, que nunca mais voltasse a escrever poesia. Em vez de se ofender, o jovem não só acatou o conselho como, mudando de ramo, tornou-se romancista de sucesso. Cabe observar que no país centro-europeu onde isso ocorreu nos anos 30, Thomas Mann era, de longe, o narrador vivo mais lido e estimado pela intelectualidade liberal. E um dos primeiros temas do romancista alemão foi o risco que o quase-artista, o amador e o diletante corriam: o de cair no ridículo.

Bastante explorado mais tarde, o tema do ridículo já surge, cristalino e inescapável, em dois contos escritos em 1896-97, ou seja, quando o autor tinha apenas 21-22 anos: "O Pequeno Senhor Friedmann" (título também de sua coletânea de estréia) e "O Diletante" (como é chamado na tradução brasileira; o original significa antes "palhaço").

O senhor Friedmann em questão é pequeno porque um acidente, provocado na infância pelo alcoolismo de sua babá, tornara-o anão e corcunda. Apesar da deformidade, ele cresce amando a existência e suas coisas boas: pelo menos aquelas a que tem acesso. Obviamente excluído do comércio erótico-amoroso, programa-se em uma vida de deleites puramente estéticos, sobretudo de música. Até se apaixonar por uma mulher.

O palhaço da história seguinte não carrega qualquer deformação física. Oriundo de uma rica família que, embora falida, legara-lhe alguns recursos, pode se dar ao luxo de não pertencer à sociedade, não ter emprego nem outra ocupação a não ser a de apreciar artes, sobretudo a música. É verdade que não sabe de fato tocar piano, mas diverte-se algumas horas por dia improvisando para si mesmo ao teclado. Até claro, não tanto se apaixonar, mas simplesmente descobrir que sua posição – ou melhor, falta de – tornou-lhe inacessível uma mulher pela qual poderia se interessar.

Ao deixar de lado sua autodesprogramação amorosa, Friedmann é rudemente rejeitado, com um safanão, pela amada que nem sequer deixa de escarnecer de sua condição impossível. Ao "palhaço", quando de seu esboço de aproximação, basta-lhe a suspeita de um entreolhar irônico entre a amada presuntiva e o noivo desta para que tudo se configure. O senhor Friedmann – a cena ocorrera num Jardim – arrasta-se até um córrego onde, num acesso derradeiro de ódio a si mesmo, deixa-se afogar.

O outro conto termina com o protagonista constatando que não conseguirá levar a cabo nem mesmo suas ânsias suicidas. Ambos os personagens, cuja trajetória Mann traça desde o começo, têm cerca de 30 anos de idade. Ambos são também pessoas excluídas, por alguma razão, do mundo dito normal. Não é tanto a exclusão, porém, que fascina o autor quanto o fato de que a ela se vincula à apreciação artística.

Adorno – que assessoraria musicalmente o criador de "Doutor Fausto" – observou, num ensaio, a crescente dissociação entre a música erudita europeia e um público cada vez menos capaz de compreender formas elaboradas que, todavia, continuava apreciando. Na música – que requer, de quem a compõe, a fluência numa linguagem complexa, e, de quem a executa, o domínio de uma técnica difícil – essa dissociação se evidencia com mais obviedade do que nas outras artes; por exemplo, a da prosa.

Seria desta arte, a sua, que Mann, encarnando talvez seus personagens, falava? A abordagem psicobiográfica não goza hoje em dia de grande prestígio, mas a quantidade de material autobiográfico nessas histórias, principalmente em "O Diletante", fala por si mesma. Antes de aparecerem os grupos de teatro experimental nos colégios progressistas, alguém só era artista na medida em que conseguisse demonstrá-lo no seu trabalho. Algo que, antes do surgimento das terapias não-ortodoxas, gerava infelizmente certa ansiedade. Não ser mais do que parte do público e ainda assim se julgar artista: isso podia ser punido com ridículo.

Não que este seja o único tema. A erupção do erótico como desestruturador de disciplina estética – tópico central de "Morte em Veneza" – mostra-se nessas narrativas com todos os contornos. O que ressalva, no entanto, é seu caráter distinto de exorcismo. Na crueldade sádica com que trata os fracassados, o escritor parece retratar o castigo que ardentemente deseja não vir a merecer. Honestamente, ele demarcou a idade de 30 anos como a data limite na qual seu sucesso ou fracasso estaria inapelavelmente decidido. Em julho de 1990, Mann enviou o manuscrito completo de "Os Buddenbrooks" ao seu editor. Tinha, então, 25 anos.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Simetria e estética no pensamento científico

Por Marcelo Gleiser
Da Ilustríssima

RESUMO Lançado recentemente nos Estados Unidos, novo livro de Frank Wilczek faz uma ode à beleza do mundo natural por intermédio da mente e da lógica de um físico teórico. Na obra, dedicada ao público não especializado, o Nobel de Física de 2004 vê a beleza como expressão de simetria, e a simetria, como verdade.

*

Quando lemos livros sobre ciência para o público não especializado, nos deparamos com uma curiosa divisão dentre autores, dependendo de como escrevem as palavras universo e natureza: enquanto alguns (eu incluído) preferem usar iniciais maiúsculas (Universo e Natureza), outros optam por minúsculas. Volta e meia, tenho que convencer meus editores sobre as nobres razões de minha escolha.

Em julho, foi lançado nos EUA o novo livro do prêmio Nobel de física Frank Wilczek, um dos grandes nomes da ciência mundial. (No Brasil, por enquanto disponível apenas na versão em inglês.) Fiquei feliz ao ver que Wilczek também opta pelas maiúsculas. Lendo A Beautiful Question: Finding Nature's Deep Design (uma bela questão: buscando pelo código profundo da natureza) *[Penguin, 400 págs., R$ 142,60 na Livraria Cultura]*, a razão para a escolha de Wilczek fica clara: o livro, extremamente acessível e inspirador, manifesta a veneração, quase sagrada, que o autor tem pela Natureza.

É uma ode à beleza do mundo natural vista através da ótica matemática dum físico teórico. Para Wilczek beleza é uma expressão de simetria; e simetria, de verdade: uma opção estética ganha valor moral. Nisso, ele se alinha com toda uma visão platônica da ciência, segundo a qual os segredos mais profundos da Natureza são um código matemático, decifrável pela mente humana.

Com frequência, a linguagem de Wilczek é lírica, quase mística: Mudança Sem Mudança: Que mantra estranho, não humano, para a alma da criação!

Para ele, o objetivo da física é revelar a alma da criação. Uma Bela Questão é uma peregrinação pela história da ciência, celebrando em particular a eficácia da matemática como portal para a descoberta da verdade - verdade aqui significando uma descrição precisa dos fenômenos naturais, das partículas subatômicas ao cosmo como um todo:

Nossa questão nos convida a descobrir a beleza na raiz das coisas. Para sermos capazes de respondê-la, temos que trabalhar de dois modos. Devemos tanto expandir nosso senso de beleza quanto nossa compreensão da realidade. Isso porque a beleza que encontramos no mundo natural é tão estranha quanto sua estranheza é bela.

SINFONIA

Esse é o canto das sereias, que aqui nos convida a mergulhar em busca do misterioso código natural, o canto que seduziu Pitágoras, Platão, Kepler, Newton, Maxwell, Einstein e muitas das mentes mais brilhantes da história. Tudo é Número, ouvimos, os segredos da Natureza são um enigma matemático cuja chave é a simetria. Compreender o mundo é ler a mente do Artesão, a divindade que, segundo Platão, arquitetou o cosmo, e que Wilczek usa metaforicamente como a encarnação duma espécie de inteligência que existe na Natureza. Para obtermos uma Teoria de Tudo, apanhado dos detalhes físicos da criação, temos que seguir a sinfonia da simetria.

A questão é de grande importância, e não apenas para cientistas ou filósofos. Ao desvendar o código da criação, transcendemos nossa essência humana, estabelecendo uma conexão com uma dimensão além do tempo. Interessante que é essa, também, a dimensão da experiência religiosa, ao menos segundo a definição do psicólogo William James: uma conexão espiritual com o cosmo. Existem muitos caminhos que levam ao conhecimento do mundo e de nós mesmos, e as artes e as disciplinas humanas têm um papel complementar ao da ciência. Todos são tentativas de compreensão da dimensão humana.

Um aspecto importante na posição de Wilczek e que deveria servir de exemplo para todos cientistas é que ele nunca abandona a franqueza: Nem todas as ideias sobre a natureza da realidade que consideramos belas são verdadeiras...e nem todas as verdades sobre a natureza da realidade são belas. Bom manter a humildade perante o pouco que sabemos, mesmo quando julgamos uma ideia bela demais para estar errada.

