Da Revista Piauí
George Orwell era um escritor prolífico. Numa semana típica, escrevia três resenhas, mais de dez cartas e mantinha um diário minucioso, no qual anotava até se tinha chovido ou feito sol, além de trabalhar no livro ao qual se dedicava. Suas obras completas têm vinte volumes, foram descobertas 1 700 de suas cartas e o diário ultrapassa as 500 páginas. Mas seus biógrafos e editores dizem que ele escreveu mais que isso. Os cadernos com as anotações sobre a sua participação na Guerra Civil Espanhola, por exemplo, teriam sido roubados de seu hotel por agentes do Comissariado do Povo para os Assuntos Internos – a polícia política da União Soviética que antecedeu a KGB – e provavelmente estão em algum arquivo na Rússia.
Estava bem longe, também, de ser um escritor de gabinete. Na Pior em Paris e Londres relata a sua história como lavador de pratos em restaurantes e hotéis chiques. O Caminho para Wigan Pier é produto do tempo em que trabalhou como mineiro e morou em favelas no norte da Inglaterra. Lutando na Espanha reconstitui a sua participação, ao lado dos republicanos, na guerra civil dos anos 30. George Orwell – nom de plume de Eric Arthur Blair – quis estar sempre junto dos pobres e dos trabalhadores. Para descrever a vida concreta deles e aplicar na prática as suas próprias ideias socialistas.
Nas cartas publicadas a seguir, Orwell fala da Guerra Civil Espanhola. Na manhã de 20 de maio de 1937, ele levou um tiro que lhe atravessou o pescoço e quase o matou. Foi hospitalizado e ficou sem voz um tempo. No final da convalescença, stalinistas locais e agentes soviéticos o perseguiram por estar engajado na milícia do Partido Operário de Unificação Marxista, o POUM, organização hostilizada por Moscou. Orwell viveu na rua e dormiu em igrejas até que conseguiu escapar da Espanha com sua mulher, Eileen.
De volta à Inglaterra, escreveu inúmeras cartas explicando por que a União Soviética destruíra o POUM, prendera os seus militantes e assassinara Andrés Nin, o líder do partido. Tanto a fábula de A Revolução dos Bichos como o romance 1984 reconstituem em ficção muito da experiência política de Orwell na guerra civil na Espanha. [Mario Sergio Conti]
Abril de 1937
Hospital, Monflorite
Querida Eileen,[1]
Você é realmente uma mulher maravilhosa. Quando eu vi os charutos, meu coração se derreteu. Eles vão resolver todos os problemas de fumo por um longo tempo. Não vá cair na miséria e, acima de tudo, não deixe faltar comida, fumo etc. Odeio saber que você está resfriada & se sente abatida. Também não deixe que façam você trabalhar demais, & não se preocupe comigo, pois estou muito melhor & espero voltar para o front amanhã ou no dia seguinte. Felizmente o envenenamento em minha mão não se espalhou & agora ela está quase boa, embora, naturalmente, a ferida ainda esteja aberta. Posso usá-la muito bem & pretendo fazer a barba hoje, pela primeira vez em cinco dias. O clima está muito melhor, uma verdadeira primavera na maior parte do tempo, a aparência da terra me faz pensar em nosso jardim & me perguntar se os goiveiros estão florindo. Sim, a resenha de Pollitt[2] foi muito ruim, embora evidentemente boa como publicidade. Suponho que ele deve ter ouvido falar que estou servindo na milícia do POUM. Não presto muita atenção nas resenhas do Sunday Times, pois, como Gollancz[3] anuncia muito lá, eles não se atrevem a falar mal dos livros dele. Todos foram muito bons comigo enquanto estive no hospital, visitando-me todos os dias etc. Acho que agora o tempo está melhorando e posso passar um mês fora sem ficar doente, & então que teremos descanso, & iremos pescar também, se for possível.
Muitíssimo obrigado por ter enviado as coisas, querida, mantenha-se bem e feliz. Escreverei novamente em breve.
Com todo o meu amor
Eric
Maio de 1937
Hotel Continental, Barcelona
Caro sr. Victor Gollancz,
Não tive a oportunidade de escrever antes e lhe agradecer pela introdução que escreveu para O Caminho para Wigan Pier, na verdade eu nem vi o livro até uns dez dias atrás, quando vim de licença & desde então andei bastante ocupado. Passei minha primeira semana de licença um pouco doente, depois houve três ou quatro dias de combates de rua em que estivemos todos mais ou menos envolvidos; na verdade, era praticamente impossível ficar de fora deles. Gostei muito da introdução, embora, é claro, eu pudesse ter respondido a algumas das críticas que você fez. Mandaram-me um monte de resenhas, algumas muito hostis, mas eu deveria pensar que são na maior parte boas do ponto de vista da publicidade.
Voltarei para o front provavelmente daqui a poucos dias e, sem contar acidentes, espero estar lá até meados de agosto. Depois, acho que voltarei para casa, pois estará na hora de começar outro livro. Espero muito sair desta com vida, nem que seja apenas para escrever um livro sobre isso. Não é fácil aqui descobrir os fatos fora do círculo de sua própria experiência, mas com essa limitação tenho visto muita coisa que é de enorme interesse para mim. Devido em parte a um acidente, entrei para a milícia do Partido Operário de Unificação Marxista (POUM), em vez da Brigada Internacional, o que de certo modo foi uma pena, porque isso significou que nunca vi o front de Madri; por outro lado, colocou-me em contato com espanhóis, em vez de ingleses, e em especial com revolucionários genuínos. Espero ter a chance de escrever a verdade sobre o que vi. O que sai nos jornais ingleses é em grande medida a mais estarrecedora das mentiras – mais não posso dizer devido à censura. Se puder voltar em agosto, espero ter um livro pronto para você por volta do início do próximo ano.
