tag:blogger.com,1999:blog-2059423129162520742024-03-21T11:44:01.921-07:00PROCULT UEPBBlog da Pró-Reitoria de Cultura (PROCULT) da Universidade Estadual da ParaíbaPró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.comBlogger288125tag:blogger.com,1999:blog-205942312916252074.post-85881510904060910872015-10-09T12:57:00.001-07:002015-10-09T13:28:19.142-07:00A crueldade sádica e o medo de ser ridículo<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://h.fastcompany.net/multisite_files/fastcompany/imagecache/1280/poster/2014/09/3036249-poster-p-1-confessional-have-you-ever-designed-something-you-were-too-ashamed-to-put-your-name-on.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" class="irc_mi" src="http://h.fastcompany.net/multisite_files/fastcompany/imagecache/1280/poster/2014/09/3036249-poster-p-1-confessional-have-you-ever-designed-something-you-were-too-ashamed-to-put-your-name-on.jpg" height="225" style="margin-top: 0px;" width="400" /></a></div>
<br />
<b>Nelson Ascher<br />Da equipe de articulistas<br />Do Mais!</b><br />
<br />
Certo historiador, cujo nome não vem ao caso, conta nas memórias que, entre seus amigos, havia um mais velho, poeta de talento e algum renome, e um outro, novato no mesmo mister. Quando o novato mostrou seus versos ao primeiro, este pediu-lhe, por favor, que nunca mais voltasse a escrever poesia. Em vez de se ofender, o jovem não só acatou o conselho como, mudando de ramo, tornou-se romancista de sucesso. Cabe observar que no país centro-europeu onde isso ocorreu nos anos 30, Thomas Mann era, de longe, o narrador vivo mais lido e estimado pela intelectualidade liberal. E um dos primeiros temas do romancista alemão foi o risco que o quase-artista, o amador e o diletante corriam: o de cair no ridículo.<br />
<br />
Bastante explorado mais tarde, o tema do ridículo já surge, cristalino e inescapável, em dois contos escritos em 1896-97, ou seja, quando o autor tinha apenas 21-22 anos: "O Pequeno Senhor Friedmann" (título também de sua coletânea de estréia) e "O Diletante" (como é chamado na tradução brasileira; o original significa antes "palhaço").<br />
<br />
O senhor Friedmann em questão é pequeno porque um acidente, provocado na infância pelo alcoolismo de sua babá, tornara-o anão e corcunda. Apesar da deformidade, ele cresce amando a existência e suas coisas boas: pelo menos aquelas a que tem acesso. Obviamente excluído do comércio erótico-amoroso, programa-se em uma vida de deleites puramente estéticos, sobretudo de música. Até se apaixonar por uma mulher.<br />
<br />
O palhaço da história seguinte não carrega qualquer deformação física. Oriundo de uma rica família que, embora falida, legara-lhe alguns recursos, pode se dar ao luxo de não pertencer à sociedade, não ter emprego nem outra ocupação a não ser a de apreciar artes, sobretudo a música. É verdade que não sabe de fato tocar piano, mas diverte-se algumas horas por dia improvisando para si mesmo ao teclado. Até claro, não tanto se apaixonar, mas simplesmente descobrir que sua posição – ou melhor, falta de – tornou-lhe inacessível uma mulher pela qual poderia se interessar.<br />
<br />
Ao deixar de lado sua autodesprogramação amorosa, Friedmann é rudemente rejeitado, com um safanão, pela amada que nem sequer deixa de escarnecer de sua condição impossível. Ao "palhaço", quando de seu esboço de aproximação, basta-lhe a suspeita de um entreolhar irônico entre a amada presuntiva e o noivo desta para que tudo se configure. O senhor Friedmann – a cena ocorrera num Jardim – arrasta-se até um córrego onde, num acesso derradeiro de ódio a si mesmo, deixa-se afogar.<br />
<br />
O outro conto termina com o protagonista constatando que não conseguirá levar a cabo nem mesmo suas ânsias suicidas. Ambos os personagens, cuja trajetória Mann traça desde o começo, têm cerca de 30 anos de idade. Ambos são também pessoas excluídas, por alguma razão, do mundo dito normal. Não é tanto a exclusão, porém, que fascina o autor quanto o fato de que a ela se vincula à apreciação artística.<br />
<br />
Adorno – que assessoraria musicalmente o criador de "Doutor Fausto" – observou, num ensaio, a crescente dissociação entre a música erudita europeia e um público cada vez menos capaz de compreender formas elaboradas que, todavia, continuava apreciando. Na música – que requer, de quem a compõe, a fluência numa linguagem complexa, e, de quem a executa, o domínio de uma técnica difícil – essa dissociação se evidencia com mais obviedade do que nas outras artes; por exemplo, a da prosa.<br />
<br />
Seria desta arte, a sua, que Mann, encarnando talvez seus personagens, falava? A abordagem psicobiográfica não goza hoje em dia de grande prestígio, mas a quantidade de material autobiográfico nessas histórias, principalmente em "O Diletante", fala por si mesma. Antes de aparecerem os grupos de teatro experimental nos colégios progressistas, alguém só era artista na medida em que conseguisse demonstrá-lo no seu trabalho. Algo que, antes do surgimento das terapias não-ortodoxas, gerava infelizmente certa ansiedade. Não ser mais do que parte do público e ainda assim se julgar artista: isso podia ser punido com ridículo.<br />
<br />
Não que este seja o único tema. A erupção do erótico como desestruturador de disciplina estética – tópico central de "Morte em Veneza" – mostra-se nessas narrativas com todos os contornos. O que ressalva, no entanto, é seu caráter distinto de exorcismo. Na crueldade sádica com que trata os fracassados, o escritor parece retratar o castigo que ardentemente deseja não vir a merecer. Honestamente, ele demarcou a idade de 30 anos como a data limite na qual seu sucesso ou fracasso estaria inapelavelmente decidido. Em julho de 1990, Mann enviou o manuscrito completo de "Os Buddenbrooks" ao seu editor. Tinha, então, 25 anos.<br /><br />Pró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-205942312916252074.post-69694869384532260232015-09-21T07:11:00.002-07:002015-09-21T07:12:42.810-07:00Simetria e estética no pensamento científico<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://ak-hdl.buzzfed.com/static/enhanced/webdr06/2013/7/29/18/enhanced-buzz-wide-12867-1375138556-12.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="http://ak-hdl.buzzfed.com/static/enhanced/webdr06/2013/7/29/18/enhanced-buzz-wide-12867-1375138556-12.jpg" height="400" width="400" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Por Marcelo Gleiser</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Da Ilustríssima</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><i>RESUMO </i></b>Lançado recentemente nos Estados Unidos, novo livro de Frank Wilczek faz uma ode à beleza do mundo natural por intermédio da mente e da lógica de um físico teórico. Na obra, dedicada ao público não especializado, o Nobel de Física de 2004 vê a beleza como expressão de simetria, e a simetria, como verdade.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