Wilczek é um dos poucos físicos vivos cujo trabalho tem, hoje, um status icônico entre seus colegas. Em sua pesquisa, faz uso frequente da simetria, da busca por padrões ordenados em diversos aspectos da Natureza, do subatômico ao cósmico. Nos seus textos para o público não especializado, encontramos metáforas que ilustram também seu modo de pensar: Átomos são instrumentos, seus sons revelados na luz que emitem.

SONHO 

Platônico devoto, como muitos físicos e matemáticos, Wilczek usa a simetria como musa. Porém, ao contrário dos ortodoxos incapazes de autocrítica, o faz de forma lúcida, elogiando aqueles cuja fé não é simplesmente passiva, mas engajada com a realidade. Wilczek sonha de olhos abertos.

O livro é um manifesto apaixonado, uma meditação na qual a busca pela unificação das forças da Natureza - o grande troféu dos platônicos inspirados por uma curiosa união entre o reducionismo científico e um monoteísmo milenar - só será alcançada quando for encontrada a simetria-mãe, que se esconde, sorrateira, sob o véu da realidade que percebemos.

Nenhum físico competente questionaria o papel absolutamente essencial da simetria na construção de teorias que visam descrever quantitativamente os fenômenos naturais. O que permanece em aberto é até onde essa busca pode nos levar. A unificação das leis da Natureza através da simetria é um devaneio platônico ou um objetivo científico concreto?

Não é claro se é a Natureza ou a mente humana que usa a simetria como tijolo fundamental. Não há dúvida de que a simetria é uma ferramenta extremamente útil, que nos permitiu e permite descobrir incontáveis aspectos da realidade física. Dado esse sucesso, a tentação de levar essa estratégia ao extremo é compreensível.

Como escreve Wilczek, o Real tem implica no Ideal e vice-versa: a realidade é expressão da simetria pura. Mesmo que a física subatômica não seja tão bela como esperamos, vemos a realidade distorcida porque usamos os óculos errados: nas energias que podemos estudar hoje, a matéria expressa a simetria de forma imperfeita.

Existe, no entanto, um outro ponto de vista, que afirma que a realidade física é o que é, expressa da forma que a matéria a manifesta. Nesse caso, o Real precede o Ideal, e simetria é uma forma de quantificar parcialmente o que vemos. Se existem assimetrias, se a Natureza é ligeiramente imperfeita, é porque a realidade física pouco se importa com a noção de perfeição. Perfeição é uma expectativa humana, apenas isso. A simetria é uma excelente aproximação, mas não expressa a realidade física mais essencial.

Da mesma forma que podemos, como Wilczek, construir argumentos explorando a eficácia da simetria, podemos argumentar que são as assimetrias e imperfeições que revelam a essência da Natureza, como fiz em Criação Imperfeita: assimetrias na quantidade de matéria e antimatéria no Universo; assimetrias na formulação do Modelo Padrão das partículas elementares, que descreve como interagem através de três forças fundamentais; assimetrias na estrutura das proteínas dos seres vivos; nas formas das nuvens, das árvores, dos rostos humanos.

Imagine se Marilyn Monroe tivesse duas pintas no rosto, exatamente equidistantes de seu nariz? Essa Marilyn simétrica seria horrenda, não? A assimetria também pode ser bela; tudo depende de como definimos beleza, de como incorporamos a estética do imperfeito em nossa visão de mundo. A questão de Wilczek e dos platônicos continua sendo bela, mesmo que a resposta seja a imperfeição.

Podemos argumentar que o poder da matemática vem justamente de sua desconexão com a realidade, já que é uma idealização, uma aproximação das coisas que existem. Para encontrar soluções simétricas nas equações da física, temos que fazer aproximações, muitas vezes descartando certos termos, ou descontando pequenas imperfeições. Segundo esse prisma, a simetria é uma redução da realidade, e não a sua essência.

Isso não significa que devamos abandonar a simetria como ferramenta de exploração da Natureza. Devemos, no entanto, tratar a simetria e a assimetria como aspectos complementares da realidade física. É da tensão criativa entre a simetria e a assimetria que emergem muitas das estruturas que vemos no mundo. Metaforicamente, podemos dizer que as duas são o yin e o yang da criação.

Discuti essas ideias com o próprio Wilczek algumas vezes, em conferências e seminários. Imagino que ele concordaria comigo que uma Marilyn simétrica seria grotesca. Porém não tenho certeza que ele concorde com a importância da estética do imperfeito. Felizmente, a disputa pode ser resolvida, ao menos em princípio.

Nos próximos anos, experimentos no Grande Colisor de Hádrons (LHC), a máquina no Laboratório Europeu de Pesquisa Nuclear (CERN) que descobriu o famoso bóson de Higgs em julho de 2012, poderão (ou não) revelar a presença de partículas supersimétricas, componentes essenciais da construção simétrica que Wilczek e outros defendem como a essência da Natureza.

A tensão e a expectativa dos cientistas são palpáveis. Décadas de trabalho, carreiras inteiras dependem dos resultados. Em jogo estão duas visões estéticas antagônicas, dois modos de se pensar sobre o mundo que vêm definindo a história da filosofia por milênios.

No final, quem decide é a Natureza - ou ao menos o que podemos ver dela.


MARCELO GLEISER, 56, professor titular de física, astronomia e filosofia natural no Dartmouth College, nos EUA, é autor de A Ilha do Conhecimento (Record).



quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Sedutores em série: Beauvoir, Sartre e Camus



Por Christiano Galvão
Do Blog Miméticos

Não será novidade para muita gente que Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir, dois dos nomes mais notáveis da filosofia do século XX, compuseram um modelo alternativo de vida conjugal, tido como moderno, que se distinguia pela renúncia do casamento formal em favor de uma devoção erótica recíproca, porém aberta, que não lhes tolhia a liberdade de manter relacionamentos paralelos. Para eles, mais do que um pacto de amor, isso seria uma tentativa de derrubar a hipocrisia do velho modelo de matrimônio que, por tanto tempo, havia padronizado e sufocado a maioria dos relacionamentos afetivos.

Porém, o cotejo de duas recentes biografias de Sartre parece evidenciar que esse pacto de amor, provavelmente, foi uma moderníssima mentira romântica, que ocultava uma insidiosa dinâmica mimética. A primeira dessas biografias, intitulada “Uma Relação Perigosa”, de Carole Seymour-Jones (Record, 2014), apresenta esta dupla, presumidamente desprendida, ora como sedutores em série empenhados na mútua gratificação, ora como um casal que se valia da crítica filosófica para justificar a necessidade de múltiplos amantes — cuja maioria eram adolescentes que saíam arrasados dessas experiências. Guardadas as devidas proporções, eles estariam vivenciando o mesmo concurso de sedução mimética do Visconde de Valmont e da Marquesa de Merteuil, os famigerados anti-heróis de Choderlos de Laclos.

Se, em seus romances, ensaios e pronunciamentos, Simone de Beauvoir pregava o ideal de emancipação feminista, rechaçando conceitos “burgueses” como casamento e família, sua correspondência íntima revela uma mulher amarga, infeliz e obsessivamente enciumada pelas inúmeras conquistas do quase cônjuge. Sua retórica inovadora é incapaz de ocultar o sentimento de revanche, e por vezes de frustração, com que ela entrava e saía desses casos — e cuja expectativa ansiosa era provocar o retorno imediato de Sartre. A dupla mediação dos desejos que vigorava entre ambos fica manifesta no acordo tácito pelo qual Simone só encaminhava para Sartre as jovens amantes com as quais ela própria já tinha se deitado e “aprovado”.

A biografia, contudo, demonstra que quase sempre Sartre estava um passo à frente dela — muito embora no princípio não tivesse sido assim. E é a partir desse princípio que a pesquisa de Seymour-Jones nos permite vislumbrar as raízes da rivalidade mimética que simultaneamente os atraía e afastava. O duplo vínculo teria surgido em 1929 quando os dois prestaram exames na Sorbonne. Sartre, que até então era só um burguesinho provinciano, atarracado e estrábico, transformou-se num ímã de mulheres após os resultados brilhantes que lhe valeram o primeiro lugar. E Simone, que ficou com o segundo lugar, notabilizou-se como uma das primeiras mulheres a ingressar naquela universidade. Consta que, quando eles foram apresentados, Sartre teria feito questão de ressaltar que ela era mais inteligente do que qualquer homem; e logo em seguida teria lhe proposto casamento. Simone declinou, não por razões filosóficas, mas porque já estava tendo um caso com um dos melhores amigos dele. Era o dia 1 de outubro de 1929. Foi então que Sartre lhe propôs o pacto: eles viveriam um “amor em essência”, mantendo um relacionamento não exclusivo, mas inclusivo, no qual teriam a liberdade de buscar e ocasionalmente até de partilhar romances. Havia, porém, uma condição: eles deveriam manter tudo às claras; aliás, deveriam descrever um para o outro, nos detalhes mais íntimos, cada uma dessas experiências.