Atenciosamente,
Eric A. Blair
Julho de 1937
The Stores, Wallington
Caro camarada Serguei Dinamov[4],
Lamento não ter respondido antes a sua carta datada de 31 de maio, mas acabei de voltar da Espanha. Estou enviando em separado um exemplar de O Caminho para Wigan Pier. Espero que partes dele possam interessá-lo. Devo lhe dizer que trechos da segunda metade tratam de temas que podem parecer triviais fora da Inglaterra. Eu estava preocupado com eles no momento da escrita, mas minhas experiências na Espanha me fizeram reconsiderar muitas de minhas opiniões.
Ainda não me recuperei completamente do ferimento que sofri na Espanha, mas quando estiver disposto a escrever de novo vou tentar escrever algo para você, como sugeriu em sua carta anterior. Porém, gostaria de ser franco e, portanto, devo dizer-lhe que na Espanha servi na milícia do POUM, que, como você sem dúvida sabe, foi duramente denunciado pelo Partido Comunista e foi recentemente proibido pelo governo; também que, após o que vi, estou mais de acordo com a política do POUM do que com o Partido Comunista. Digo-lhe isso porque pode ser que sua revista não queira ter contribuições de um membro do POUM, e eu não quero me apresentar a você com pretextos falsos.
Fraternalmente,
George Orwell
31 de julho de 1937
The Stores, Wallington
Caro Rayner Heppenstall,[5]
Passamos um período interessante, mas totalmente sangrento na Espanha. Claro que eu nunca teria permitido que Eileen fosse, nem, provavelmente, eu mesmo teria ido se tivesse previsto os acontecimentos políticos, em especial a supressão do POUM, partido em cuja milícia eu estava servindo. Era um negócio esquisito. Começamos por ser defensores heroicos da democracia e acabamos fugindo pela fronteira, com a polícia ofegante em nossos calcanhares. Eileen foi maravilhosa, na verdade, parecia gostar da coisa. Mas, embora nos tenhamos saído bem, quase todos os nossos amigos e conhecidos estão na prisão e é provável que fiquem por lá indefinidamente, sem nenhuma acusação real, exceto a suspeita de “trotskismo”. As coisas mais terríveis estavam acontecendo quando parti: prisões por atacado, homens feridos arrastados para fora de hospitais e jogados na prisão, pessoas amontoadas em tocas imundas onde não tinham espaço para se deitar, presos espancados e famintos etc. etc. Entretanto, é impossível ter uma palavra sobre isso mencionada na imprensa inglesa, com exceção de publicações do Partido Trabalhista Independente [ILP], que é afiliado ao POUM. Tive uma experiência muito divertida no New Statesmansobre isso. Logo que saí da Espanha, telefonei da França perguntando se eles gostariam de um artigo e, é claro, eles disseram que sim, mas quando viram que meu artigo era sobre a proibição do POUM disseram que não poderiam publicá-lo. Para dourar a pílula, me pediram que resenhasse um livro muito bom que saíra recentemente, The Spanish Cockpit, que abre o jogo muito bem sobre o que vem acontecendo.
E mais uma vez, quando viram minha resenha, não puderam publicá-la porque era “contra a política editorial”, mas se ofereceram para pagar a resenha mesmo assim – praticamente um suborno. Também estou tendo que mudar de editora, ao menos para este livro. Gollancz faz evidentemente parte da rede comunista, e tão logo soube que estive associado com o POUM e os anarquistas, e vi por dentro os tumultos de maio em Barcelona, ele disse que não achava que poderia publicar meu livro, embora nenhuma palavra dele tenha sido escrita até agora. Acho que ele deve ter muito astutamente previsto que algo do tipo aconteceria, pois quando fui para a Espanha ele elaborou um contrato em que se comprometia a publicar minha ficção, mas não outros livros. No entanto, tenho duas outras editoras no meu rastro e acho que meu agente está sendo inteligente e os fez dar lances um contra o outro. Comecei meu livro, mas evidentemente estou sem ritmo no momento.
Meu ferimento não foi grande, mas foi um milagre que não tenha me matado. A bala atravessou meu pescoço, mas não acertou em nada, exceto uma corda vocal, ou melhor, o nervo que a governa, que está paralisado. No começo fiquei totalmente sem voz, mas agora a outra corda vocal está compensando, e a danificada pode ou não se recuperar. Minha voz está praticamente normal, mas não consigo gritar nem um pouco. Também não posso cantar, mas as pessoas me dizem que isso não importa. Estou de certa forma contente de ter sido atingido por uma bala, porque acho que isso vai acontecer com todos nós num futuro próximo e estou contente por saber que não dói falar disso. O que vi na Espanha não me tornou cínico, mas me faz pensar que o futuro é bastante sombrio. É evidente que as pessoas podem ser enganadas pelo material antifascista. No entanto, não concordo com a atitude pacifista, como creio que você acredita. Ainda acho que é preciso lutar pelo socialismo e contra o fascismo, quer dizer, lutar fisicamente com armas, só que é preciso descobrir quem é quem.