*</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Quando lemos livros sobre ciência para o público não especializado, nos deparamos com uma curiosa divisão dentre autores, dependendo de como escrevem as palavras universo e natureza: enquanto alguns (eu incluído) preferem usar iniciais maiúsculas (Universo e Natureza), outros optam por minúsculas. Volta e meia, tenho que convencer meus editores sobre as nobres razões de minha escolha.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Em julho, foi lançado nos EUA o novo livro do prêmio Nobel de física Frank Wilczek, um dos grandes nomes da ciência mundial. (No Brasil, por enquanto disponível apenas na versão em inglês.) Fiquei feliz ao ver que Wilczek também opta pelas maiúsculas. Lendo A Beautiful Question: Finding Nature's Deep Design (uma bela questão: buscando pelo código profundo da natureza) *[Penguin, 400 págs., R$ 142,60 na Livraria Cultura]*, a razão para a escolha de Wilczek fica clara: o livro, extremamente acessível e inspirador, manifesta a veneração, quase sagrada, que o autor tem pela Natureza.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
É uma ode à beleza do mundo natural vista através da ótica matemática dum físico teórico. Para Wilczek beleza é uma expressão de simetria; e simetria, de verdade: uma opção estética ganha valor moral. Nisso, ele se alinha com toda uma visão platônica da ciência, segundo a qual os segredos mais profundos da Natureza são um código matemático, decifrável pela mente humana.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Com frequência, a linguagem de Wilczek é lírica, quase mística: Mudança Sem Mudança: Que mantra estranho, não humano, para a alma da criação!</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Para ele, o objetivo da física é revelar a alma da criação. Uma Bela Questão é uma peregrinação pela história da ciência, celebrando em particular a eficácia da matemática como portal para a descoberta da verdade - verdade aqui significando uma descrição precisa dos fenômenos naturais, das partículas subatômicas ao cosmo como um todo:</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Nossa questão nos convida a descobrir a beleza na raiz das coisas. Para sermos capazes de respondê-la, temos que trabalhar de dois modos. Devemos tanto expandir nosso senso de beleza quanto nossa compreensão da realidade. Isso porque a beleza que encontramos no mundo natural é tão estranha quanto sua estranheza é bela.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>SINFONIA</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Esse é o canto das sereias, que aqui nos convida a mergulhar em busca do misterioso código natural, o canto que seduziu Pitágoras, Platão, Kepler, Newton, Maxwell, Einstein e muitas das mentes mais brilhantes da história. Tudo é Número, ouvimos, os segredos da Natureza são um enigma matemático cuja chave é a simetria. Compreender o mundo é ler a mente do Artesão, a divindade que, segundo Platão, arquitetou o cosmo, e que Wilczek usa metaforicamente como a encarnação duma espécie de inteligência que existe na Natureza. Para obtermos uma Teoria de Tudo, apanhado dos detalhes físicos da criação, temos que seguir a sinfonia da simetria.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A questão é de grande importância, e não apenas para cientistas ou filósofos. Ao desvendar o código da criação, transcendemos nossa essência humana, estabelecendo uma conexão com uma dimensão além do tempo. Interessante que é essa, também, a dimensão da experiência religiosa, ao menos segundo a definição do psicólogo William James: uma conexão espiritual com o cosmo. Existem muitos caminhos que levam ao conhecimento do mundo e de nós mesmos, e as artes e as disciplinas humanas têm um papel complementar ao da ciência. Todos são tentativas de compreensão da dimensão humana.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Um aspecto importante na posição de Wilczek e que deveria servir de exemplo para todos cientistas é que ele nunca abandona a franqueza: Nem todas as ideias sobre a natureza da realidade que consideramos belas são verdadeiras...e nem todas as verdades sobre a natureza da realidade são belas. Bom manter a humildade perante o pouco que sabemos, mesmo quando julgamos uma ideia bela demais para estar errada.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Wilczek é um dos poucos físicos vivos cujo trabalho tem, hoje, um status icônico entre seus colegas. Em sua pesquisa, faz uso frequente da simetria, da busca por padrões ordenados em diversos aspectos da Natureza, do subatômico ao cósmico. Nos seus textos para o público não especializado, encontramos metáforas que ilustram também seu modo de pensar: Átomos são instrumentos, seus sons revelados na luz que emitem.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>SONHO </b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Platônico devoto, como muitos físicos e matemáticos, Wilczek usa a simetria como musa. Porém, ao contrário dos ortodoxos incapazes de autocrítica, o faz de forma lúcida, elogiando aqueles cuja fé não é simplesmente passiva, mas engajada com a realidade. Wilczek sonha de olhos abertos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O livro é um manifesto apaixonado, uma meditação na qual a busca pela unificação das forças da Natureza - o grande troféu dos platônicos inspirados por uma curiosa união entre o reducionismo científico e um monoteísmo milenar - só será alcançada quando for encontrada a simetria-mãe, que se esconde, sorrateira, sob o véu da realidade que percebemos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Nenhum físico competente questionaria o papel absolutamente essencial da simetria na construção de teorias que visam descrever quantitativamente os fenômenos naturais. O que permanece em aberto é até onde essa busca pode nos levar. A unificação das leis da Natureza através da simetria é um devaneio platônico ou um objetivo científico concreto?