Era o início do casamento aberto e da correspondência que testemunharia sua realidade. Durante os primeiros anos, Sartre entrou no jogo com entusiasmo, até porque gostava de iniciar virgens. Todavia, rápida e inesperadamente ele perdeu o interesse, deixando a fogosa Simone, que já dispunha de um gineceu de alunas, profundamente decepcionada. Algumas cartas desse período escancaram o quanto o interesse dele condicionava os desejos dela e, sobretudo, como ambos rapidamente encontraram neste “pacto de amor” as mesmas amarguras e frustrações do casamento convencional.

Não obstante, mesmo durante a ocupação nazista que os afastou temporária e geograficamente (ou talvez em função disso), a emulação sexual deu continuidade ao pacto. Simone continuou a seduzir rapazes e, sobretudo, moças, escrevendo relatos de suas atividades (tão excitantes quanto insensivelmente cínicos), que eram remetidos para Sartre, atrás da linha de Maginot. Ela conta das muitas alunas-amantes que disputavam sua atenção de forma doentia, chegando a citar uma que se automutilava e outra que cometeu suicídio. As outras são pateticamente descritas como meninas dependentes de uma professora sem filhas, e que ela, talvez com ligeira perversidade, mimava como filhinhas. Contudo, seria uma destas filhinhas que haveria de abalar profundamente aquele pacto de amor, fazendo com que sua recorrente estrutura triangular se convertesse num polígono.

Tudo aconteceu quando Sartre sofreu um pequeno colapso por causa do uso de alucinógenos, e Simone pediu a uma de suas mais novas alunas-amante que lhe servisse de enfermeira. Mal sabia ela que esta moça seria pivô de outro concurso de sedução que envolveria sua irmã e o romancista Albert Camus, e deixaria Simone num de estado de ciúme incapacitante. Este caso é mais bem esclarecido pela segunda biografia, intitulada The Boxer and the Goalkeeper: Sartre vs Camus, de Andy Martin (Simon & Schuter, 2013), ainda sem tradução em português. Lê-se nela como Sartre tentou resgatar seu apetite de mulherengo desenfreado por meio da amizade com o escritor do momento — o moreno, alto, bonito e sensual argelino Albert Camus, que logo aderiu aos jogos sexuais do casal filosófico. Camus foi para cama com muitas das meninas enviadas por Simone, exceto com a própria Simone, a quem ele desdenhava como “uma tagarela, pedante e insuportável!…”. Simone obviamente detestava Camus, e não escondeu a apreensão de que fatalmente ele pudesse acabar com a brincadeira, tornando-se um rival perigoso não somente para si, mas para o próprio Sartre.

E assim sucedeu. Em termos quase girardianos, a pesquisa biográfica de Andy Martin sugere que Sartre só veio a sentir atração pela enfermeira enviada por Simone porque Camus sentiu isso antes. O nome dela era Wanda Kosakiewicz. Durante anos, Sartre tinha sido obcecado pela irmã mais velha de Wanda, a atriz Olga Kosakiewicz, uma das poucas amantes de Simone que o desdenhara. Nem mesmo dando-lhe papéis em suas peças Sartre conseguiu levar Olga para a cama. Ela era o objeto inatingível de seus desejos, o “significante transcendental”, como seu amigo Jacques Lacan, teria dito. O caso com a irmã Wanda tampouco foi bem-sucedido, porém por razões inversas. Ele desprezava a menina e chegou a dizer-lhe que ela tinha “as faculdades mentais de uma libélula”. Modesta, Wanda acatou o insulto como uma crítica; disse que não pretendia ser uma filósofa como Simone, mas sim uma atriz como sua irmã Olga, e admitiu que talvez não tivesse nenhuma aptidão para o sexo.

Sartre se ofereceu para educá-la!… Mas só depois de dois anos, num hotel em Aigues-Mortes, sul da França, ele conseguiu a “desvirginação” — expressão que consta na carta que foi enviada para “cher Beaver” (Beauvoir), e na qual ele diz o quanto lhe foi odiosa aquela experiência. Mas no mesmo tom de divertimento cínico de sua quase cônjuge, ele diz também como ludibriou a menina confessando-se perdidamente apaixonado e dando-lhe papéis em suas peças.

Essa situação iria mudar drasticamente quando, em 1943, Sartre convidou Camus para assistir o ensaio da peça ainda inédita Huis Clos (Entre Quatro Paredes), que aconteceria no apartamento de Simone. Foi lá que Camus conheceu Wanda, foi lá que se interessou por ela, e foi então que sobreveio a mudança na conduta de Sartre. Numa carta datada do final daquele ano, Sartre escreve para “cher Beaver” dizendo: “O que Wanda acha que está fazendo, correndo atrás de Camus? O que ela quer dele? Eu não sou muito melhor? E tão mais gentil para com ela. Ela deve tomar cuidado.” Mas Camus talvez já tivesse captado a complexidade daquela circunstância, visto que, posteriormente, ele escreveria, em La mort heureuse: “É por isso que, apesar de tudo, é bom ter tido um grande amor, uma paixão infeliz na vida. Isso constitui pelo menos um álibi para o desespero sem razão que, invariavelmente, se apodera de nós…”. O biógrafo Andy Martin diz que a disputa foi tão intensa quanto tempestuosa. E, inopinadamente, Wanda conseguiu emular Simone obtendo seu próprio mégane-à-trois com dois filósofos célebres. O casal existencialista jamais perdoaria Camus por tamanha desfeita.

Com efeito, a ruptura da amizade, que já havia azedado, deu-se definitivamente com a publicação em 1951 da obra-prima filosófica de Camus, L’Homme revolté, (O Homem Revoltado), e a crítica devastadora que Sartre dedicou-lhe no ano seguinte. Martin deduz dos argumentos deste romance um reflexo quase fidedigno da rivalidade latente entre os dois homens, e então abafada nos debates públicos. A interpretação de Martin se baseia no fato de que, dentre todos os pensadores referidos por Camus neste livro, Sartre figura como o ilustre ausente. É como se ele tivesse se tornado naquele que não podia ser nominado. Forte indício de um ressentimento recíproco.

Esse ressentimento se fez muito óbvio quando ambos ganharam o prêmio Nobel. Sartre quase surtou, em 1957, com a notícia de que Camus havia recebido este prêmio, consagrando-se como o contemplado mais jovem da história do Nobel. Anos mais tarde, em 1964, quando foi a vez de Sartre ser contemplado, ele prontamente recusou a homenagem alegando que isto faria dele uma figura do establishment e imporia limites à sua mente inquiridora!… Esta discutível declaração, tanto quanto a recusa, talvez, tenha sido a melhor vingança pelo ultraje de haverem premiado Camus antes dele.

Cumpria-se assim a previsão de Simone de Beauvoir, que nesse meio tempo, atordoada por não encontrar espaço nas disputas entre os dois, havia se autoexilado nos Estados Unidos, onde foi viver com Nelson Algren, um amante americano. Ela tinha 39 anos, há meses que não saía com ninguém, e agora, pela primeira vez em sua vida, conseguia ter orgasmos completos. Antes de deixar a América, Nelson Algren lhe comprou um anel de prata barato que Simone iria usar pelo resto de sua vida. A relação entre os dois não durou porque Algren não estava disposto a entrar no jogo da filósofa e ter de partilhá-la com Sartre, ou com quem quer que fosse. E mesmo dizendo em algumas cartas que desejava Algren apaixonadamente, ela não conseguia ficar longe do comparte Jean-Paul Sartre, cuja presença, mas do que qualquer orgasmo, dava sentido e plenitude à sua existência. Com efeito, na carta de despedida para Nelson Algren ela escreveu: “Eu sou muito gananciosa. Eu quero tudo da vida, eu quero ser uma mulher e ser um homem”. E voltou à França.

Reunido, o casal buscou novos amantes e novas frentes de militância política. No entanto, a relação jamais lhe traria qualquer satisfação, visto que entre eles havia se instalado um tédio horrível. Por muitos anos Sartre susteve-se à custa de anfetaminas, café preto e cigarros, seguidos de soníferos e vinho tinto. Depressa ele se tornou incontinente, reumático e cego. Na iminência de sua morte em 1980, Sartre começou a flertar com o judaísmo, deixando Simone estarrecida – pois Deus seria um rival ainda mais perturbador do que Albert Camus.