Estou apenas engatinhando com meu livro, que quero terminar até o Natal, e também estou muito ocupado tentando deixar o jardim etc. em forma depois de ter estado longe por tanto tempo. De qualquer maneira, mantenha-se em contato e me diga o seu endereço. Au revoir.
Do seu
Eric
Agosto de 1937
The Stores, Wallington
Caro Doran,[6]
Fiquei muito aliviado quando soube que todos os que assim desejaram tinham saído a salvo da Espanha. Fui para o front em 15 de junho a fim de obter minha alta médica, mas não consegui vê-lo porque ficaram me mandando de hospital em hospital. Voltei a Barcelona para descobrir que o POUM havia sido suprimido em minha ausência, e esconderam essa notícia tão bem das tropas que em 20 de junho não havia uma alma que tivesse ouvido falar disso, embora a repressão tivesse acontecido nos dias 16 e 17. Tivemos que passar vários dias em fuga, dormindo em igrejas em ruínas etc., mas Eileen ficou no hotel e, afora ter seu quarto revistado e todos os meus documentos apreendidos, não foi molestada, possivelmente porque a polícia a estava usando como chamariz. Escapamos rapidamente na manhã do dia 23 e cruzamos a fronteira sem muita dificuldade. Felizmente, havia uma primeira classe e um vagão-restaurante no trem, e fizemos o máximo para parecer turistas ingleses comuns, que era a coisa mais segura a fazer. Em Barcelona, estava-se razoavelmente seguro durante o dia. A polícia chegou mesmo a prender os homens feridos do POUM que estavam no hospital Maurín, e vi dois homens na cadeia com pernas amputadas, além de um menino de uns 10 anos. Todos não só tinham estado presos por dezoito dias (muito mais agora, é claro), sem nenhum julgamento ou acusação, como estavam sendo confinados em locais onde mal havia espaço para se deitar, estavam meio mortos de fome e, em muitos casos, tinham sido espancados e insultados. Jornais franceses publicaram a notícia crível de que o corpo de Nin[7], e acho que de outros líderes do POUM, foi encontrado com um tiro, em Madri.
Que espetáculo! E pensar que começamos como heroicos defensores da democracia e apenas seis meses depois éramos trotskifascistas se esgueirando ao longo da fronteira, com a polícia em nossos calcanhares. Entretanto, ser um trotskifascista não parece nos ajudar com os pró-fascistas deste país. Esta tarde, Eileen e eu recebemos a visita do vigário, que não aprova de forma alguma termos estado do lado do governo. É claro que tivemos de admitir que era verdade o incêndio de igrejas, mas ele se animou muito ao saber que eram apenas igrejas católicas romanas.
Conte-me como você vai. Eileen manda lembranças.
Do seu
Eric Blair
P.S.: Esqueci de dizer que quando eu estava em Barcelona eu queria muito escrever para todos vocês e avisá-los, mas não ousei, porque achei que uma carta desse tipo iria atrair uma atenção indesejável para o homem ao qual ela se destinava.
Agosto de 1937
The Stores, Wallington
Prezado sr. Victor Gollancz,
Não espero que o senhor tenha visto o recorte anexo. Esta é – creio eu – a terceira referência no Daily Worker à minha suposta afirmação de que as classes trabalhadoras “cheiram mal”. Como o senhor sabe, eu nunca disse nada desse tipo e, na verdade, disse especificamente o contrário. O que eu disse em Wigan Pier, como talvez se lembre, é que as pessoas de classe média são levadas a acreditar que as classes operárias “cheiram mal”, o que é simplesmente uma questão de fato observável. Várias das cartas que recebi de leitores do livro se referiram ao fato e me felicitaram por apontá-lo. A declaração ou insinuação de que acho que os trabalhadores “fedem” é uma mentira deliberada destinada a pessoas que não leram este ou qualquer outro dos meus livros, a fim de lhes dar a ideia de que sou um esnobe vulgar e, assim, atingir indiretamente os partidos políticos aos quais estive associado. Estes ataques no Daily Worker só começaram depois que o Partido Comunista ficou sabendo que eu estava servindo na milícia do POUM.
Não tenho nenhuma ligação com essas pessoas (a redação do Worker) e nada que eu diga terá algum peso para eles, mas o senhor, naturalmente, está numa posição diferente. Sinto muito incomodá-lo sobre o que é mais ou menos uma questão pessoal minha, mas acho que talvez valha a pena o senhor intervir e parar com ataques desse tipo, que não vão, está claro, fazer bem para os meus livros que o senhor publicou ou que possa publicar no futuro. Se, portanto, a qualquer momento acontecer de o senhor estar em contato com alguém em posição de autoridade sobre o pessoal do Worker, eu ficaria muitíssimo grato se pudesse lhes dizer duas coisas:
1. Que, se eles repetirem essa mentira de que eu disse que a classe operária “cheira mal”, publicarei uma resposta com as citações necessárias, e não creio que o PC gostaria de vê-las impressas.