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Não é claro se é a Natureza ou a mente humana que usa a simetria como tijolo fundamental. Não há dúvida de que a simetria é uma ferramenta extremamente útil, que nos permitiu e permite descobrir incontáveis aspectos da realidade física. Dado esse sucesso, a tentação de levar essa estratégia ao extremo é compreensível.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Como escreve Wilczek, o Real tem implica no Ideal e vice-versa: a realidade é expressão da simetria pura. Mesmo que a física subatômica não seja tão bela como esperamos, vemos a realidade distorcida porque usamos os óculos errados: nas energias que podemos estudar hoje, a matéria expressa a simetria de forma imperfeita.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Existe, no entanto, um outro ponto de vista, que afirma que a realidade física é o que é, expressa da forma que a matéria a manifesta. Nesse caso, o Real precede o Ideal, e simetria é uma forma de quantificar parcialmente o que vemos. Se existem assimetrias, se a Natureza é ligeiramente imperfeita, é porque a realidade física pouco se importa com a noção de perfeição. Perfeição é uma expectativa humana, apenas isso. A simetria é uma excelente aproximação, mas não expressa a realidade física mais essencial.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Da mesma forma que podemos, como Wilczek, construir argumentos explorando a eficácia da simetria, podemos argumentar que são as assimetrias e imperfeições que revelam a essência da Natureza, como fiz em Criação Imperfeita: assimetrias na quantidade de matéria e antimatéria no Universo; assimetrias na formulação do Modelo Padrão das partículas elementares, que descreve como interagem através de três forças fundamentais; assimetrias na estrutura das proteínas dos seres vivos; nas formas das nuvens, das árvores, dos rostos humanos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Imagine se Marilyn Monroe tivesse duas pintas no rosto, exatamente equidistantes de seu nariz? Essa Marilyn simétrica seria horrenda, não? A assimetria também pode ser bela; tudo depende de como definimos beleza, de como incorporamos a estética do imperfeito em nossa visão de mundo. A questão de Wilczek e dos platônicos continua sendo bela, mesmo que a resposta seja a imperfeição.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Podemos argumentar que o poder da matemática vem justamente de sua desconexão com a realidade, já que é uma idealização, uma aproximação das coisas que existem. Para encontrar soluções simétricas nas equações da física, temos que fazer aproximações, muitas vezes descartando certos termos, ou descontando pequenas imperfeições. Segundo esse prisma, a simetria é uma redução da realidade, e não a sua essência.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Isso não significa que devamos abandonar a simetria como ferramenta de exploração da Natureza. Devemos, no entanto, tratar a simetria e a assimetria como aspectos complementares da realidade física. É da tensão criativa entre a simetria e a assimetria que emergem muitas das estruturas que vemos no mundo. Metaforicamente, podemos dizer que as duas são o yin e o yang da criação.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Discuti essas ideias com o próprio Wilczek algumas vezes, em conferências e seminários. Imagino que ele concordaria comigo que uma Marilyn simétrica seria grotesca. Porém não tenho certeza que ele concorde com a importância da estética do imperfeito. Felizmente, a disputa pode ser resolvida, ao menos em princípio.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Nos próximos anos, experimentos no Grande Colisor de Hádrons (LHC), a máquina no Laboratório Europeu de Pesquisa Nuclear (CERN) que descobriu o famoso bóson de Higgs em julho de 2012, poderão (ou não) revelar a presença de partículas supersimétricas, componentes essenciais da construção simétrica que Wilczek e outros defendem como a essência da Natureza.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A tensão e a expectativa dos cientistas são palpáveis. Décadas de trabalho, carreiras inteiras dependem dos resultados. Em jogo estão duas visões estéticas antagônicas, dois modos de se pensar sobre o mundo que vêm definindo a história da filosofia por milênios.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<span style="text-align: justify;">No final, quem decide é a Natureza - ou ao menos o que podemos ver dela.</span><br />
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<b></b><br />
<div style="text-align: justify;">
<b><b>MARCELO GLEISER, 56, professor titular de física, astronomia e filosofia natural no Dartmouth College, nos EUA, é autor de A Ilha do Conhecimento (Record).</b></b></div>
<b>
</b><br />
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<br />Pró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-205942312916252074.post-51477379456229374372015-08-27T12:30:00.001-07:002015-08-27T12:30:19.829-07:00Sedutores em série: Beauvoir, Sartre e Camus<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="data:image/jpeg;base64,/9j/4AAQSkZJRgABAQAAAQABAAD/2wCEAAkGBxQTEhUUExQWFhUXFxgYFxcWGBocGBgdGBwYFxgXGBwYHCggHBwlHBcXITEhJSkrLi4uHB8zODMsNygtLisBCgoKBQUFDgUFDisZExkrKysrKysrKysrKysrKysrKysrKysrKysrKysrKysrKysrKysrKysrKysrKysrKysrK//AABEIAKgBKwMBIgACEQEDEQH/xAAcAAACAgMBAQAAAAAAAAAAAAAFBgMEAAIHAQj/xABEEAABAgQDBgMFBQcBBwUAAAABAAIDBBEhBRIxBiJBUWFxMoGRBxOhsfAjQmLB0RQzUlNy4fGSFhckQ2OCshU0c6LC/8QAFAEBAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAP/EABQRAQAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAD/2gAMAwEAAhEDEQA/AOHr1rVJQBetigcKoPG5VjSOS3MSvBW5JsMnfsghl3w/vAo5IYPCjDciX5VRLDNmIMbwvUe0Gx0SVAiQyaDUj8kA2bweLBdcVHMIxhsBrgDo6oVvZjFXOGSMMzf4imaT2eYIjXt8NQaIL4l/+HBOtLK1s1Ph267VT4/PQ2wwKgClAOfVJ0Od9zmin7ozU5/5QOO2+07JOFkaftXi1KVaOfLMeHmeF+TyOHvjkxYlfdg5qE2GtTc3dqSTf8siYi6YiOjRXB0Rxo0HgfwjkPgBzKvwY+egz5YY3a0oHEUqG/eDRoaU5caoLYy2EMUFbCljrqaWvqRpz4qtMxDEiUqXONg1lh0udAOZI/JRUiRnlkElrGgZnZautalv/GmUdTYm8A2biRjlgghh8bzq7u7l0HxsUEMnhjgAXvbBYDcAangczruP4aGiKSWDw45JzzD+1WsPGlS0jXsnDCtkmw/3hzOpyqR2r/ZNEHDWtoGADv8AOyDn8pse51mwso5vdfvYqxF2FJ8TGn1t51XSoEEAWp31Ws3Eo2vUckHLZnYbIBlJJraprTlQ687GqE4rhjm2eKHnS3Q9F0/EIh4U7/qhM9Ba+oOo4oOVTmAuf4burx40QyZ2edrcGhDgeQNR5ix8l1GVw4NdSltR35DovZ2Ua6tRVBxSYwlwNaW404V1/VU5WZfLuoaljtRwcP4u4XUZzDGg1+XL/KWMXwpjjlp24fkgklyHsDmmoPFU8Qh37KPAYToMR0F5q1wrDPMjUfFEZ6DQIAMJlyq2JMRKHDuVTxVqAFxTVgLN1KxF027PDdQbTrboZHCMT+qEx0FGIrOG+IKtEVnDPGEBuc8IU+ElRTY3QpsK0QMMurrRb6/RU5ZXWlByiHgmbWyrzGG5TQXTPBxyE6ETYO5FDJmYZDbmJBJ4IA8rBqaI3AwtpFwh2EuzOPUpwkZOyANDkXwSHwnGoOiYztp7yWMCLDOYiitwJIaK07DITB7x4FBe6CnsngZy0cDRGMRhxYcAiGKkaII7burhDhQ6CtK/2Ts2cZ7pufUi4pVBz2QlI0V+eObDRv1xW+2gMOCxg8UQ5iOTG8TyuU1mEwuqLAXuEpbSxf2mZo2zGtALqGpvWnbSwF+qBYlxkG9WrxQAUs3kORcOPAV5lX5OG+LEbDYRXQvAplHJg4AUpWgNrC6YnbO1aCQQTxPivYi3Lif8JrwLB2wwKNANaaX7Dsg12Z2SZaH91t3deYPP5BdAgSrYbQGgNaNPr6qqsgAwUAvan1RXDbW50tw5/wCUGBtb3vy4Kwxp526XPq5eF/4qacvko47zpcc6HXyHBBmdtyXxOWtNOoHyKpzJa51DFe3kMw/MLd4BuRpYZmg+llmYsuK9QIZ68tUFCahh1AIruxLTQeiGzViAMtKU41J5n+ytT+ND+VEJ/wDiebD/ALULdOk1P7PG14wnD8kBB0Og0N9bVCrxmAitPM1uqzsRLsrWwY2bS0Nw+JC1xH31B9nT+p7QfQFBRxCA00obDXe+VUtzkjndrp0vU/NHo8qQysRhqRej/wBChsWG3WhroTmr5DzQLU3JEtoaEg1Dhz/Ir2VmPfQqnxNOVw6hEMR3W5qmh0rbTXugUm7LHBHhiih/qGmiCVsC5Q3F4aZGwrmyE45AQJ7tU2YAN1K727yb8BZuoNZ0XQuO1GZ5lyhMyEA6IrGGnfChiKXDhvhAenXboU2ElQTvhCmwooGOXKvMiUCoQCrza80HEjLuGi89246pogSPRSxcGrcIKGz0DfT3KQ7JewvDiw1TdKQbBBalWgaoRteXOaGN0Jojgh0CGPcHPyu8kAnDNlSS0gX1RDF5mJL+IaCxTpgsm61BVaba4Q6NBIbDJPQXQc3G0RPiNuVdUQ2ZkTFi1dYk1d0BNhTpftStNEoQsAje+DS17RW9QRQLrmzGEENLxUgitrCmg3j2AQSzkdpLacKAd/CGgdK/A80SkRvVzA3y+nQ6Ki6VLnHTIHUAHGgqaW4m/YDmikBrYYZnsTUj1u7vWgHoguNiZXVpU8AVpL4o4uO6AoDMtdZoJNdR8R1VmFCNa16U5ILwiVIJpUcgpW8gLDUj86qKSkiTU3+uCKjJDG84AD60QDBLPddrO2ZxFPStCtix4Bz8uB1VHFtuYEE0DXOtXgPXMRRQy22UCK3M7c5guaR8DqgvNYTStTewrQAU6qhiUU3FCKU0C2dtdL0IhuBI4NvQcz8UFmcehvpfWtib9yAgllIr81L1W01KRHEUI7kVA+CqSc273ZIN81B+noi89iTGEVdq2w/NAIncMtR8RtKaXHxBS5OYaC4iG94ppQgjvQglHJzHoQOVwG7rUoVPbVwWg0hgkch8P7oFHE5OK071xzFrHndC4hpTo4FM8xjMCYBbT3cQ6B1qnkliPqfke4sgbocK6F45CRTDBVja3OUfJQYvDqg59Gh73mnHZ+Fupbmoe/5pwwCHuoK0/CuUFm4WqaJ+FdA5yGgARWLfDvEFLHhrJBu8EBmcG4FJhYsvZtm6FthjUByXGiJMbYaqhLBE26IFCFLq/BllNBhK6yHZBDBlwiUuxQw2K9BZRBJDg1S9tRh72j3jNReya5cKaJADhQjVAnbNe0Qwm5Xtq4Jib7WMoP2Jce4+aStrdjyHF8O1UpxpCO210HRf9qjOTDQYTWgnSvp3vwTyyKRCG8AKBreFbtY3tVzvTsuKbES0Yz0EG7cxLuQo1wBPmRbnRdYnsVEMC4yszZa2BNCW+YqPSqBkl4bRmBOgpU8SaX+N+6jdINito8VpvAD1HmD8yufv9o0OEHMijMW5hlbqb110B09OHFdxL2qzZJEs1sEHRzgHxKee4D5Hug7VHgQoMP3kVzGMAu55DWjzcUo4v7S5KA0mEyNMtaaOfDhlsIGlgYj6Cp6Ari05NTE28GNEfFiE2dFfp0bnNh/SAE0SWxsWLDDI02yGwbzYUPNFOYimcirWg8K3NEByN7eIo/dyUNvLPFc63WjWoLP+1yaj7v7NAvwb70n4OSdGwMw5h8KKd1m897NMtLOBItUkC/E0Tbh20+SHoWS8PdhS8KjPeuAu+M5gDnDnxJQCZzat7/HKgaVu8C3cfEoXM4w17q/aMPU5qdBUj5J0gbWTMVrQxzG1qDDZBAbDvRuZxO+XX504lD9pZOZhj7YQ3g3q0XvpogWZeKDpEoT3CY8Bac4IcXONqnqlZ0JpNxQHiLfJWsH99BiQ4sI1YYzYW8d3MaHK4V5GoNtDyQdoiQTCgZieBPc80uY3ioDWlzhXKAOJ04Jh2ihTYhtq2paBnAaygANzuxSTbpwXMNp5+A5jIsIxIjqlsStWw2G+VtCyuYgV1PFBVxGLnv7xwHfVVITODY9+VbfBSwpGae3OcsNvN4A86UJp3VKec4GhjOfTiAQPK6C37qLWpAc0cb2pTwngVaBzm9zm1680EbDzaxXDvU//AKVg4TGAzw3F4/CTm/06oOmYa2jGjp8tVHizVzeW2lmoWkZxpwfRw/8AsCuiGK58GG94Ac+G1zqaAuANqnqgUJmFv+acMDZupamWb47puwSHuoI5xlygc7D1TLPQ7lBJxiBdjs1XkizeCtTUPVQyI3ggMTjdxa4cFPODdUWHoDsqNEWY2yES5RNkSyAdDarDQtGw+StQ4dAgyG1WoY4KJoUrQgswTyKuSoJKpQdESkhdBZj4dnalLFcVk8LdmjQffx3XbDsWsHM1tU9V0CUXDvagTExB/GzR26fFB0PZr2g4fPPDHyzYMX7mZrd7+hzeNOBU+2ey7JuC6HBjOhVcHeEOaSBQNNwQ3seS5LEwGIIAiNH3t2mtRoa/FOeAbVuysMQUeBR4IFA4WqO+qClgfshivJ9/FaxjT91pc53athUniCmmU9mEnCLc3vHmn3nAVrxIAAHC3fVN+F4i2JCMQGoq1orxdegAGuunRRzswPe5Rcuc6vSgaLdLhApTXs/l6D3bGtdqbegQafhNlt3de/Q3plHccV0YzDWNLnXFbnW3K6pYzIftDB4mg3/hIb0AuO9Qg46+RjTLorWNIMZkMEG5IhxSak0H4D6JikNhILIeWLEDY9CAH0yOzcjwIPH4ohJyggRMwsWl1KXqHZakk6mra3VnGJqHMNy6PFNeNkCCdlHwIh943zaK1HQi1xRGZt8SKwijuQDrADhcqvMYZMgktc7ycqsXCo1PtohH4Sb+iACcIeX5RQ3oaGo8ldnMGjQYBhNBL40SFlb94FhND0O+m7ZrCGg5n2aLgcSUx7L4YYs2Yjhuwqurzea0HkPkEDjKYHDZLMERuaJQZ3nxF1LmuutVwnbXDv2acMNgJggujtadPeOIDiedKCi+i4zvsndPnyXFvaIz7eETxJHavCvkgAYbLRJh2aLXLwqKDyCh2tw0OymGxgFrtbvVApvGpNOPdFTFy6OoeSinJiI5tMzS3qAT2vdAkGVIsB3Pn/hWn+9bRrKkur4det+CLwoA3q+VNL9ldmg5rW+7u5xay/DNxtr5oADdnHRJiDCO66I0viOBrQCuY0pY0HWpK6LibABQaAADoBYKBsJjZqGT+8dDiBv9IeAT6tcPVWcV/JAoxhvjunXAYe6kx4+0HdPOACyDyfh6oDOMTPiDEAnoaBdmG6qGRbvBWppqryHiCAxOt3FXw9quTngUMggKQVcCrQQrgb0+KCKGrLVGGqZBIApFpDUpagmgnoiEq5D4IV+VCA3JmtjxXJMQwgmci5xvNflPkbHzF11mTQfazCxUTLRegZE7aMeext2I5IFyZa1ksPw8bXXM34vSYq+zCaE8taO8l0XGYRfKnpWorxXN4eEuiR4bBYue0V5Ctz5IO54PhroMm2G4kPDS4V+654NPSvqFrNtf73OKnK1waCbHSlO9BdMER4iOOtrd6Uv8VRmZMsaQO+tvl1QC8LxAxA3O0sdRpLb2cf7g2RWDMhwJcKtrujmB951eFa281RnYZyn3V3G4uNdK07ITOYoYbi1wNhSg3q05U7ILmMAOu6hry+7yoP4knTcuGuL3FtOebL663VfEtpjmLszaaZbAg3rm4itfghEkXzcRsN1m13uFALlAwwo0aJQQjlafvUJNOJBJoPgpBKwIR32ve83qXMJ7+JHZeE2GwQ4TRQfe58vkhmPYjDlmVfvOPAW9UE8pEDwQ37JmjosQirR+EcXck14FOQRByS7HZW2zP8TzzJ41XO9hYf8A6hNOiTBHuIIBEOtGlxrQO5gAVp2XUYuJQLNa5g7EUA7ICku3NDOaxpW65n7SJIvh1bqzeHE1F/RM2KbVQ27odVo5cUiY1j7d7K6tdUAPDY8KMwMfZ44aGvSuoXkSXczRxp+IVHmQhOHNgufkfet2niOleiLRsNfDG692TnU/Gn6IPGy5N3U6ZdPNGtn8PfEJeWjJCaXlziANzjf7o1J4dyAlCbdHhu/eOy8C0/moo0+8w3DO6jgK1cSXU0zEmppyQHMMmxHnzEBqwNLIddcorQnqSXOP9SYsUFvJKWxMImMXcAKk97D803Yn+SBTeN8d074EbJJePtB3TrggsguziBToR+aCCzkOyBdm2qnJDeHdEptmqpSjN4d0BicG4ocOCtTrdxQ4e1AWl2Ii2BZVpNl0XayyAY2GpsnNLAxl/JSjG3ckDQ2EtxDS23HjaymbtCaaIGNrCrUAJP8A9oncirEDaJ2pBQPso1EvdhzS1wqCCCOYNikqR2mHEIzA2iZa6BZxZ4k4hEYEwiaEjtuu8xbuCrcjs5KTTRMQC5j2UOQ0PUac1a2nmYceHcVoKOH8TT+Y19ULwPZuLKQnxpeJuupSh1HVAX2WnIhjzEOIDRuQsPD7wIHHgj82M46DW/wSxsY+IRGjTBNXuDGA/wALNSB1c/4I9Ged4gjSgsgozExkuG8eNvVLuPF2Ue6yh9C55c4ZwCLlgcRX169zGYuN2k0NCOq3mMChxCXOAaXa11HAfWiDmclgUefeXhrWgAudELgGGmlKVPDmmjYHZ9zM7ou87w1vcHUgnpTgjR2cz/ZwnPhg0qWUDaU4jT0/wzS8u2WghgvQaupU8yeaBa2gxJsvDJAFbmtaeQ5rmctKRcRjk3y8Tf0RvaqYiTk0JeEP6jwaOJNk97NYTClmBjRSmteJ5+qAFPbCRoUof2U75u9hNM1vun9Vy+YkJuC4udFc13EVNP0K+jXT1QRm0H1ZKe1+CsjMJuDSvfsg4nM4u/g+vPv0qqb515rqik7geR5B9eHqq7ZOhCCOXgPy5+Lb06JswvFqwwCa90GkxQ09RZVWuyPIHl2+rILk/GqafQry6KmIZeWsA1IsvYj7o/snJVc6KdG7re5Fz5D5oD+CSIgsyDXVx5n6spsUdZbwjdR4kgWSftB3Tpg2iSneMd06YNogJx0Km2onGKHTRQApxipSrN4d0Tmgqcq3eCAjPN3FXw9Xp8bip4eEDBIjREmjoqEgERb2QJImJYn9431WTsSVaN2I2vdXh7MZc/ePqvX+yyAdHO9UAFs5B/jHqvHzsKtnhGneyiFwiO9Vr/unZ/Md6oBTZyFxeEQa6Hlrnb6hSn2SN/muWv8Auk5RnIKjJ5oOoRSVjA3qPVQw/ZI6v75ytw/ZZFFhHcEGhnWjiPVM+x2PsymXcReuUE2NdQlg+yiN/Pcox7LJhpDmxyCLg8QUDdiuIMEzDgNLfC8inMUd+q2mY5Asag66nvWi47BnYkvi7GxYjnmHG90XHjmBYbd3LpkedyG/hJ1HCnPkgOYfB4jjwI+dEWhwRUNde1afd4Uqg2FzjHNIJ5cfmiz30FddPggJtYBflwGiUdtsbEKGaXJsKXJ6AdUTnsTDcrHUqeq5vtJiXvZlmaohsNamtyNOw0QEMEpKwnO/5sSjnuIOpvTy0UuH4wYj+JOanG/QXSNtHtEXWzWBsB9X7qvhkbEHwwyVl4mUk1e1pv2cbBB2RuIwIQzR4rW/huT+vRRHa6VykNY91TqR8ddFxuewfEYIzRJaOSb5qF/rlqhEXGo7LOzNoa0II+BCDqe0hlHAuq4G9KjSvJc+iR2FxAcOiBzGLxH+JxNbqq6OeKBlMShVedNSCLcEJgTZ0rZXGvzU52QTMN0/bOQcsqz8Rc71Jp8AFz8t3l0yTh5YEMcmN+QQbQdVHiRW8I3UeIfkgW3eMd07YILJKd4x3TtghsgvTIQ2Oik0hscIBc01VZMbwV6YCrybN4d0BGeZuKjItui89D+zVOQZ9fX1ogLSIV66rSYoiIh90BZsBSiCrggqUQkA73C2EBERBUrZdAPbBUrZdUMe2skZL/3Ewxrv5bd+J/obUjuaLn2Oe3FgqJOWLvxxzlHcMYSfUhB1gQKCpIAGpNgO5KTsf9p2HS1WiKY7xYsgDMPN5o34rhW0e2U7PH/iI7iz+W3chj/sbY9zUoCg7NMe3Af8uTPTPFA/8WlApj20T5dVsOA0fw5XO+OYfJc1JWAoLE1OvfGdGJ+0dEMQnhmJzelV1qBPiNAD2uAzit9DUVp/lcdKYdmsZLB7p1cuoodK6240KB6wvEHwjlfXW161FK6pplseERoINB9ClOhSW2Uc+GHNBJFw5psfKtq/qtMOngXOaQQ4cKetu6BolJ4OjPdEIIAoKm5ryt2SVtlOh0WjeAsBoKryPiIhzDHOG4HEEdS2g+NFJgEk2bmKuGcZr1NLcT8rILmxGybXuEaMK0u0E/Gi6LMPaBkqWgXqw0oR00VKNNCAA1pFLAG1KaWWpcXtvf4+SDdmMzTD9nMQ4jb7sXxfoqM5tJME1iygc0DVuRw8qXB8kNxXDy4H3dWdv78OyRZ2PHhuoIjhQ86IDeL4lKRA4xpbKa7u5Q8eKSZ6FL13M1OquxsajusXl3e/zQ97y43HwQQQ4I1AV6VaOKjDaKVgoC48kGM3nUHEgDzNF1eYZQU5UHoue7HSPvZltfDD+0d3HhH+r5FdEmCgpsF1FiWimYLqLExZAtA7/mnjBTZI9d8d08YLogJTCoRwiEwqUYIBkw1V5MbwV2Yaq8kN4d0Buch/ZqjJMReZb9mqMjCQXYENWx9WXsKCrAYgcWwVrOx4UBhiRojIbBq57g1o8yk32g+1CBIEwYIEaapdtfs4Z/6hH3uOQX50qCuBbQ7STM7E95MxXRDXdboxnRjRYd9eZKDtW0HtnlIVWysN8y7+K8OFXu4Zj5N81zPaH2n4jNAtMb3MM2LIAyW5F1S8+oSbnXhKDQ/PVeFbELxB5RYQvViDQhehbFeBB5RZDeWkEaherwoOgbLY+ILQ4UMInfBuWHiCOXXkjePQmZmTUGjgSM+lKaLlchNmE6ouOI5p12fx73PiOaXfqRenQjUIL8XBWxXZs1Wk1pfTXgjuHmXgtDMkNrjY5rE34VQTGpp8vR8EB8F9Tu6t4mlL6U7JJxOeMVxIeT3rVB37CyxwFQx4I5Vp5lW5qHDaCRlFuA+C4ps5tbFlm+7d4a+LU9qpth7XteAM3lpXvdAcmG5hmJqL9Ur4ph7HAucL9bU7mqlm9pIUNpqKn4+XJLGLbRtebCx+q90FCblmjwqmYXFbxZvlet76LQRaa8UGmW/yCjjvLjQdB1JNgFDFm729U5bHYCaNmIooNYTTqf8AqEfL15IGHZnCf2aAGup7x29EPXg3sBbvXmrsYqV77KCLoghhm6ixI2W7dVpiQsgWHeMd084GbBIsX94O6eMC8IQFZhypRXq7MFD4pQV45UEiN4d1JHWkh4h3QMsyPs1Ww9isTHgUcgEBeGPr67KyyDUcPP8AwoYIV1osg+WohJJJJJJqSTUknUknUlaELFiDUrKrFiDLL2ixYg8NF5VYsQZVeLFiDF4sWIMKnkp10Mml2nxDn17rxYgONq6HmhRKtr4K0p5aV6IXFc0m4NfQ/wB1ixB7DmMoobj6+K0c7+A+RXqxBE+ZcbOqaLQxlixBjYxC8LydSsWIJ8NaBEBN6EGhXUcPxDO0DWy9WILz1o82WLEFdhutcQK8WIFqMN8d064H4QsWICUeypRXLFiCpFOq0kTvDuvViBnincWsgFixAYghXWtt/j9VixB//9k=" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="223" src="data:image/jpeg;base64,/9j/4AAQSkZJRgABAQAAAQABAAD/2wCEAAkGBxQTEhUUExQWFhUXFxgYFxcWGBocGBgdGBwYFxgXGBwYHCggHBwlHBcXITEhJSkrLi4uHB8zODMsNygtLisBCgoKBQUFDgUFDisZExkrKysrKysrKysrKysrKysrKysrKysrKysrKysrKysrKysrKysrKysrKysrKysrKysrK//AABEIAKgBKwMBIgACEQEDEQH/xAAcAAACAgMBAQAAAAAAAAAAAAAFBgMEAAIHAQj/xABEEAABAgQDBgMFBQcBBwUAAAABAAIDBBEhBRIxBiJBUWFxMoGRBxOhsfAjQmLB0RQzUlNy4fGSFhckQ2OCshU0c6LC/8QAFAEBAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAP/EABQRAQAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAD/2gAMAwEAAhEDEQA/AOHr1rVJQBetigcKoPG5VjSOS3MSvBW5JsMnfsghl3w/vAo5IYPCjDciX5VRLDNmIMbwvUe0Gx0SVAiQyaDUj8kA2bweLBdcVHMIxhsBrgDo6oVvZjFXOGSMMzf4imaT2eYIjXt8NQaIL4l/+HBOtLK1s1Ph267VT4/PQ2wwKgClAOfVJ0Od9zmin7ozU5/5QOO2+07JOFkaftXi1KVaOfLMeHmeF+TyOHvjkxYlfdg5qE2GtTc3dqSTf8siYi6YiOjRXB0Rxo0HgfwjkPgBzKvwY+egz5YY3a0oHEUqG/eDRoaU5caoLYy2EMUFbCljrqaWvqRpz4qtMxDEiUqXONg1lh0udAOZI/JRUiRnlkElrGgZnZautalv/GmUdTYm8A2biRjlgghh8bzq7u7l0HxsUEMnhjgAXvbBYDcAangczruP4aGiKSWDw45JzzD+1WsPGlS0jXsnDCtkmw/3hzOpyqR2r/ZNEHDWtoGADv8AOyDn8pse51mwso5vdfvYqxF2FJ8TGn1t51XSoEEAWp31Ws3Eo2vUckHLZnYbIBlJJraprTlQ687GqE4rhjm2eKHnS3Q9F0/EIh4U7/qhM9Ba+oOo4oOVTmAuf4burx40QyZ2edrcGhDgeQNR5ix8l1GVw4NdSltR35DovZ2Ua6tRVBxSYwlwNaW404V1/VU5WZfLuoaljtRwcP4u4XUZzDGg1+XL/KWMXwpjjlp24fkgklyHsDmmoPFU8Qh37KPAYToMR0F5q1wrDPMjUfFEZ6DQIAMJlyq2JMRKHDuVTxVqAFxTVgLN1KxF027PDdQbTrboZHCMT+qEx0FGIrOG+IKtEVnDPGEBuc8IU+ElRTY3QpsK0QMMurrRb6/RU5ZXWlByiHgmbWyrzGG5TQXTPBxyE6ETYO5FDJmYZDbmJBJ4IA8rBqaI3AwtpFwh2EuzOPUpwkZOyANDkXwSHwnGoOiYztp7yWMCLDOYiitwJIaK07DITB7x4FBe6CnsngZy0cDRGMRhxYcAiGKkaII7burhDhQ6CtK/2Ts2cZ7pufUi4pVBz2QlI0V+eObDRv1xW+2gMOCxg8UQ5iOTG8TyuU1mEwuqLAXuEpbSxf2mZo2zGtALqGpvWnbSwF+qBYlxkG9WrxQAUs3kORcOPAV5lX5OG+LEbDYRXQvAplHJg4AUpWgNrC6YnbO1aCQQTxPivYi3Lif8JrwLB2wwKNANaaX7Dsg12Z2SZaH91t3deYPP5BdAgSrYbQGgNaNPr6qqsgAwUAvan1RXDbW50tw5/wCUGBtb3vy4Kwxp526XPq5eF/4qacvko47zpcc6HXyHBBmdtyXxOWtNOoHyKpzJa51DFe3kMw/MLd4BuRpYZmg+llmYsuK9QIZ68tUFCahh1AIruxLTQeiGzViAMtKU41J5n+ytT+ND+VEJ/wDiebD/ALULdOk1P7PG14wnD8kBB0Og0N9bVCrxmAitPM1uqzsRLsrWwY2bS0Nw+JC1xH31B9nT+p7QfQFBRxCA00obDXe+VUtzkjndrp0vU/NHo8qQysRhqRej/wBChsWG3WhroTmr5DzQLU3JEtoaEg1Dhz/Ir2VmPfQqnxNOVw6hEMR3W5qmh0rbTXugUm7LHBHhiih/qGmiCVsC5Q3F4aZGwrmyE45AQJ7tU2YAN1K727yb8BZuoNZ0XQuO1GZ5lyhMyEA6IrGGnfChiKXDhvhAenXboU2ElQTvhCmwooGOXKvMiUCoQCrza80HEjLuGi89246pogSPRSxcGrcIKGz0DfT3KQ7JewvDiw1TdKQbBBalWgaoRteXOaGN0Jojgh0CGPcHPyu8kAnDNlSS0gX1RDF5mJL+IaCxTpgsm61BVaba4Q6NBIbDJPQXQc3G0RPiNuVdUQ2ZkTFi1dYk1d0BNhTpftStNEoQsAje+DS17RW9QRQLrmzGEENLxUgitrCmg3j2AQSzkdpLacKAd/CGgdK/A80SkRvVzA3y+nQ6Ki6VLnHTIHUAHGgqaW4m/YDmikBrYYZnsTUj1u7vWgHoguNiZXVpU8AVpL4o4uO6AoDMtdZoJNdR8R1VmFCNa16U5ILwiVIJpUcgpW8gLDUj86qKSkiTU3+uCKjJDG84AD60QDBLPddrO2ZxFPStCtix4Bz8uB1VHFtuYEE0DXOtXgPXMRRQy22UCK3M7c5guaR8DqgvNYTStTewrQAU6qhiUU3FCKU0C2dtdL0IhuBI4NvQcz8UFmcehvpfWtib9yAgllIr81L1W01KRHEUI7kVA+CqSc273ZIN81B+noi89iTGEVdq2w/NAIncMtR8RtKaXHxBS5OYaC4iG94ppQgjvQglHJzHoQOVwG7rUoVPbVwWg0hgkch8P7oFHE5OK071xzFrHndC4hpTo4FM8xjMCYBbT3cQ6B1qnkliPqfke4sgbocK6F45CRTDBVja3OUfJQYvDqg59Gh73mnHZ+Fupbmoe/5pwwCHuoK0/CuUFm4WqaJ+FdA5yGgARWLfDvEFLHhrJBu8EBmcG4FJhYsvZtm6FthjUByXGiJMbYaqhLBE26IFCFLq/BllNBhK6yHZBDBlwiUuxQw2K9BZRBJDg1S9tRh72j3jNReya5cKaJADhQjVAnbNe0Qwm5Xtq4Jib7WMoP2Jce4+aStrdjyHF8O1UpxpCO210HRf9qjOTDQYTWgnSvp3vwTyyKRCG8AKBreFbtY3tVzvTsuKbES0Yz0EG7cxLuQo1wBPmRbnRdYnsVEMC4yszZa2BNCW+YqPSqBkl4bRmBOgpU8SaX+N+6jdINito8VpvAD1HmD8yufv9o0OEHMijMW5hlbqb110B09OHFdxL2qzZJEs1sEHRzgHxKee4D5Hug7VHgQoMP3kVzGMAu55DWjzcUo4v7S5KA0mEyNMtaaOfDhlsIGlgYj6Cp6Ari05NTE28GNEfFiE2dFfp0bnNh/SAE0SWxsWLDDI02yGwbzYUPNFOYimcirWg8K3NEByN7eIo/dyUNvLPFc63WjWoLP+1yaj7v7NAvwb70n4OSdGwMw5h8KKd1m897NMtLOBItUkC/E0Tbh20+SHoWS8PdhS8KjPeuAu+M5gDnDnxJQCZzat7/HKgaVu8C3cfEoXM4w17q/aMPU5qdBUj5J0gbWTMVrQxzG1qDDZBAbDvRuZxO+XX504lD9pZOZhj7YQ3g3q0XvpogWZeKDpEoT3CY8Bac4IcXONqnqlZ0JpNxQHiLfJWsH99BiQ4sI1YYzYW8d3MaHK4V5GoNtDyQdoiQTCgZieBPc80uY3ioDWlzhXKAOJ04Jh2ihTYhtq2paBnAaygANzuxSTbpwXMNp5+A5jIsIxIjqlsStWw2G+VtCyuYgV1PFBVxGLnv7xwHfVVITODY9+VbfBSwpGae3OcsNvN4A86UJp3VKec4GhjOfTiAQPK6C37qLWpAc0cb2pTwngVaBzm9zm1680EbDzaxXDvU//AKVg4TGAzw3F4/CTm/06oOmYa2jGjp8tVHizVzeW2lmoWkZxpwfRw/8AsCuiGK58GG94Ac+G1zqaAuANqnqgUJmFv+acMDZupamWb47puwSHuoI5xlygc7D1TLPQ7lBJxiBdjs1XkizeCtTUPVQyI3ggMTjdxa4cFPODdUWHoDsqNEWY2yES5RNkSyAdDarDQtGw+StQ4dAgyG1WoY4KJoUrQgswTyKuSoJKpQdESkhdBZj4dnalLFcVk8LdmjQffx3XbDsWsHM1tU9V0CUXDvagTExB/GzR26fFB0PZr2g4fPPDHyzYMX7mZrd7+hzeNOBU+2ey7JuC6HBjOhVcHeEOaSBQNNwQ3seS5LEwGIIAiNH3t2mtRoa/FOeAbVuysMQUeBR4IFA4WqO+qClgfshivJ9/FaxjT91pc53athUniCmmU9mEnCLc3vHmn3nAVrxIAAHC3fVN+F4i2JCMQGoq1orxdegAGuunRRzswPe5Rcuc6vSgaLdLhApTXs/l6D3bGtdqbegQafhNlt3de/Q3plHccV0YzDWNLnXFbnW3K6pYzIftDB4mg3/hIb0AuO9Qg46+RjTLorWNIMZkMEG5IhxSak0H4D6JikNhILIeWLEDY9CAH0yOzcjwIPH4ohJyggRMwsWl1KXqHZakk6mra3VnGJqHMNy6PFNeNkCCdlHwIh943zaK1HQi1xRGZt8SKwijuQDrADhcqvMYZMgktc7ycqsXCo1PtohH4Sb+iACcIeX5RQ3oaGo8ldnMGjQYBhNBL40SFlb94FhND0O+m7ZrCGg5n2aLgcSUx7L4YYs2Yjhuwqurzea0HkPkEDjKYHDZLMERuaJQZ3nxF1LmuutVwnbXDv2acMNgJggujtadPeOIDiedKCi+i4zvsndPnyXFvaIz7eETxJHavCvkgAYbLRJh2aLXLwqKDyCh2tw0OymGxgFrtbvVApvGpNOPdFTFy6OoeSinJiI5tMzS3qAT2vdAkGVIsB3Pn/hWn+9bRrKkur4det+CLwoA3q+VNL9ldmg5rW+7u5xay/DNxtr5oADdnHRJiDCO66I0viOBrQCuY0pY0HWpK6LibABQaAADoBYKBsJjZqGT+8dDiBv9IeAT6tcPVWcV/JAoxhvjunXAYe6kx4+0HdPOACyDyfh6oDOMTPiDEAnoaBdmG6qGRbvBWppqryHiCAxOt3FXw9quTngUMggKQVcCrQQrgb0+KCKGrLVGGqZBIApFpDUpagmgnoiEq5D4IV+VCA3JmtjxXJMQwgmci5xvNflPkbHzF11mTQfazCxUTLRegZE7aMeext2I5IFyZa1ksPw8bXXM34vSYq+zCaE8taO8l0XGYRfKnpWorxXN4eEuiR4bBYue0V5Ctz5IO54PhroMm2G4kPDS4V+654NPSvqFrNtf73OKnK1waCbHSlO9BdMER4iOOtrd6Uv8VRmZMsaQO+tvl1QC8LxAxA3O0sdRpLb2cf7g2RWDMhwJcKtrujmB951eFa281RnYZyn3V3G4uNdK07ITOYoYbi1wNhSg3q05U7ILmMAOu6hry+7yoP4knTcuGuL3FtOebL663VfEtpjmLszaaZbAg3rm4itfghEkXzcRsN1m13uFALlAwwo0aJQQjlafvUJNOJBJoPgpBKwIR32ve83qXMJ7+JHZeE2GwQ4TRQfe58vkhmPYjDlmVfvOPAW9UE8pEDwQ37JmjosQirR+EcXck14FOQRByS7HZW2zP8TzzJ41XO9hYf8A6hNOiTBHuIIBEOtGlxrQO5gAVp2XUYuJQLNa5g7EUA7ICku3NDOaxpW65n7SJIvh1bqzeHE1F/RM2KbVQ27odVo5cUiY1j7d7K6tdUAPDY8KMwMfZ44aGvSuoXkSXczRxp+IVHmQhOHNgufkfet2niOleiLRsNfDG692TnU/Gn6IPGy5N3U6ZdPNGtn8PfEJeWjJCaXlziANzjf7o1J4dyAlCbdHhu/eOy8C0/moo0+8w3DO6jgK1cSXU0zEmppyQHMMmxHnzEBqwNLIddcorQnqSXOP9SYsUFvJKWxMImMXcAKk97D803Yn+SBTeN8d074EbJJePtB3TrggsguziBToR+aCCzkOyBdm2qnJDeHdEptmqpSjN4d0BicG4ocOCtTrdxQ4e1AWl2Ii2BZVpNl0XayyAY2GpsnNLAxl/JSjG3ckDQ2EtxDS23HjaymbtCaaIGNrCrUAJP8A9oncirEDaJ2pBQPso1EvdhzS1wqCCCOYNikqR2mHEIzA2iZa6BZxZ4k4hEYEwiaEjtuu8xbuCrcjs5KTTRMQC5j2UOQ0PUac1a2nmYceHcVoKOH8TT+Y19ULwPZuLKQnxpeJuupSh1HVAX2WnIhjzEOIDRuQsPD7wIHHgj82M46DW/wSxsY+IRGjTBNXuDGA/wALNSB1c/4I9Ged4gjSgsgozExkuG8eNvVLuPF2Ue6yh9C55c4ZwCLlgcRX169zGYuN2k0NCOq3mMChxCXOAaXa11HAfWiDmclgUefeXhrWgAudELgGGmlKVPDmmjYHZ9zM7ou87w1vcHUgnpTgjR2cz/ZwnPhg0qWUDaU4jT0/wzS8u2WghgvQaupU8yeaBa2gxJsvDJAFbmtaeQ5rmctKRcRjk3y8Tf0RvaqYiTk0JeEP6jwaOJNk97NYTClmBjRSmteJ5+qAFPbCRoUof2U75u9hNM1vun9Vy+YkJuC4udFc13EVNP0K+jXT1QRm0H1ZKe1+CsjMJuDSvfsg4nM4u/g+vPv0qqb515rqik7geR5B9eHqq7ZOhCCOXgPy5+Lb06JswvFqwwCa90GkxQ09RZVWuyPIHl2+rILk/GqafQry6KmIZeWsA1IsvYj7o/snJVc6KdG7re5Fz5D5oD+CSIgsyDXVx5n6spsUdZbwjdR4kgWSftB3Tpg2iSneMd06YNogJx0Km2onGKHTRQApxipSrN4d0Tmgqcq3eCAjPN3FXw9Xp8bip4eEDBIjREmjoqEgERb2QJImJYn9431WTsSVaN2I2vdXh7MZc/ePqvX+yyAdHO9UAFs5B/jHqvHzsKtnhGneyiFwiO9Vr/unZ/Md6oBTZyFxeEQa6Hlrnb6hSn2SN/muWv8Auk5RnIKjJ5oOoRSVjA3qPVQw/ZI6v75ytw/ZZFFhHcEGhnWjiPVM+x2PsymXcReuUE2NdQlg+yiN/Pcox7LJhpDmxyCLg8QUDdiuIMEzDgNLfC8inMUd+q2mY5Asag66nvWi47BnYkvi7GxYjnmHG90XHjmBYbd3LpkedyG/hJ1HCnPkgOYfB4jjwI+dEWhwRUNde1afd4Uqg2FzjHNIJ5cfmiz30FddPggJtYBflwGiUdtsbEKGaXJsKXJ6AdUTnsTDcrHUqeq5vtJiXvZlmaohsNamtyNOw0QEMEpKwnO/5sSjnuIOpvTy0UuH4wYj+JOanG/QXSNtHtEXWzWBsB9X7qvhkbEHwwyVl4mUk1e1pv2cbBB2RuIwIQzR4rW/huT+vRRHa6VykNY91TqR8ddFxuewfEYIzRJaOSb5qF/rlqhEXGo7LOzNoa0II+BCDqe0hlHAuq4G9KjSvJc+iR2FxAcOiBzGLxH+JxNbqq6OeKBlMShVedNSCLcEJgTZ0rZXGvzU52QTMN0/bOQcsqz8Rc71Jp8AFz8t3l0yTh5YEMcmN+QQbQdVHiRW8I3UeIfkgW3eMd07YILJKd4x3TtghsgvTIQ2Oik0hscIBc01VZMbwV6YCrybN4d0BGeZuKjItui89D+zVOQZ9fX1ogLSIV66rSYoiIh90BZsBSiCrggqUQkA73C2EBERBUrZdAPbBUrZdUMe2skZL/3Ewxrv5bd+J/obUjuaLn2Oe3FgqJOWLvxxzlHcMYSfUhB1gQKCpIAGpNgO5KTsf9p2HS1WiKY7xYsgDMPN5o34rhW0e2U7PH/iI7iz+W3chj/sbY9zUoCg7NMe3Af8uTPTPFA/8WlApj20T5dVsOA0fw5XO+OYfJc1JWAoLE1OvfGdGJ+0dEMQnhmJzelV1qBPiNAD2uAzit9DUVp/lcdKYdmsZLB7p1cuoodK6240KB6wvEHwjlfXW161FK6pplseERoINB9ClOhSW2Uc+GHNBJFw5psfKtq/qtMOngXOaQQ4cKetu6BolJ4OjPdEIIAoKm5ryt2SVtlOh0WjeAsBoKryPiIhzDHOG4HEEdS2g+NFJgEk2bmKuGcZr1NLcT8rILmxGybXuEaMK0u0E/Gi6LMPaBkqWgXqw0oR00VKNNCAA1pFLAG1KaWWpcXtvf4+SDdmMzTD9nMQ4jb7sXxfoqM5tJME1iygc0DVuRw8qXB8kNxXDy4H3dWdv78OyRZ2PHhuoIjhQ86IDeL4lKRA4xpbKa7u5Q8eKSZ6FL13M1OquxsajusXl3e/zQ97y43HwQQQ4I1AV6VaOKjDaKVgoC48kGM3nUHEgDzNF1eYZQU5UHoue7HSPvZltfDD+0d3HhH+r5FdEmCgpsF1FiWimYLqLExZAtA7/mnjBTZI9d8d08YLogJTCoRwiEwqUYIBkw1V5MbwV2Yaq8kN4d0Buch/ZqjJMReZb9mqMjCQXYENWx9WXsKCrAYgcWwVrOx4UBhiRojIbBq57g1o8yk32g+1CBIEwYIEaapdtfs4Z/6hH3uOQX50qCuBbQ7STM7E95MxXRDXdboxnRjRYd9eZKDtW0HtnlIVWysN8y7+K8OFXu4Zj5N81zPaH2n4jNAtMb3MM2LIAyW5F1S8+oSbnXhKDQ/PVeFbELxB5RYQvViDQhehbFeBB5RZDeWkEaherwoOgbLY+ILQ4UMInfBuWHiCOXXkjePQmZmTUGjgSM+lKaLlchNmE6ouOI5p12fx73PiOaXfqRenQjUIL8XBWxXZs1Wk1pfTXgjuHmXgtDMkNrjY5rE34VQTGpp8vR8EB8F9Tu6t4mlL6U7JJxOeMVxIeT3rVB37CyxwFQx4I5Vp5lW5qHDaCRlFuA+C4ps5tbFlm+7d4a+LU9qpth7XteAM3lpXvdAcmG5hmJqL9Ur4ph7HAucL9bU7mqlm9pIUNpqKn4+XJLGLbRtebCx+q90FCblmjwqmYXFbxZvlet76LQRaa8UGmW/yCjjvLjQdB1JNgFDFm729U5bHYCaNmIooNYTTqf8AqEfL15IGHZnCf2aAGup7x29EPXg3sBbvXmrsYqV77KCLoghhm6ixI2W7dVpiQsgWHeMd084GbBIsX94O6eMC8IQFZhypRXq7MFD4pQV45UEiN4d1JHWkh4h3QMsyPs1Ww9isTHgUcgEBeGPr67KyyDUcPP8AwoYIV1osg+WohJJJJJJqSTUknUknUlaELFiDUrKrFiDLL2ixYg8NF5VYsQZVeLFiDF4sWIMKnkp10Mml2nxDn17rxYgONq6HmhRKtr4K0p5aV6IXFc0m4NfQ/wB1ixB7DmMoobj6+K0c7+A+RXqxBE+ZcbOqaLQxlixBjYxC8LydSsWIJ8NaBEBN6EGhXUcPxDO0DWy9WILz1o82WLEFdhutcQK8WIFqMN8d064H4QsWICUeypRXLFiCpFOq0kTvDuvViBnincWsgFixAYghXWtt/j9VixB//9k=" width="400" /></a></div>
<b><br /></b>
<b>Por Christiano Galvão</b><br />
<b>Do Blog Miméticos</b><br />
<br />
<div style="text-align: justify;">
Não será novidade para muita gente que Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir, dois dos nomes mais notáveis da filosofia do século XX, compuseram um modelo alternativo de vida conjugal, tido como moderno, que se distinguia pela renúncia do casamento formal em favor de uma devoção erótica recíproca, porém aberta, que não lhes tolhia a liberdade de manter relacionamentos paralelos. Para eles, mais do que um pacto de amor, isso seria uma tentativa de derrubar a hipocrisia do velho modelo de matrimônio que, por tanto tempo, havia padronizado e sufocado a maioria dos relacionamentos afetivos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Porém, o cotejo de duas recentes biografias de Sartre parece evidenciar que esse pacto de amor, provavelmente, foi uma moderníssima mentira romântica, que ocultava uma insidiosa dinâmica mimética. A primeira dessas biografias, intitulada “Uma Relação Perigosa”, de Carole Seymour-Jones (Record, 2014), apresenta esta dupla, presumidamente desprendida, ora como sedutores em série empenhados na mútua gratificação, ora como um casal que se valia da crítica filosófica para justificar a necessidade de múltiplos amantes — cuja maioria eram adolescentes que saíam arrasados dessas experiências. Guardadas as devidas proporções, eles estariam vivenciando o mesmo concurso de sedução mimética do Visconde de Valmont e da Marquesa de Merteuil, os famigerados anti-heróis de Choderlos de Laclos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Se, em seus romances, ensaios e pronunciamentos, Simone de Beauvoir pregava o ideal de emancipação feminista, rechaçando conceitos “burgueses” como casamento e família, sua correspondência íntima revela uma mulher amarga, infeliz e obsessivamente enciumada pelas inúmeras conquistas do quase cônjuge. Sua retórica inovadora é incapaz de ocultar o sentimento de revanche, e por vezes de frustração, com que ela entrava e saía desses casos — e cuja expectativa ansiosa era provocar o retorno imediato de Sartre. A dupla mediação dos desejos que vigorava entre ambos fica manifesta no acordo tácito pelo qual Simone só encaminhava para Sartre as jovens amantes com as quais ela própria já tinha se deitado e “aprovado”.