Sartre, porém, morreu antes disso. As biografias relatam como Simone foi deixada sozinha com o corpo dele no hospital, e como se esgueirou sob o lençol para passar uma última noite ao seu lado. Parecia que, findas as possibilidades de emulação, ela o tinha definitivamente onde o queria. E foi assim que ela escreveu para ambos um epitáfio irônico, niilista, mas com certo tom de queixume: “Sua morte nos separou, e a minha morte não nos reunirá”. Hoje eles dividem a mesma sepultura.

Dizem que Simone de Beauvoir conseguiu encontrar seu próprio caminho. Mas em seu íntimo ela sabia que isso só foi possível porque tinha conseguido sobreviver à emulação com Sartre, com Camus e todos demais. Como ela mesma diria num dos seus últimos textos: “O tempo é irrealizável. Provisoriamente o tempo parou para mim. Provisoriamente. Mas eu não ignoro as ameaças que o futuro encerra. Como não ignoro que é o meu passado que define minha abertura para o futuro. O meu passado é a referência que me projeta e que eu devo ultrapassar. Portanto, ao meu passado eu devo o meu saber e a minha ignorância, as minhas necessidades, as minhas relações, a minha cultura e o meu corpo. Que espaço o meu passado deixa para minha liberdade hoje? Não sou mais escrava dele… Não desejo nada mais do que viver sem tempos mortos.”

Simone de Beauvoir morreu de pneumonia em 1986. Talvez houvesse nessas palavras o prenúncio daquilo que René Girard definiu como uma conversão romanesca.


quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Beleza hedionda


Augusto dos Anjos por Ramon Muniz


Por Wagner Shadeck
Ilustração de  Ramon Muniz
Do Jornal Rascunho


Uma das poesias mais singulares da literatura brasileira é a de Augusto dos Anjos (1884-1914). A fortuna crítica sempre esteve em contradição entre a que escola o poeta paraibano pertence. Alguns advogaram que ele deveria ser parnasiano, devido ao gosto pelo soneto. Outros viam algo em sua temática mórbida um segmento romântico. Alguns o associaram ao simbolismo, devido à musicalidade de seus versos. E houve ainda outros que lhe viam as confluências típicas na época intermediária entre o início do século 20 até a Semana de arte moderna, de 1922, enquadrando-o no chamado pré-modernismo. Portanto, é como se na poesia de Augusto dos Anjos estivessem todas elas, mas ela não participasse de todas. Seria realmente um caso de poesia teratológica?

Como dizia Silveira Bueno (1898-1989), trata-se, sem dúvida, de uma poesia de monstros, mas também de uma poesia monstruosa. Neste sentido, não se pode idealizar o monstro; embora ingente, tampouco devemos temê-lo. É preciso contemplar-lhe o conjunto, não tentando domesticá-lo, nem exorcizá-lo. Quando olharmos para ele com olhar isento, veremos que é possível traçar-lhe uma genealogia aproximativa, o mais coerente possível.

Um dos que melhor soube compreender a poesia de Augusto dos Anjos foi Hermes Fontes (1888-1930). Para ele o livro de Augusto “é a dolorosa viagem através de sua personalidade”. Mas foi Gilberto Freyre (1900-1987) quem primeiro notou em sua poesia algo de expressionista, destacando o poeta como pensador. E em relação a isso, lamentava: “Pensar no Brasil é uma espécie de pecado intelectual”. Em famoso ensaio, A costela de prata de Augusto dos Anjos, o crítico alemão Anatol Rosenfeld (1912-1973) também aproxima a poética de Augusto dos Anjos ao expressionismo, particularmente à poesia de Gottfried Benn (1886-1956). Façamos uma comparação tendo como exemplo um poema do expressionista alemão.

Requiem

Auf jedem Tische zwei. Männer und Weiber
kreuzweis. Nah, nackt, und dennoch ohne Qual.
Den Schädel auf. Die Brust entzwei. Die Leiber
gebären nun ihr allerletztes Mal.
Jeder drei Näpfe voll: von Hirn bis Hoden.
Und Gottes Tempel und des Teufels Stall
nun Brust an Brust auf eines Kübels Boden
begrinsen Golgatha und Sündenfall.
Der Rest in Särge. Lauter Neugeburten:
Mannsbeine, Kinderbrust und Haar vom Weib.
Ich sah von zweien, die dereinst sich hurten,
lag es da, wie aus einem Mutterleib.

Réquiem

Mesa pra dois. Mulher e homem cingidos.
Enviesados, nus. Mas sem tormento.
Cabeça aberta. Mas peitos partidos.
Do ventre o derradeiro nascimento.
Três compotas: de cérebros a escrotos.
Templo de Deus e Fábrica do Diabo
Cara a cara ora escarneciam rotos
Do Gólgota e da Queda num lavabo.
O espólio encaixotado. Renasceram
Recortes de homem, bustos infantis
E coroas, das que já se venderam,
Como oriundos de uma única matriz.

[Tradução: Wagner Schadeck]

Podemos notar a sintaxe incisiva característica do poeta e médico. Os versos são abruptamente cortados. E embora se trate de línguas de sintaxe distintas, na medida do possível, os períodos curtos foram preservados na tradução, o que causa uma sensação semelhante a uma incisão cirúrgica. Todo o poema parece se desenvolver de modo a frustrar a expectativa do leitor. Mas essa quebra não causa humor, antes horroriza, espanta. Todas as estrofes apresentam alguma imagem cotidiana: o encontro, o jantar e a mudança. Por meio de comparações, as expressões ambíguas nos revelam o hediondo: o encontro amoroso entre cadáveres numa mesa de autópsia, os órgãos expostos como iguarias e os caixões com corpos esquartejados.

Concentração de elementos

Por outro lado, ainda que minuciosa e clínica, a poesia de Augusto dos Anjos não apresenta esse mesmo recurso sintático, nem privilegia as ambiguidades que quebram a expectativa para horrorizar. A sintaxe de Augusto dos Anjos privilegia o preenchimento estrófico e a concentração de elementos. Porém, em ambos os poetas há semelhanças: um eu-lírico clínico (Benn era médico; Augusto se dizia o doutor tristeza e o poeta da morte), um gosto pelo inusitado, o uso de um vocabulário vasto (de jargões científicos e metafísicos a expressões populares) e o pessimismo em relação à natureza humana. Embora médico, Benn não se coloca como agente da cura, mas como agente da morte, em Augusto dos Anjos, além de cantar “a poesia de tudo o quanto é morto”, o erotismo é uma mera necessidade biológica. Por exemplo nos poemas A fome e o amor, Versos de amor e Idealismo.

O amor da Humanidade é uma mentira.

Entretanto, é pouquíssimo provável que o poeta paraibano tenha lido poetas alemães como Benn, Heym e Trakl. E embora dedique um soneto ao pensamento de Nietzsche, o filósofo niilista que defendia o renascimento de um novo homem[1], algo que aparece no final do longo poema Os doentes, Augusto dos Anjos não pertenceu à escola expressionista. Por outro lado, dadas as semelhanças, é possível que exista algo em comum entre o estilo do poeta paraibano e os expressionistas. Classificando-o como simbolista de vertente expressionista, o poeta e organizador de sua obra completa, Alexei Bueno ainda o aproxima de Cesário Verde e Baudelaire. O que nos leva a pensar que existe uma poética anterior a quaisquer movimentos, semelhante a esses poetas. E então o que seria próprio desse estilo? Qual são suas características? Seria um gosto pelo insólito? Seria a temática mórbida? Ou estaria na forma concentrada e em rimas inusitadas? Já vimos que em comparação com Benn as semelhanças são menos formais do que essenciais. Portanto, comparemos essas duas outras poéticas sugeridas pelo poeta carioca.

A composição estrófica de Augusto dos Anjos é muito parecida com a do poeta português Cesário Verde (1855-1886). Durante a construção poética é como se cada estrofe fosse meditada antes da escrita, privilegiando rimas inusitadas e o fecho do pensamento, como blocos compactos de conceito, imagem e som. No entanto, enquanto a dinâmica de Cesário Verde é um passeio pelo presente, a de Augusto dos Anjos é quase sempre noctívaga. Vejamos como ambos tratam de um tema como a prostituição.