2. Este é um assunto mais sério. Está em andamento uma campanha de difamação organizada contra pessoas que serviram no POUM, na Espanha. Um camarada meu, um garoto de 18 anos que conheci na linha de fogo, foi recentemente não só expulso de sua seção da Juventude Comunista devido à sua associação com o POUM – o que talvez fosse justificável, na medida em que as posições políticas do POUM e do PC são bastante incompatíveis –, mas também foi descrito em uma carta como “a soldo de Franco”. Esta última declaração é uma questão completamente diferente. Eu não sei se é difamatório dentro do contexto, mas estou obtendo pareceres de advogados, pois, evidentemente, a mesma coisa (isto é, que estou a serviço dos fascistas) poderá ser dita a meu respeito. Mais uma vez, o senhor talvez possa, se falar com alguém em posição de autoridade, dizer-lhes que, caso alguma coisa processável seja dita contra mim, não hesitarei em entrar com uma ação por difamação imediatamente. Odeio assumir essa atitude ameaçadora, e odiarei ainda mais me envolver em um litígio, especialmente contra membros de outro partido da classe operária, mas acho que temos o direito de nos defender contra esses ataques pessoais malignos que, mesmo que o PC tenha toda a razão e o POUM e o ILP estejam totalmente errados, não podem, em longo prazo, fazer nenhum bem para o causa da classe trabalhadora. O senhor vê aqui (segundo trecho sublinhado) a sugestão implícita de que eu não “fiz a minha parte” na luta contra os fascistas. Daí, é apenas um pequeno passo para me chamar de covarde, negligente etc., e não duvido que essa gente fizesse isso se achasse que é seguro.
Lamento muitíssimo jogar esse tipo de coisa sobre o senhor, e compreenderei e não ficarei de modo algum ofendido se achar que não pode fazer nada a respeito. Mas me aventurei a abordá-lo porque o senhor é meu editor e pode, talvez, achar que o seu bom nome está, em certa medida, envolvido com o meu.
Atenciosamente
Eric Blair
Setembro de 1937
The Stores, Wallington
Caro Geoffrey Gorer,[8]
Muito obrigado por sua carta. Estou contente por você estar se divertindo na Dinamarca, embora, devo admitir, seja um dos poucos países que eu nunca quis visitar.
O que você diz sobre não deixar os fascistas entrarem por causa de dissensões entre nós é uma grande verdade, desde que se tenha clareza sobre o que se entende por fascismo, também quem ou o que é que está tornando a unidade impossível. É claro que toda a coisa da Frente Popular que agora está sendo defendida pelo partido e pela imprensa comunista, Gollancz e seus escrevinhadores pagos etc. etc., apenas se resume a dizer que eles são a favor do fascismo britânico (potencial), em contraposição ao fascismo alemão. O objetivo deles é fazer uma aliança do imperialismo capitalista britânico com a URSS e daí para uma guerra com a Alemanha. Claro, eles fingem piamente que não querem a guerra por vir e que uma aliança franco-anglo-russa pode evitá-la dentro do antigo sistema de equilíbrio das potências. Mas sabemos a que o negócio do equilíbrio das potências levou da última vez, e de qualquer maneira está claro que as nações estão se armando com a intenção de lutar. A conversa fiada da Frente Popular se resume a isto: que quando a guerra chegar, os comunistas, trabalhistas etc., em vez de trabalharem para impedir a guerra e derrubar o governo, estarão do lado do governo, desde que o governo esteja do lado “certo”, isto é, contra a Alemanha. Mas qualquer um com um pouco de imaginação pode prever que o fascismo – claro que não chamado de fascismo – nos será imposto tão logo a guerra começar. Assim, você terá fascismo com os comunistas participando dele e, se estivermos aliados com a URSS, tendo um papel de liderança nele. Foi isso que aconteceu na Espanha. Depois do que vi na Espanha, cheguei à conclusão de que é inútil ser “antifascista” ao mesmo tempo que se tenta preservar o capitalismo. O fascismo, afinal, é apenas um desenvolvimento do capitalismo, e a mais branda da assim chamada democracia é suscetível de se transformar em fascismo quando o aperto vem. Gostamos de pensar que a Inglaterra é um país democrático, mas nosso domínio na Índia, por exemplo, é tão ruim quanto o fascismo alemão, embora exteriormente possa ser menos irritante. Não vejo como alguém pode se opor ao fascismo, exceto trabalhando para derrubar o capitalismo, a começar, é claro, em seu próprio país. Se colaboramos com um governo capitalista-imperialista na luta “contra o fascismo”, ou seja, contra um imperialismo rival, estamos simplesmente deixando o fascismo entrar pela porta dos fundos. Toda a luta na Espanha, do lado do governo, girou em torno disso. Os partidos revolucionários, os anarquistas, o POUM etc. queriam completar a revolução, os outros queriam combater os fascistas em nome da “democracia” e, é óbvio, quando se sentiram suficientemente seguros de sua posição e enganaram os trabalhadores para que entregassem as armas, reintroduziram o capitalismo. O traço grotesco, que pouquíssimas pessoas fora da Espanha já compreenderam, foi que os comunistas estavam mais à direita de todos, e estavam ainda mais ansiosos do que os liberais para caçar os revolucionários e esmagar todas as ideias revolucionárias. Por exemplo, eles conseguiram desmantelar as milícias dos trabalhadores, que tinham por base os sindicatos que em todos os postos recebiam o mesmo salário e estavam em base de igualdade, e substituir por um exército burguês, onde um coronel recebe oito vezes mais do que um soldado etc. Todas essas mudanças, evidentemente, são feitas em nome da necessidade militar e apoiadas pela rede “trotskista”, que consiste em dizer que quem professa princípios revolucionários é trotskista e está a soldo dos fascistas. A razão pela qual tão poucas pessoas entendem o que aconteceu na Espanha é o domínio comunista da imprensa. Além da própria imprensa, eles têm toda a imprensa capitalista antifascista (jornais como o News Chronicle) do lado deles, porque ela percebeu que o comunismo oficial é agora antirrevolucionário. O resultado é que eles conseguiram impingir uma quantidade sem precedentes de mentiras e é quase impossível fazer com que alguém publique alguma coisa em contrário. Os relatos dos tumultos de maio em Barcelona, em que tive a infelicidade de estar envolvido, batem tudo o que já vi em termos de mentira. Aliás, o Daily Worker vem me perseguindo pessoalmente com as calúnias mais imundas, chamando-me de pró-fascista etc., mas pedi a Gollancz para silenciá-los, o que ele fez, sem muita boa vontade, imagino. Estranhamente, ainda estou contratado para escrever uma série de livros para ele, mas ele se recusou a publicar o livro que estou fazendo sobre a Espanha, antes mesmo de que uma única palavra dele fosse escrita.