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A biografia, contudo, demonstra que quase sempre Sartre estava um passo à frente dela — muito embora no princípio não tivesse sido assim. E é a partir desse princípio que a pesquisa de Seymour-Jones nos permite vislumbrar as raízes da rivalidade mimética que simultaneamente os atraía e afastava. O duplo vínculo teria surgido em 1929 quando os dois prestaram exames na Sorbonne. Sartre, que até então era só um burguesinho provinciano, atarracado e estrábico, transformou-se num ímã de mulheres após os resultados brilhantes que lhe valeram o primeiro lugar. E Simone, que ficou com o segundo lugar, notabilizou-se como uma das primeiras mulheres a ingressar naquela universidade. Consta que, quando eles foram apresentados, Sartre teria feito questão de ressaltar que ela era mais inteligente do que qualquer homem; e logo em seguida teria lhe proposto casamento. Simone declinou, não por razões filosóficas, mas porque já estava tendo um caso com um dos melhores amigos dele. Era o dia 1 de outubro de 1929. Foi então que Sartre lhe propôs o pacto: eles viveriam um “amor em essência”, mantendo um relacionamento não exclusivo, mas inclusivo, no qual teriam a liberdade de buscar e ocasionalmente até de partilhar romances. Havia, porém, uma condição: eles deveriam manter tudo às claras; aliás, deveriam descrever um para o outro, nos detalhes mais íntimos, cada uma dessas experiências.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Era o início do casamento aberto e da correspondência que testemunharia sua realidade. Durante os primeiros anos, Sartre entrou no jogo com entusiasmo, até porque gostava de iniciar virgens. Todavia, rápida e inesperadamente ele perdeu o interesse, deixando a fogosa Simone, que já dispunha de um gineceu de alunas, profundamente decepcionada. Algumas cartas desse período escancaram o quanto o interesse dele condicionava os desejos dela e, sobretudo, como ambos rapidamente encontraram neste “pacto de amor” as mesmas amarguras e frustrações do casamento convencional.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Não obstante, mesmo durante a ocupação nazista que os afastou temporária e geograficamente (ou talvez em função disso), a emulação sexual deu continuidade ao pacto. Simone continuou a seduzir rapazes e, sobretudo, moças, escrevendo relatos de suas atividades (tão excitantes quanto insensivelmente cínicos), que eram remetidos para Sartre, atrás da linha de Maginot. Ela conta das muitas alunas-amantes que disputavam sua atenção de forma doentia, chegando a citar uma que se automutilava e outra que cometeu suicídio. As outras são pateticamente descritas como meninas dependentes de uma professora sem filhas, e que ela, talvez com ligeira perversidade, mimava como filhinhas. Contudo, seria uma destas filhinhas que haveria de abalar profundamente aquele pacto de amor, fazendo com que sua recorrente estrutura triangular se convertesse num polígono.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Tudo aconteceu quando Sartre sofreu um pequeno colapso por causa do uso de alucinógenos, e Simone pediu a uma de suas mais novas alunas-amante que lhe servisse de enfermeira. Mal sabia ela que esta moça seria pivô de outro concurso de sedução que envolveria sua irmã e o romancista Albert Camus, e deixaria Simone num de estado de ciúme incapacitante. Este caso é mais bem esclarecido pela segunda biografia, intitulada The Boxer and the Goalkeeper: Sartre vs Camus, de Andy Martin (Simon & Schuter, 2013), ainda sem tradução em português. Lê-se nela como Sartre tentou resgatar seu apetite de mulherengo desenfreado por meio da amizade com o escritor do momento — o moreno, alto, bonito e sensual argelino Albert Camus, que logo aderiu aos jogos sexuais do casal filosófico. Camus foi para cama com muitas das meninas enviadas por Simone, exceto com a própria Simone, a quem ele desdenhava como “uma tagarela, pedante e insuportável!…”. Simone obviamente detestava Camus, e não escondeu a apreensão de que fatalmente ele pudesse acabar com a brincadeira, tornando-se um rival perigoso não somente para si, mas para o próprio Sartre.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
E assim sucedeu. Em termos quase girardianos, a pesquisa biográfica de Andy Martin sugere que Sartre só veio a sentir atração pela enfermeira enviada por Simone porque Camus sentiu isso antes. O nome dela era Wanda Kosakiewicz. Durante anos, Sartre tinha sido obcecado pela irmã mais velha de Wanda, a atriz Olga Kosakiewicz, uma das poucas amantes de Simone que o desdenhara. Nem mesmo dando-lhe papéis em suas peças Sartre conseguiu levar Olga para a cama. Ela era o objeto inatingível de seus desejos, o “significante transcendental”, como seu amigo Jacques Lacan, teria dito. O caso com a irmã Wanda tampouco foi bem-sucedido, porém por razões inversas. Ele desprezava a menina e chegou a dizer-lhe que ela tinha “as faculdades mentais de uma libélula”. Modesta, Wanda acatou o insulto como uma crítica; disse que não pretendia ser uma filósofa como Simone, mas sim uma atriz como sua irmã Olga, e admitiu que talvez não tivesse nenhuma aptidão para o sexo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Sartre se ofereceu para educá-la!… Mas só depois de dois anos, num hotel em Aigues-Mortes, sul da França, ele conseguiu a “desvirginação” — expressão que consta na carta que foi enviada para “cher Beaver” (Beauvoir), e na qual ele diz o quanto lhe foi odiosa aquela experiência. Mas no mesmo tom de divertimento cínico de sua quase cônjuge, ele diz também como ludibriou a menina confessando-se perdidamente apaixonado e dando-lhe papéis em suas peças.