E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.
Livro de Cesário Verde: Sentimento de um ocidental – II. Gás.
Talvez tivésseis fome, e as mãos, embalde,
Estendeste ao mundo, até que, à toa,
Fostes vender a virginal coroa
Ao primeiro bandido do arrabalde.

Augusto dos Anjos. Eu: Os doentes

Tecnicamente próximos, em outros momentos, os poetas ainda mostram uma visão da cidade vista de passagem. Esse sentimento do flâneur é anterior a ambos. Além dessa técnica, em comum com Charles Baudelaire (1821–1867), é evidente também o gosto pelo bizarro, pelo inusitado e pelo grotesco, a assimilação de conceitos distantes, quando não antagônicos (como beleza e fealdade), em suma, como em Benn, a presença da beleza hedionda. O melhor exemplo dessa associação entre o belo e o bizarro seria o poema Uma carniça, de Baudelaire. Entretanto, o hediondo é um elemento que aparece em vários momentos da história da literatura ocidental, do pé pustulento de Filoctetes, de Sófocles (496 a.C.?-406 a.C.), à lepra que carcome Jó, do Velho Testamento, passando pelas lendas medievais, como a do Coração comido, retomada por Dante Alighieri (1265-1321), no primeiro soneto do livro Vida nova, ou ainda em vários episódios da Divina comédia (A tragédia de Ugolino, por ex., Canto XXXIII, do Inferno), ou mesmo a necrofilia de Noches lúgubres (1775), do espanhol José Cadalso, chegando à poética psicológica da beleza mórbida, efetivada por Edgar Allan Poe (1809-1849). A pletora de referências também faz parte desse estilo. É por isso que, nesse sentido, o hediondo é uma herança da tradição, sem a qual nem Baudelaire e nem Augusto dos Anjos poderiam desenvolver suas poesias.

No poema já citado, Uma carniça, por exemplo, Baudelaire utiliza amplamente os recursos da língua francesa para associar o belo ao bizarro. No primeiro verso do poema, mantendo a distância pelo tratamento, o poeta relaciona o vocativo “minha alma” com “carniça infame”, e também na paisagem da “bela manhã de estio” apresentar o “leito semeado de pedras”, como uma alcova eroticamente semeada de pétalas de rosas, onde, em vez de uma “lúbrica mulher”, abrindo as pernas, há uma carniça. Trata-se de uma dessacralização do erotismo parecida com aquela que será promovida por Benn e Augusto dos Anjos.

Linguagem variadíssima

Na poesia de Augusto dos Anjos também há essa associação de elementos distantes, uma pletora de referências, um vocabulário que vai do prosaísmo reles até à metafísica, etc. Mas como a língua portuguesa não dispõe dos mesmos recursos da francesa, o poeta paraibano recorre amiúde a uma linguagem variadíssima. Então, além de terminologia científica, ele costuma também recorrer a arcaísmos, como o do galego-português “alcouces” (prostíbulos), associados com termos corriqueiros, como “doces”, ou ainda conceitos teológico como “místicos”, com o usual “característicos”, etc.

Em certa medida uma crítica desfavorável como a de Medeiros e Albuquerque (1867-1934) pôde nos mostrar algo sobre esse estilo que os outros não viram. Criticando-lhe rigorosamente a terminologia científica, Medeiros e Albuquerque dizia que Augusto dos Anjos tem “a rima rebuscada de (por exemplo) ‘acode-a’ com ‘prosódia’”, e “tem em muitos lugares rimas desse modo estranhas”. Depois de destacar dois quartetos e um terceto — talvez inconscientemente tenha-lhe notado que, por meio do mecanismo das rimas interpoladas, o poeta encontre preferencialmente os contrastes conceituais entre o segundo e o terceiro verso e, mesmo nos tercetos, que em geral formam um bloco em sextilha dupla, resolva os contrastes conceituais, fechando o poema na famosa chave de ouro —, o crítico acrescenta um comentário importantíssimo: “Esta procura de rimas estranhas tem sido feita sobretudo em versos humorísticos…”

De fato, em geral, o inusitado e o insólito são causa de humor. Albuquerque notou no estilo de Augusto um recurso humorístico, mas que não era utilizado para causar o riso. Como vimos, é o mesmo recurso que causa o humor negro, na poesia de Benn. O que Albuquerque não aponta é que esses recursos de rimas insólitas e inusitadas são uma constante em poetas como Baudelaire, Cesário Verde, Gottfried Benn e Augusto dos Anjos. Elas causam o efeito do novo, do inesperado, do horror.

Todas as divindades malfazejas,
Silva e Arimã, os duendes, o Yn e os trasgos,
Imitando o barulho dos engasgos,
Davam pancadas no adro das igrejas.

As Cismas do Destino

Mas ao contrário da quebra de expectativa comum em peças humorísticas, ao misturar conteúdos diversos, o sublime e o reles, apontando para a miséria humana, esse efeito nos espanta. Na quadra supracitada, por exemplo, as palavras pouco usuais são colocadas em lugares estratégicos, em geral na posição de rimas, como “malfazejas” (rima A) e “trasgos” (rima B). O andamento decassílabo faz com que a expectativa de conclusão cíclica da rima seja prolongada. O sentido só se fecha previamente com “engasgos” (rima B), fazendo com que a conclusão da quadra recaia num substantivo comum, “igrejas” (rima A). Internamente, as aliterações sonorizam a cena: “barulho”, “pancadas” e “adro” reproduzem essa algazarra funesta, graças aos encontros consonantais em “b”, “r”, “lh”, “p”, “c”, d”, e também a sibilante “s”. É a sonoplastia das entidades demoníacas, atacando uma igreja. Mas esses recursos técnicos são muito diferentes do preciosismo parnasiano. Convém lembrar a admoestação que Manuel Bandeira (1886-1968) dirigia aos parnasianos brasileiros, mostrando que existe uma sensibilidade diferente entre o francês e o português. A busca pela rima rica ou rara era antes um defeito em muitos parnasianos porque: “A rima rica francesa não implica o sacrifício da simplicidade vocabular: ela se pode obter com palavras de uso comum. A rima rara portuguesa é quase sempre um desastre”.

Ao contrário de parnasianos que privilegiavam as descrições estáticas (ecfrasis), lançando mão de rimas raras e de conceitos próximos, de uma temática anedótica e erótica, em Augusto dos Anjos os conceitos são distantes, de temática filosófica e pessimista e o rimário busca rimas inusitadas.
Discípulo de Baudelaire, o poeta e pianista francês Maurice Rollinat (1846-1903) também desenvolveu o estilo de poesia hedionda. Embora hoje esteja um tanto esquecido, em seu tempo o autor de As neuroses (1883) foi muito apreciado. Em poemas como Les Magasin des Suicides (Loja dos suicidas) já aparece uma terminologia que lembra a do poeta paraibano. “Noz-vômica” e “horóscopo” são termos já usados pelo poeta francês, além de uma espécie de uma poética de autoanálise. Anterior ao Surrealismo, em Rollinat o eu-lírico se coloca no divã da poesia para confessar as perturbações de sua psique, algo que lembra bastante o famoso soneto Psicologia de um vencido, de Augusto dos Anjos. Outro exemplo é o longo poema narrativo, L’Enterré vif (O enterrado vivo, parafraseado por Raimundo Correia). Trata-se da história fantástica de um caixão, do velório ao sepultamento. O mesmo tema é sintetizado por Augusto dos Anjos, num soneto como O caixão fantástico:

Célere ia o caixão, e, nele, inclusas,
Cinzas, caixas cranianas, cartilagens
Oriundas, como os sonhos dos selvagens,
De aberratórias abstrações abstrusas!
Nesse caixão iam talvez as Musas,
Talvez meu Pai! Hoffmânnicas visagens
Enchiam meu encéfalo de imagens
As mais contraditórias e confusas!
A energia monística do Mundo,
À meia-noite, penetrava fundo
No meu fenomenal cérebro cheio…
Era tarde! Fazia muito frio.
Na rua apenas o caixão sombrio
Ia continuando o seu passeio!


Qual outro poeta brasileiro usaria aliterações em “C”? Ao contrário do poema de Rollinat, ou de um poema como Momento num café, por Manuel Bandeira, neste soneto aparece alegoricamente o cortejo do caixão da humanidade. Além disso, longe da poética parnasiana, as rimas inusitadas de Augusto dos Anjos têm o efeito esteticamente mais próximo da poética inglesa. O gosto inglês prefere rimas inusitadas e insólitas que surjam com certa naturalidade, mas que espantem o leitor. Influenciado por Poe, Baudelaire e Rollinat usaram este efeito em francês. Em português, por conseguinte, o inusitado por um dos efeitos mais explorados por Cesário Verde e Augusto dos Anjos. E embora o poeta paraibano use assonâncias e aliterações, como outros poetas brasileiros, por exemplo Cruz e Sousa e Raimundo Correia, é o efeito inusitado que o diferencia de todos; é esse efeito, em suma, o que Victor Hugo sentiu na poesia de Baudelaire, aquele frisson nouveau.