Do seu
Eric
Dezembro de 1937
The Stores, Wallington
Prezado sr. H. N. Brailsford,[9]
Não posso alegar exatamente que o conheço, embora acredite que o encontrei por um momento em Barcelona, e sei que conheceu minha esposa lá.
Venho tentando obter a verdade sobre certos aspectos da luta de maio em Barcelona. Vejo que, no New Statesman de 22 de maio, o senhor afirma que os partidários do POUM atacaram o governo com tanques e canhões “roubados de arsenais do governo”. Eu estava obviamente em Barcelona durante toda a luta e, embora não possa responder por tanques, sei tanto quanto alguém pode ter certeza sobre uma coisa assim que não havia canhões atirando em lugar nenhum. Em vários jornais aparece uma versão do que é, evidentemente, a mesma história, dizendo que o POUM estava usando sobre a Plaza de España uma bateria de canhões de 75 milímetros roubados. Sei que essa história é falsa por uma série de razões. Para começar, sei por testemunhas oculares que estavam no local que não havia canhões lá; em segundo lugar, examinei os edifícios que circundam a praça depois e não havia sinais de fogo de artilharia; em terceiro lugar, durante toda a luta não ouvi som de artilharia, que é inconfundível se alguém está acostumado com ele. Parece, portanto, que houve um erro. Gostaria de saber se o senhor poderia fazer a gentileza de me dizer qual foi a fonte da história sobre os canhões e tanques. Lamento incomodá-lo, mas quero esclarecer essa história, se puder.
Talvez eu deva lhe dizer que escrevo sob o pseudônimo de George Orwell.
Atenciosamente
Eric Blair
Dezembro de 1937
The Stores, Wallington
Prezado sr. Brailsford,
Muito obrigado por sua carta. Eu estava muito interessado em saber a fonte da história sobre os tanques e canhões. Não tenho nenhuma dúvida de que o embaixador russo falou de boa-fé e, pelo pouco que conheço, imagino muito provavelmente que era verdade, na forma em que ele lhe contou. Mas devido a circunstâncias especiais, incidentes desse tipo tendem a ser um pouco enganadores. Espero não aborrecê-lo se eu acrescentar mais uma ou duas observações sobre essa questão.
Como eu disse, é bem concebível que em um momento ou outro os canhões tenham sido roubados, pois, pelo que sei, embora nunca tenha testemunhado pessoalmente, havia uma grande quantidade de roubos de armas entre as milícias. Mas parece que as pessoas que não estavam efetivamente nas milícias não entenderam a situação das armas. Tanto quanto possível, evitavam que as armas chegassem ao POUM e às milícias anarquistas, e elas ficavam apenas com o mínimo que lhes permitia manter a linha, mas não efetuar nenhuma ação ofensiva. Na verdade, houve momentos em que os homens nas trincheiras não tinham rifles suficientes para fazer a ronda, e em nenhum momento, até que as milícias foram dispersadas, a artilharia teve permissão para chegar ao front de Aragão em qualquer quantidade. Quando os anarquistas fizeram seus ataques na estrada de Jaca em março–abril, tiveram de fazê-los com muito pouco apoio de artilharia e sofreram baixas terríveis. Naquela ocasião (março–abril), havia apenas doze de nossos aviões em operação em Huesca. Quando o Exército Popular atacou em junho, um homem que participou do ataque me disse que havia 160. Em particular, as armas russas foram mantidas longe do front de Aragão no momento em que eram entregues às forças policiais na retaguarda. Até abril, vi apenas uma arma russa, uma submetralhadora, que possivelmente havia sido roubada. Em abril, chegaram duas baterias de canhões russos de 75 milímetros – de novo, possivelmente roubados e possivelmente os canhões aos quais o embaixador russo se referiu. Quanto a pistolas e revólveres, muito necessários em uma guerra de trincheiras, o governo não emitiu licenças para que milicianos comuns e oficiais da milícia pudessem comprá-los, e só se podiam comprá-los ilegalmente dos anarquistas. Nessas circunstâncias, a perspectiva que todos tinham era de que seria preciso se apossar de armas por bem ou por mal, e todas as milícias as furtavam constantemente umas das outras. Lembro-me de um oficial me contando como ele e alguns outros tinham roubado um canhão de campanha de um parque de artilharia pertencente ao Partido Socialista Unificado da Catalunha (comunista),e naquelas circunstâncias, eu teria feito o mesmo, sem hesitação. Esse tipo de coisa sempre acontece em tempos de guerra, mas, juntando com as histórias de jornal no sentido de que o POUM era uma organização fascista disfarçada, foi fácil sugerir que eles roubaram as armas não para usá-las contra os fascistas, mas contra o governo. Devido ao controle comunista da imprensa, o comportamento