Não haver terapêutica que arranque
Tanta opressão como se, com efeito,
Lhe houvessem sacudido sobre o peito
A máquina pneumática de Bianchi!

Os doentes

A rima interpolada entre o verbo “arrancar” e o nome do inventor “Bianchi” é um ótimo exemplo de inusitado. Ao contrário do rigor mortis parnasiano, movimentada pelo verbo “sacudir” no centro da quadra, a própria metáfora da opressão do peito é insólita. Outro aspecto singular da poética hedionda de Augusto dos Anjos é o uso de um verso bárbaro. Como dizia Gilberto Freyre: “Em muitos de seus versos a aspereza de sons não é evitada nem mesmo disfarçada, mas procurada”.

Além do uso de sinérese, aglutinado até três vogais, da construção de versos ricos em aliterações (bem mais do que um Cruz e Sousa, geralmente associado ao gosto por esse efeito) e assonâncias, como bem lembra Alexei Bueno, Augusto dos Anjos também lança mão de neologismos, como “ruído-clarão” (Numa forja), e mesmo parece optar por um verso, ao um só tempo, concentrado e volumoso, optando por palavras com choques consonantais, como em “abrupto”, ou ainda justapostas, como “ultrafatalidade”. Desta forma, embora mesmo na ortografia etimológica as consoantes mudas não fossem lidas, é incrível o impacto visual da união de um radical grego com uma palavra hebraica, como em “pseudo-psalmo” (Os doentes). Foi o que levou Rosenfeld a afirmar: “Da mesma forma como as palavras, o mundo de Augusto dos Anjos é, por assim dizer, na sua essência, proparoxítono, esdrúxulo, dissonante”.

No mundo do Eu, letra e espírito são um só. Daí reaparecerem nele temas oriundos do barroco e pré-romantismo algo-saxão, como o Vanitas e as meditações no cemitério, o Memento Mori, acrescidos de outros conceitos, como o Nirvana budista e o Agnus Dei Qui tollis peccata mundi cristão, em seu desejo de ser sacrificado pela humanidade sofredora. Esses temas, no entanto, são absorvidos pelo pensamento de Augusto, e o Eu representa uma espécie de suma.

Desta forma, tal como Shakespeare, misturando o cômico com o trágico, embora utilize o inusitado provindo da poesia humorística, no poeta paraibano o sublime encontra o reles, os conceitos universais da metafísica são aclimatados à realidade, o ufanismo científico é testado com a inevitável morte individual e solitária, a religiosidade cristã é experimentada na fé que nasce do absurdo e da precariedade do mundo e, despida do ideal romântico da bondade, a natureza é nefasta e o amor, carência e fome. Constituindo, portanto, uma unidade, dos elementos estilísticos ao conjunto, a bela e hedionda poesia do Eu de Augusto dos Anjos está, sem dúvida, ao lado de grandes obras da literatura universal.

[1] Otto Maria Carpeaux identificou nisso a essência do expressionismo. Cf. CARPEAUX, Otto Maria. História Concisa da Literatura Alemã. Faro Editorial, 2013

*Possui especialização em Desenvolvimento editorial pela PUC-PR. É poeta, tradutor e editor.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

A perspectiva da dor em Jean Cocteau


Por Régis Bonvicino
Da Ilustríssima

É um livro indispensável este A Dificuldade de Ser [trad. Wellington Júnio Costa, Autêntica, 208 págs., R$ 47], de Jean Cocteau (1889-1963).

Trata-se, de fato, de uma arte poética a partir do relato de 50 anos da vida do autor, desde a infância até o momento da finalização do texto, durante a Segunda Guerra a obra foi editada na França em 1947.

Ao mesmo tempo, o livro possui um caráter de testemunho ativo, às vezes crítico, de um dos períodos mais ricos da cena europeia, então marcada pelos movimentos cubista, surrealista e construtivista.

Há, ainda, na obra, um viés de depoimento acerca de seus personagens maiores: o compositor Erik Satie (um dos mestres de Cocteau), Picasso, o poeta Guillaume Apollinaire, o bailarino e coreógrafo russo Nijinski, Charles Chaplin, o dramaturgo Jean Genet, entre tantos outros.

Cocteau, que começou a escrever aos dez anos e publicou seu primeiro volume de poemas, La Lampe d'Aladin (a lâmpada de Aladim) aos 19, foi, em essência, um poeta que escreveu romances, peças de teatro e crítica literária.

Foi igualmente um artista plástico inspirado, deixando sua marca em capelas de pescadores então abandonadas da Provence e da Côte d'Azur ali viciou-se em ópio, o que o levou a várias internações.

Seu talento múltiplo, no entanto, não se diluiu em nenhuma das atividades; antes somou-se. Como ele mesmo define: Explorei tantos caminhos para que minha semente se espalhasse por toda parte. Eu conheço mal o sopro que me habita, mas ele não é suave.

Aqui quero chamar a atenção para duas faces de sua obra: a de cineasta e a de dramaturgo.

Em 1917, Cocteau escreveu para Serguei Diaguilev, fundador da companhia Les Ballets Russes em Paris, o libreto de Parade. O balé tinha cenário de Picasso e música de Satie. Apollinaire, comentando o espetáculo, o definiu como surrealista, palavra que seria, pouco depois, apropriada por André Breton e se tornaria todo um movimento, sob o qual Cocteau foi então classificado.

Considerado introdutor do surrealismo no cinema nascente, Cocteau assina três filmes que costumam figurar nas listas dos cem melhores (para alguns críticos, dos dez melhores) de todos os tempos: Sangue de um Poeta (1930), A Bela e a Fera (1946) e Orfeu (1950).

Cocteau anota que Sangue de um Poeta emprega o mecanismo do sonhar sem dormir um meio de arrebentar o realismo industrial da vida. Denunciar a artificialidade da realidade, aliás, era uma característica do esteticismo do artista francês, segundo Eduardo Peñuela Cañizal (1933-2014) o professor espanhol, um dos fundadores da ECA-USP, teceu tal observação ao analisar a influência de Cocteau sobre Pedro Almodóvar.

No teatro, fez de seu A Voz Humana (1930) um marco.

Neste monólogo, temos apenas uma solitária atriz que fala ao telefone; em termos formais é de um minimalismo expressivo ímpar.

Na estreia, a atriz Berthe Bovy representava a mulher apaixonada por um homem, que, ao que tudo indica, a deixa por outra. Seu único meio de comunicação com o amado em fuga, na tentativa de persuadi-lo a voltar ou algo assim, é o aparelho, no qual fala por uma hora, duração do texto. A ligação é algumas vezes interrompida por ruídos e desespero.

O monólogo foi adaptado por Roberto Rossellini para um segmento de L'Amore, de 1948, com Anna Magnani. A obra de Cocteau reverbera, desse modo, também em um dos mais importantes movimentos do cinema posterior a ele o neorrealismo italiano, dos quais, ao lado de Rossellini, foram protagonistas Visconti e De Sica. É considerado um precursor da nouvelle vague, que renovou o cinema francês a partir de 1958.

Neste momento, no qual a arte e a reflexão se rendem às facilidades do estar, evocar a obra duradoura de Jean Cocteau, é interessante trazer à tona o trecho do livro no qual esse artista múltiplo explica seu título.

Numa clínica, Cocteau ouviu outro paciente, indagado pelo médico sobre seu estado, responder: Eu sinto uma dificuldade de ser.

Então, o autor de A Voz Humana, entrando na conversa, disse: Senhor Fontenelle, a sua é de última hora. A minha é desde sempre. E assim recoloca a arte em sua perspectiva real: a do sofrimento, a do difícil, distante do glamour vazio dos dias atuais.


Régis Bonvicino, 60, é poeta, autor de Estado Crítico (Hedra) e Até Agora (Imesp), e diretor da revista eletrônica Sibila.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

A bruxaria literária de Clarice Lispector

Retrato da escritora Clarice Lispector

Por Benjamin Moser
Tradução de Paulo Migliacci
Da Ilustríssima
RESUMO O americano biógrafo de Clarice Lispector (1920-77) reuniu, pela primeira vez, todos os contos da escritora no livro The Complete Stories (New Directions). Abaixo, um trecho do ensaio de introdução ao volume, recentemente lançado nos Estados Unidos e ainda sem previsão de ser publicado no Brasil.