semelhante de outras unidades foi mantido no escuro. Por exemplo, não há muita dúvida de que em março alguns partidários do PSUC roubaram doze tanques de um arsenal do governo por meio de uma ordem falsificada. La Batalla, o jornal do POUM, foi multado em 5 mil pesetas e proibido de circular por quatro dias por noticiar esse fato, mas o jornal anarquista Solidaridad Obrera pôde relatá-lo com impunidade. Quanto aos canhões, se roubados, tê-los mantidos em Barcelona parece-me imensamente improvável. Alguns homens do front certamente já teriam ouvido falar disso e teriam feito um barulho infernal se soubessem que as armas estavam guardadas, e duvido que fosse possível manter duas baterias de canhões escondidas mesmo numa cidade do tamanho de Barcelona. De qualquer modo, eles teriam vindo à luz depois, quando o POUM foi reprimido. Evidentemente, não sei o que havia em todas as fortalezas do POUM, mas estive nas três principais durante a luta em Barcelona e sei que tinham armas suficientes apenas para os guardas armados habituais que ficavam nos prédios. Eles não tinham metralhadoras, por exemplo. E acho que é certo que não houve fogo de artilharia durante a luta. Vejo que o senhor diz que os Amigos de Durruti estavam mais ou menos sob controle do POUM. Essa história só foi espalhada para rotular o POUM de “trotskista”. Na realidade, os Amigos de Durruti eram fortemente hostis ao POUM (do ponto de vista deles, uma organização mais ou menos de direita) e, tanto quanto sei, ninguém era membro de ambos. A única conexão entre os dois é que, no momento da luta de maio, consta que o POUM divulgou sua aprovação de um cartaz incendiário afixado pelos Amigos de Durruti. Mais uma vez, há dúvidas a respeito – é certo que não houve nenhum cartaz, como descrito no News Chronicle e em outros lugares, mas pode ter havido um panfleto de algum tipo. É impossível descobrir, pois todos os registros foram destruídos e as autoridades espanholas não me permitiram mandar para fora da Espanha pastas até mesmo dos jornais do PSUC, muito menos dos outros. A única coisa certa é que os relatórios comunistas sobre a luta de maio, e mais ainda sobre a suposta conspiração fascista do POUM, são completamente inverídicos. O que me preocupa não é o fato de essas mentiras serem contadas, que é o que se espera em tempos de guerra, mas que a imprensa inglesa de esquerda se recuse a dar ouvidos ao outro lado. Por exemplo, os jornais fizeram um tremendo barulho sobre o fato de Nin e outros estarem a soldo dos fascistas, mas não mencionaram que o governo espanhol, com exceção dos membros comunistas, negou que houvesse alguma verdade nessa história. Suponho que a ideia subjacente é que eles estão de alguma forma ajudando o governo espanhol ao dar carta branca aos comunistas. Lamento sobrecarregá-lo com todas essas coisas, mas tentei fazer tudo o que podia, que não é muito, para tornar a verdade sobre o que aconteceu na Espanha mais amplamente conhecida. A mim não importa quando eles dizem que estou a serviço dos fascistas, mas isso é diferente para os milhares que estão nas prisões espanholas e podem ser assassinados pela polícia secreta como tantos já o foram. Duvido que fosse possível fazer muito pelos espanhóis antifascistas presos, mas algum tipo de protesto organizado provavelmente faria com que muitos estrangeiros fossem libertados.
Minha esposa manda-lhe lembranças. Nenhum de nós sofreu nenhuma consequência ruim por ter estado na Espanha, embora, naturalmente, a coisa toda tenha sido terrivelmente angustiante e decepcionante. Os efeitos do meu ferimento passaram mais rápido do que se esperava. Se for de seu interesse, lhe enviarei um exemplar de meu livro sobre a Espanha quando ele sair.
Atenciosamente
Eric Blair
Fevereiro de 1938
The Stores, Wallington
Prezado Raymond Mortimer,[10]
Com referência à sua carta de 8 de fevereiro, lamento muitíssimo se feri seus sentimentos ou de qualquer outra pessoa, mas, antes de falar das questões gerais envolvidas, devo salientar que o que você diz não está totalmente correto. Você diz: “Sua resenha foi recusada porque fazia uma descrição do livro muito inadequada e enganosa. Você usou a resenha apenas para expressar suas próprias opiniões e apresentar fatos que achava que deveriam ser conhecidos. Além disso, na última vez que nos vimos, você reconheceu isso. Por que então agora sugere, muito equivocadamente, que a resenha foi recusada porque ‘contradizia a política editorial’? Você está confundindo a resenha com a recusa anterior de um artigo que você enviou e que o editor recusou porque tínhamos acabado de publicar três artigos sobre o mesmo assunto?”
Anexo uma cópia da carta de Kingsley Martin.[11]Você verá nela que a resenha foi recusada porque “contradiz a diretriz política do jornal” (eu deveria ter dito “diretriz política”, e não “política editorial”). Em segundo lugar, você diz que o meu artigo anterior havia sido recusado “porque tínhamos acabado de publicar três artigos sobre o mesmo assunto”. Ora, o artigo que enviei era sobre a repressão ao POUM, o alegado complô “trotskifascista”, o assassinato de Nin etc. Até onde sei, o New Statesman nunca publicou um artigo sobre esse assunto. Eu certamente admiti e admito que a resenha que escrevi era tendenciosa e talvez injusta, mas não me foi devolvida por esse motivo, como pode ver pela carta anexa.
Nada é mais odioso para mim do que me envolver nessas controvérsias e escrever, por assim dizer, contra pessoas e jornais que sempre respeitei, mas a gente precisa perceber que tipos de questões estão envolvidas e a grande dificuldade de conseguir que a verdade seja ventilada na imprensa inglesa. Até onde se podem obter números, não menos de 3 mil presos políticos (isto é, antifascistas) estão nas prisões espanholas no momento, e a maioria está lá há seis ou sete meses sem nenhum tipo de julgamento ou acusação, nas condições físicas mais imundas, como vi com meus próprios olhos. Alguns foram liquidados, e não há muita dúvida de que teria havido um massacre indiscriminado se o governo espanhol não tivesse tido a sensatez de ignorar o clamor da imprensa comunista. Vários membros do governo espanhol disseram repetidas vezes que querem libertar essas pessoas, mas não conseguem por causa da pressão comunista. O que acontece na Espanha legalista é fortemente governado pela opinião de fora, e não há dúvida de que, se tivesse havido um protesto geral dos socialistas estrangeiros, os presos antifascistas teriam sido libertados. Até mesmo os protestos de uma organização pequena como o ILP tiveram algum efeito. Mas há alguns meses, quando foi feita uma petição pela libertação dos prisioneiros antifascistas, quase todos os principais socialistas ingleses se recusaram a assiná-la. Não tenho dúvidas de que isso aconteceu porque, embora não acreditassem na história de um complô “trotskifascista”, eles ficaram com uma impressão geral de que os anarquistas e o POUM estavam trabalhando contra o governo e, em particular, acreditaram nas mentiras publicadas na imprensa inglesa sobre a luta em Barcelona, em maio de 1937.
Mais uma vez, deixe-me dizer o quanto estou triste com esse negócio todo, mas tenho de fazer o pouco que posso a fim de obter justiça para as pessoas que estão presas sem julgamento e são difamadas na imprensa, e uma maneira de fazê-lo é chamar a atenção para a censura pró-comunista que indubitavelmente existe. Eu manteria silêncio sobre toda a história se achasse que isso ajudaria o governo espanhol (de fato, antes de sairmos da Espanha, algumas pessoas detidas nos pediram para não tentar fazer nenhuma divulgação no exterior porque isso poderia desacreditar o governo), mas duvido que encobrir coisas, como foi feito na Inglaterra, ajude no longo prazo. Se as acusações de espionagem etc. que foram feitas contra nós pelos jornais comunistas tivessem recebido na ocasião um bom exame da imprensa estrangeira, teriam visto que eram um absurdo e a coisa toda poderia ter sido esquecida. Da forma como aconteceu, o lixo sobre uma conspiração trotskifascista circulou amplamente e nenhuma contestação foi publicada, exceto em jornais muito obscuros e, sem nenhum entusiasmo, no Daily Herald e no Manchester Guardian. Em consequência, não houve nenhum protesto do exterior e todos esses milhares de pessoas permaneceram na prisão, e vários foram assassinados, e o resultado disso foi a disseminação do ódio e da discórdia em todo o movimento socialista.
Estou enviando de volta os livros que você me deu para resenhar. Acho que seria melhor eu não escrever para você novamente, lamento muitíssimo todo esse caso, mas tenho de ficar ao lado de meus amigos, o que pode implicar atacar o New Statesman quando eu achar que ele está encobrindo questões importantes.
Atenciosamente
George Orwell
Abril de 1938
Aylesford, Kent
Caro Spender,[12]
Muito obrigado por sua carta e pelo exemplar de sua peça. Esperei para lê-la antes de responder. Interessou-me, mas não tenho certeza do que penso sobre ela. Acho que, com uma coisa desse tipo, a gente quer vê-la montada, porque ao escrevê-la você tinha obviamente na cabeça diferentes efeitos cênicos, ruídos complementares etc. que determinariam o ritmo do verso. Mas há muita coisa na peça que eu gostaria de discutir com você na próxima vez que nos encontrarmos.
Você pergunta como é que o ataquei sem conhecê-lo &, por outro lado, mudei de ideia depois de conhecê-lo. Não sei se alguma vez o ataquei exatamente, mas eu devo ter feito comentários ofensivos de passagem sobre “bolcheviques de salão, como Auden & Spender”, ou palavras nesse sentido. Eu quis usá-lo como um símbolo do bolchevique de salão porque: a) seus versos, o que eu havia lido deles, não significavam muito para mim; b) eu via em você uma espécie de pessoa bem-sucedida da moda, e também um comunista ou simpatizante comunista, & tenho sido muito hostil ao PC desde 1935;) por não o conhecer, eu podia considerá-lo um tipo & uma abstração. Mesmo quando o conheci, se não tivesse acontecido de gostar de você, eu ainda estaria inclinado a mudar minha atitude, porque quando a gente conhece alguém pessoalmente percebe imediatamente que se trata de um ser humano, e não de uma espécie da caricatura que encarna certas ideias. É em parte por essa razão que não frequento muito os círculos literários, porque sei por experiência que, depois de conhecer e falar com alguém, nunca mais serei capaz de mostrar nenhuma brutalidade intelectual contra ele, mesmo quando achar que devo, como os membros trabalhistas do Parlamento que recebem um tapinha nas costas de duques & estão perdidos para sempre.