*

Renuncias ao glamour do mal, pergunta-se durante a missa de Páscoa nos países anglófonos, e recusas ser dominado pelo pecado?. A questão preserva uma ligação, hoje rara, entre glamour e feitiçaria; o glamour era uma qualidade que confundia, alterava formas, investia a coisa de uma aura misteriosa; nas palavras de sir Walter Scott, tratava-se do poder mágico de afetar a visão dos espectadores, de modo que a aparência de um objeto se torne totalmente diferente da realidade.

A lendariamente bela Clarice Lispector, alta e loira, adereçada com os vistosos óculos escuros e as joias volumosas que caracterizavam uma grande dame do Rio de Janeiro na metade do século 20, correspondia à definição atual de glamour. Ela foi jornalista de moda por anos, e sabia como se vestir para o papel, mas é no sentido mais antigo da palavra que Clarice Lispector é glamourosa: como lançadora de feitiços, literalmente encantadora, seu nervoso fantasma assombrando todos os ramos da arte brasileira.

Seu feitiço só fez crescer desde sua morte. Então, em 1977, teria parecido exagero afirmar que ela era a escritora moderna proeminente de seu país. Hoje, quando a afirmação já não seria exagerada, questões de importância artística são, em alguma medida, irrelevantes. O que importa é o amor magnético que ela inspira naqueles que são suscetíveis a sentir o seu apelo. Para eles, Clarice é uma das grandes experiências emocionais de suas vidas. Mas seu glamour é perigoso. Cuidado com a Clarice, disse um amigo a um leitor décadas atrás. Não é literatura, é bruxaria.

A conexão entre literatura e bruxaria tem sido há muito tempo parte importante da mitologia de Clarice Lispector. Essa mitologia, com um poderoso empurrão da internet, desenvolveu ramificações tão barrocas que hoje poderia ser definida como um ramo menor da literatura brasileira. Circula incansavelmente on-line toda uma obra fantasma, em geral profunda e respirando paixão. On-line, igualmente, Clarice adquiriu um corpo paralelo póstumo, já que fotos de atrizes que a retrataram são constantemente reproduzidas no lugar da original.

Mesmo que a tecnologia tenha mudado suas formas, a mitificação em si nada tem de novo. Clarice Lispector se tornou famosa ao publicar Perto do Coração Selvagem, no final de 1943. Ela havia acabado de completar 23 anos, uma estudante obscura de origem imigrante pobre; seu primeiro romance teve tão grande impacto que um jornalista escreveu: Não temos registro de uma estreia mais sensacional, que tenha elevado a tão grande destaque um nome que, até pouco antes, era completamente desconhecido. Mas apenas algumas semanas depois desse nome começar a ser conhecido, sua portadora partiu do Rio de Janeiro.

Lendas

Por quase duas décadas, ela e o marido, diplomata, viveram no exterior. Ainda que visitasse seu país regularmente, não voltou em definitivo até 1959. Nesse meio tempo, as lendas floresceram. Seu estranho nome estrangeiro se tornou tema de especulação um crítico imaginou que pudesse ser pseudônimo e outros imaginavam se ela não seria, na verdade, um homem.

Somadas, essas lendas refletem uma inquietação, um sentimento de que ela era algo diferente do que parecia: que a aparência de um objeto seja totalmente diferente da realidade.

A palavra aparência precisa ser enfatizada. Uma bela esposa de diplomata, aparentemente um pilar nada ameaçador da burguesia brasileira, produziu uma série de escritos em linguagem tão exótica que, nas palavras de um poeta, a estranheza de sua prosa se tornou um dos fatos mais esmagadores... na história de nossa língua. Havia algo nela que não era o que parecia, uma estranheza muitas vezes registrada por aqueles que encontram sua escrita pela primeira vez. Mas isso raramente foi articulado tão bem quanto no final de sua vida, no meio da ditadura militar, quando ela se viu sujeita a uma rigorosa verificação, e revista física, no aeroporto de Brasília.

Tenho cara de subversiva?, ela perguntou à segurança. A mulher riu, e depois deu a única resposta possível: Até que tem.

Um velho dicionário escocês aponta que glamour é uma referência metafórica à fascinação feminina. E é uma curiosidade etimológica que a palavra derive de grammar (gramática). Na Idade Média, esta última palavra descrevia qualquer erudição, mas particularmente o saber oculto: a capacidade de encantar, de revelar objetos e vidas como totalmente diferente da realidade da aparência externa. Para uma escritora, especialmente uma escritora renomada por revelar as realidades ocultas das vidas visíveis por meio de uma sintaxe deslizante, mutável, a associação é irresistível, e ajuda a explicar a fascinação feminina que Clarice Lispector exerceu por tanto tempo.

Nos 85 contos deste livro, Clarice Lispector conjura, acima de tudo, a escritora. Da promessa adolescente à maturidade confiante, e à implosão de uma artista quando se aproxima da morte e a invoca, descobrimos a figura, maior que a soma de suas obras individuais, amada no Brasil. Falar de João Guimarães Rosa é falar de Grande Sertão: Veredas. Falar de Machado de Assis é, da mesma forma, falar de seus livros, e, só depois,do homem notável por trás deles. Mas falar de Clarice Lispector é falar de Clarice, o prenome pelo qual ela é universalmente conhecida: da mulher em si. De seu primeiro conto, publicado aos 19 anos, ao último, encontrado em fragmentos dispersos depois de sua morte, acompanhamos uma vida de experimentação artística por uma vasta gama de estilos e experiências.

Essa literatura não é para todo mundo: até mesmo alguns brasileiros altamente letrados se sentem perplexos diante do fervor intenso que ela desperta. Mas para aqueles que a compreendem instintivamente, o amor pela pessoa de Clarice Lispector é imediato e inexplicável. Sua arte nos faz desejar conhecer a mulher; e ela é uma mulher que nos faz desejar conhecer sua arte. Este livro oferece uma visão de ambas as coisas: um retrato inesquecível, na e por meio da arte daquela grande figura, em sua grande e trágica majestade.

Todos juntos

Boa parte deste livro não tem precedentes. Pela primeira vez em qualquer idioma incluindo o português todos os contos de Clarice estão reunidos em um só volume, entre os quais o primeiro Cartas a Hermengardo, que descobri em um arquivo. Essa obra incomum oferece novas provas da importância do Spinoza que ela leu quando estudante, uma influência que ecoaria por toda a sua vida.

Por mais empolgantes que esses marcos bibliográficos sejam para o pesquisador ou biógrafo, algo de muito mais surpreendente aparece quando essas histórias são por fim vistas por inteiro. Trata-se de um feito de cuja importância histórica a autora não podia estar consciente, pois só retrospectivamente ele seria capaz de surgir. E sua força seria consideravelmente diminuída se fosse uma expressão ideológica em lugar de uma derivação natural das experiências da autora.

Esse feito jaz na segunda mulher que ela conjura. Se Clarice Lispector era uma grande artista, era também uma mulher casada e mãe de classe média. Se o retrato da artista extraordinária é fascinante, o mesmo vale para o retrato da dona de casa comum cuja vida é o tema deste livro. À medida que a artista amadurece, a dona de casa, igualmente, envelhece.

Quando Clarice é uma adolescente desafiadora, tomada pelo senso de seu próprio potencial artístico, intelectual, sexual, o mesmo vale para as meninas de suas histórias. Quando, em sua própria vida, o casamento e a maternidade tomam o lugar da infância precoce, seus personagens também amadurecem. Quando seu casamento fracassa, quando seus filhos partem, essas partidas aparecem em seus contos. Quando Clarice, no passado tão gloriosamente bela, vê seu corpo sujo de gordura e rugas, suas protagonistas veem o mesmo declínio; e quando ela confronta a decadência final da idade, doença e morte, elas estão ao seu lado.

Temos aqui um registro de toda a vida da mulher, escrito ao longo de toda a vida da mulher. E, nesse aspecto, ele parece ser o primeiro registro tão completo escrito em qualquer país. Essa afirmação abrangente requer ressalvas. A vida de uma mulher casada e mãe; a vida de uma mulher ocidental, burguesa e heterossexual. Uma mulher não interrompida: uma mulher que não começou a escrever tarde, ou parou ao se casar e ter filhos, ou sucumbiu às drogas e ao suicídio. Uma mulher que, como muitos escritores homens, começou na adolescência e continuou a escrever até o fim. Uma mulher que, em termos demográficos, era exatamente como a maioria de seus leitores.