É muito gentil de sua parte resenhar meu livro espanhol. Mas não arranje problemas com o seu partido – não vale a pena. No entanto, é claro que você pode discordar de todas as minhas conclusões, como acho que provavelmente vai de fato me chamar de mentiroso. Se pudesse vir me ver em algum momento, eu gostaria bastante, se não for muito inconveniente.Não sou infeccioso. Estou muito feliz aqui & eles são muito simpáticos comigo, mas é claro que é um tédio não poder trabalhar e passo a maior parte do tempo fazendo palavras cruzadas.
Abraço
Eric Blair
Junho de 1938
Aylesford
Ao The Listener
O tratamento dos fatos de seu resenhista é um pouco curioso. Em sua resenha de meu livro Homenagem à Catalunha publicada na The Listenerde 25 de maio, ele usa cerca de quatro quintos do espaço para ressuscitar da imprensa comunista a acusação de que o partido político espanhol conhecido como POUM é a organização de “quinta coluna” a soldo do general Franco. Ele afirma primeiro que essa acusação era “hiperbólica”, mas acrescenta depois que era “crível”, e que os líderes do POUM eram “pouco melhores do que traidores da causa do governo”. Ora, deixo de lado a questão de como pode ser crível que a “quinta coluna” de Franco fosse composta dos mais pobres da classe trabalhadora, liderados por homens cuja maioria esteve presa sob o regime que Franco tentava restaurar, e que pelo menos um deles estava na lista especial de Franco, de “pessoas a serem fuziladas”. Se seu resenhista quer acreditar em histórias desse tipo, ele tem o direito de fazê-lo. O que ele não tem é o direito de repetir essa acusação – que, aliás, é uma acusação contra mim, sem indicação de quem veio – ou que eu nada tivera a dizer sobre isso. Ele deixa para ser inferido que as acusações absurdas de traição e espionagem vieram do governo espanhol. Mas, como salientei detalhadamente (capítulo xi de meu livro), essas acusações nunca tiveram nenhum fundamento fora da imprensa comunista, nem foi apresentada nenhuma prova em apoio a elas. O governo espanhol repudiou várias vezes toda a crença nelas, e se recusou com firmeza a processar os homens denunciados pelos jornais comunistas. Citei textualmente as declarações do governo espanhol, que desde então foram repetidas várias vezes. Seu resenhista simplesmente ignora tudo isso, sem dúvida na esperança de que tenha sido tão eficaz em fazer as pessoas desistirem de ler o livro, e que suas deturpações passarão despercebidas.
Não espero nem desejo resenhas “boas”, e se seu resenhista prefere usar a maior parte do espaço para expressar opiniões políticas próprias, isso é uma questão entre ele e você. Mas acho que tenho o direito de pedir que, quando um livro meu for discutido em uma coluna, deve haver pelo menos alguma menção ao que eu realmente disse.
George Orwell
[1]Eileen Blair (1905–45), psicóloga, primeira mulher de Orwell.
[2]Harry Pollitt (1890–1960), secretário-geral do Partido Comunista da Grã-Bretanha. Sua resenha de O Caminho para Wigan Pier fora publicada recentemente no Daily Worker, o jornal do partido.
[3]Victor Gollancz (1893–1967), primeiro editor de Orwell, acabara de lançar O Caminho para Wigan Pier.
[4]Serguei Dinamov (1901–39), editor-chefe da International Literature, publicada em Moscou pelo governo soviético. A revista respondeu a Orwell que, dada a sua associação com o POUM, não poderia “ter nenhuma relação” com ele. Preso em 1938, Dinamov foi morto no ano seguinte no gulag.
[5]Rayner Heppenstall (1911–81), romancista e crítico, foi amigo de Orwell, com quem dividiu um apartamento em 1935.
[6]Charles Doran (1894–1974), amigo de Orwell, lutou com ele na Espanha.
[7]Andrés Nin (1892–1937), líder do POUM, havia sido secretário particular de Trotsky, mas rompeu com ele quando o revolucionário russo criticou o partido espanhol. Foi assassinado pelos stalinistas em junho de 1937.
[8]Geoffrey Gorer (1905–85), antropólogo, amigo de Orwell.
[9]Henry Noel Brailsford (1873–1958), redator-chefe do Manchester Guardian, que existe até hoje com o nome The Guardian.
[10]Charles Raymond Mortimer (1895–1980), editor literário do The New Statesman.
[11]Basil Kingsley Martin (1897–1969), editor do The New Statesman.
[12]Stephen Spender (1909–95), poeta, romancista, crítico e editor. Orwell o incluiu entre os bolcheviques de salão e “pessoas da moda”, caso também do poeta W. H. Auden, a quem ele criticava. Depois desta carta, tornaram-se amigos.