A história deles foi escrita apenas em parte. Antes de Clarice, uma mulher que escrevesse ao longo de sua vida e sobre sua vida era rara a ponto de ser inédita. A afirmação parece extravagante, mas não identifiquei quaisquer predecessoras.


Benjamin Moser, 38, escritor e tradutor americano, é autor de Clarice, (Cosac Naify).

Paulo Migliacci, 47, é tradutor.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

A filosofia tem algum problema com as mulheres?

A filósofa, teóloga e poeta Marguerite Porete



Por Julian Baggini e Mary Warnock

Tradução de Clara Allain
Do Guardian


Mary Warnock, filósofa e escritora

A pergunta é debatida por mulheres e homens do campo da filosofia há anos e na semana passada foi o tema de capa do Times Literary Supplement. De todos os departamentos de ciências humanas de universidades britânicas, apenas os departamentos de filosofia não têm mais de 25% de seus membros que sejam mulheres. Qual é a razão disso? Como esse desequilíbrio pode ser corrigido? De maneira geral, sou muito contrária a qualquer intervenção, por cotas ou outra, para aumentar as chances de mulheres serem empregadas em qualquer campo que seja, e não há nada de intrinsecamente negativo nesse desequilíbrio. Não acredito de maneira alguma que ele revele um viés consciente contra as mulheres. Tampouco pode ser explicado pela suposição de que, pelo fato de a filosofia dizer respeito principalmente a argumentos, as mulheres sejam naturalmente menos hábeis nesse campo.

Pode haver algumas mulheres que pensam mais emocional que racionalmente, mas, como bem sabemos, há alguns homens que também o fazem. Tampouco penso que as mulheres rejeitem a ideia da filosofia por seu estilo supostamente adversativo, sua orientação em torno da discussão, em vez de buscar a verdade ou o consenso. Pois não acredito que esse estilo, quando adotado em disputas acadêmicas, seja próprio apenas da filosofia. Não -penso que a filosofia acadêmica tornou-se uma disciplina extraordinariamente voltada para seu próprio umbigo, que se dedica não a expor e examinar as implicações de como pensamos o mundo, mas, em vez disso, a expor deficiências nos argumentos de outros filósofos. Em qualquer periódico profissional hoje lemos pouco que não sejam respostas que se dedicam a procurar defeitos pequenos nos argumentos de outros filósofos. As mulheres tendem a entediar-se com isso mais facilmente que os homens. A filosofia parece deixar de ser interessante justamente quando ela se profissionaliza.

Julian Baggini, filósofo e escritor

Concordo que há pouca ou nenhuma discriminação consciente contra as mulheres na filosofia. Mas isso não quer dizer que não exista um grande viés inconsciente. O que não sabemos é por que esse viés seria mais forte na filosofia que em outras disciplinas. Penso que a resposta possa ser encontrada na autoimagem da filosofia. Os filósofos tendem a ter uma visão inflada de sua capacidade de seguir a discussão para onde quer que ela os leve, como diz a velha máxima de Platão. O que importa é a discussão, não aquele que discute, o que significa que não há necessidade de sequer pensar em gênero ou etnia. Assim, os filósofos sempre se sentiram imunes aos efeitos deturpadores do viés de gênero. A lógica é indiferente ao gênero, a filosofia é lógica; logo, a filosofia é indiferente ao gênero. Desconfio que isso tenha levado à complacência, ao desconhecimento de todas as maneiras pelas quais o viés de gênero realmente penetra. É uma constatação amplamente fundamentada da psicologia que considerar-se um juiz objetivo da realidade torna seus julgamentos menos objetivos, e tenho certeza que a filosofia sofre disso. Reconheço que esta explicação pelo menos parcial do fato de as mulheres serem sub-representadas na filosofia é um tanto especulativa, mas estou interessado em saber o que você pensa dela.

MW - Não aceito que todo nosso pensamento seja permeado pela questão do gênero e que, por isso, deixamos de ter consciência de nosso viés. Penso que um dos grandes méritos da filosofia acadêmica é que seus tópicos centrais são tão indiferentes ao gênero quanto os da física, matemática ou linguística. Mas concordo que as mulheres podem ter esperanças diferentes quanto aos resultados do estudo desses tópicos e que, de modo geral, elas tendem menos que os homens a seguir a discussão onde quer que ela as leve, mas que mudam a direção se ela conduz ao absurdo ou ao paradoxo. Essa é outra maneira de dizer que as mulheres são mais constritas que os homens pelos ditames do bom senso. E isso condiz com, ou faz parte de, o desejo de que a filosofia seja inteligível pelos não filósofos, se eles se dispõem a pensar sobre ela. É claro que este desejo não é exclusivo das mulheres (como mostram seus próprios escritos). A aversão a abrir mão do bom senso pode parecer uma super simplificação, embora possa ser mais bem descrita como aversão à escolástica. Em entrevistas para empregos, isso pode levar as mulheres a parecer mais pragmáticas que brilhantes, o que pode prejudicar suas chances de êxito.

JB - É possível que as mulheres tendam a ter prioridades intelectuais diferentes das dos homens. Mas, como não sabemos até que ponto estas são culturais ou biológicas, não devemos presumir que quaisquer diferenças desse tipo sejam fixas. O que é mais importante é que isso seria razão ainda maior para tentarmos levar mais mulheres a cargos seniores na filosofia, já que não existe razão para supor que as prioridades tradicionais sejam superiores. É importante distinguir a ideia de que todas as ideias filosóficas são permeadas pelo gênero, que ambos rejeitamos, da ideia de que os vieses de gênero afetam os modos de pensar e agir de todos os filósofos. Por exemplo, Rae Langton e Jennifer Hornsby argumentaram persuasivamente que normas e estereótipos culturais podem afetar adversamente a capacidade das mulheres de serem ouvidas e levadas a sério. Creio que isto prejudica as mulheres na filosofia tanto quanto as prejudica em praticamente qualquer outra área. Você é contra as cotas e outras formas de intervenção. Isso quer dizer que você pensa que nada pode ou deve ser feito?

MW - Concordo com algo que você disse antes, que os homens são complacentes ao acreditar que suas prioridades intelectuais são melhores. E isso torna mais difícil para as mulheres se fazerem ouvir. Mas sou contra a intervenção positiva, mesmo assim, porque ela sempre implica o risco de que uma mulher indicada graças a um sistema de cotas, por exemplo, seja vista como não sendo necessariamente a melhor candidata e, por essa razão, seja ainda mais contestada e enfraquecida. Penso, em vez disso, que as coisas estão mudando gradualmente na filosofia, mesmo que isso não esteja ocorrendo em outras disciplinas. Graças em parte ao trabalho de algumas mulheres, como Onora O'Neill, e alguns homens, como você, a aplicação de métodos filosóficos a outras disciplinas vem ganhando reconhecimento maior. Por exemplo, a ligação entre filosofia moral e medicina hoje é amplamente reconhecida, e, o que talvez seja ainda mais importante, a interface entre filosofia e psiquiatria vem sendo explorada mais e mais. Essa ampliação do escopo da filosofia vai inevitavelmente atrair mais mulheres para a disciplina, mesmo que isso se dê apenas gradualmente.

JB - As cotas são problemáticas de fato, mas existem outras intervenções de ação afirmativa possíveis, como exigir que departamentos, conferências e periódicos monitorem de perto o número de mulheres que se candidatam ou oferecem artigos para publicação, comparando-o ao número das que são aceitas. O simples fato de se obrigar as pessoas a prestar atenção a disparidades possíveis já é uma maneira poderosa de aumentar a conscientização.

Outra prioridade é levar os filósofos a um entendimento melhor dos efeitos psicológicos que interferem no seu pensamento supostamente claro e racional. Todos os filósofos devem ter conhecimento, por exemplo, do trabalho de Sally Haslanger e Jennifer Saul sobre como fenômenos psicológicos como um viés implícito e a ameaça de estereótipos podem atuar em sua disciplina. Mas a mudança mais importante e eficaz é que os filósofos simplesmente encarem a profundidade do problema em seu campo. Muitos filósofos se limitam a supor, com complacência, que qualquer sexismo na filosofia hoje seja residual e de pouca monta. Sete anos atrás Haslanger escreveu: Em minha experiência, é muito difícil encontrar um lugar na filosofia que não seja ativamente hostil às mulheres e minorias ou que, no mínimo, não presuma que um filósofo bem sucedido deve ter a aparência de um homem (tradicional e branco) e agir como tal. Haslanger perseverou, mas, se outras mulheres de talento estão abandonando o esforço ou sendo passadas por cima, quem perde com isso é tanto a própria filosofia quanto as mulheres.