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Essa situação iria mudar drasticamente quando, em 1943, Sartre convidou Camus para assistir o ensaio da peça ainda inédita Huis Clos (Entre Quatro Paredes), que aconteceria no apartamento de Simone. Foi lá que Camus conheceu Wanda, foi lá que se interessou por ela, e foi então que sobreveio a mudança na conduta de Sartre. Numa carta datada do final daquele ano, Sartre escreve para “cher Beaver” dizendo: “O que Wanda acha que está fazendo, correndo atrás de Camus? O que ela quer dele? Eu não sou muito melhor? E tão mais gentil para com ela. Ela deve tomar cuidado.” Mas Camus talvez já tivesse captado a complexidade daquela circunstância, visto que, posteriormente, ele escreveria, em La mort heureuse: “É por isso que, apesar de tudo, é bom ter tido um grande amor, uma paixão infeliz na vida. Isso constitui pelo menos um álibi para o desespero sem razão que, invariavelmente, se apodera de nós…”. O biógrafo Andy Martin diz que a disputa foi tão intensa quanto tempestuosa. E, inopinadamente, Wanda conseguiu emular Simone obtendo seu próprio mégane-à-trois com dois filósofos célebres. O casal existencialista jamais perdoaria Camus por tamanha desfeita.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Com efeito, a ruptura da amizade, que já havia azedado, deu-se definitivamente com a publicação em 1951 da obra-prima filosófica de Camus, L’Homme revolté, (O Homem Revoltado), e a crítica devastadora que Sartre dedicou-lhe no ano seguinte. Martin deduz dos argumentos deste romance um reflexo quase fidedigno da rivalidade latente entre os dois homens, e então abafada nos debates públicos. A interpretação de Martin se baseia no fato de que, dentre todos os pensadores referidos por Camus neste livro, Sartre figura como o ilustre ausente. É como se ele tivesse se tornado naquele que não podia ser nominado. Forte indício de um ressentimento recíproco.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Esse ressentimento se fez muito óbvio quando ambos ganharam o prêmio Nobel. Sartre quase surtou, em 1957, com a notícia de que Camus havia recebido este prêmio, consagrando-se como o contemplado mais jovem da história do Nobel. Anos mais tarde, em 1964, quando foi a vez de Sartre ser contemplado, ele prontamente recusou a homenagem alegando que isto faria dele uma figura do establishment e imporia limites à sua mente inquiridora!… Esta discutível declaração, tanto quanto a recusa, talvez, tenha sido a melhor vingança pelo ultraje de haverem premiado Camus antes dele.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Cumpria-se assim a previsão de Simone de Beauvoir, que nesse meio tempo, atordoada por não encontrar espaço nas disputas entre os dois, havia se autoexilado nos Estados Unidos, onde foi viver com Nelson Algren, um amante americano. Ela tinha 39 anos, há meses que não saía com ninguém, e agora, pela primeira vez em sua vida, conseguia ter orgasmos completos. Antes de deixar a América, Nelson Algren lhe comprou um anel de prata barato que Simone iria usar pelo resto de sua vida. A relação entre os dois não durou porque Algren não estava disposto a entrar no jogo da filósofa e ter de partilhá-la com Sartre, ou com quem quer que fosse. E mesmo dizendo em algumas cartas que desejava Algren apaixonadamente, ela não conseguia ficar longe do comparte Jean-Paul Sartre, cuja presença, mas do que qualquer orgasmo, dava sentido e plenitude à sua existência. Com efeito, na carta de despedida para Nelson Algren ela escreveu: “Eu sou muito gananciosa. Eu quero tudo da vida, eu quero ser uma mulher e ser um homem”. E voltou à França.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Reunido, o casal buscou novos amantes e novas frentes de militância política. No entanto, a relação jamais lhe traria qualquer satisfação, visto que entre eles havia se instalado um tédio horrível. Por muitos anos Sartre susteve-se à custa de anfetaminas, café preto e cigarros, seguidos de soníferos e vinho tinto. Depressa ele se tornou incontinente, reumático e cego. Na iminência de sua morte em 1980, Sartre começou a flertar com o judaísmo, deixando Simone estarrecida – pois Deus seria um rival ainda mais perturbador do que Albert Camus.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Sartre, porém, morreu antes disso. As biografias relatam como Simone foi deixada sozinha com o corpo dele no hospital, e como se esgueirou sob o lençol para passar uma última noite ao seu lado. Parecia que, findas as possibilidades de emulação, ela o tinha definitivamente onde o queria. E foi assim que ela escreveu para ambos um epitáfio irônico, niilista, mas com certo tom de queixume: “Sua morte nos separou, e a minha morte não nos reunirá”. Hoje eles dividem a mesma sepultura.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Dizem que Simone de Beauvoir conseguiu encontrar seu próprio caminho. Mas em seu íntimo ela sabia que isso só foi possível porque tinha conseguido sobreviver à emulação com Sartre, com Camus e todos demais. Como ela mesma diria num dos seus últimos textos: “O tempo é irrealizável. Provisoriamente o tempo parou para mim. Provisoriamente. Mas eu não ignoro as ameaças que o futuro encerra. Como não ignoro que é o meu passado que define minha abertura para o futuro. O meu passado é a referência que me projeta e que eu devo ultrapassar. Portanto, ao meu passado eu devo o meu saber e a minha ignorância, as minhas necessidades, as minhas relações, a minha cultura e o meu corpo. Que espaço o meu passado deixa para minha liberdade hoje? Não sou mais escrava dele… Não desejo nada mais do que viver sem tempos mortos.”</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Simone de Beauvoir morreu de pneumonia em 1986. Talvez houvesse nessas palavras o prenúncio daquilo que René Girard definiu como uma conversão romanesca.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
Pró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-205942312916252074.post-25226286073798874062015-08-26T14:58:00.000-07:002015-08-26T14:58:05.242-07:00Beleza hedionda<br />
<div style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em; text-align: justify;">
<img alt="Augusto dos Anjos por Ramon Muniz" height="400" src="http://rascunho.gazetadopovo.com.br/wp-content/uploads/2015/07/Augusto_dos_Anjos_ilustra_x_Ramon_Muniz_183.jpg" width="273" /></div>
<br />
<br />
<div style="text-align: justify;">
<b><i>Por Wagner Shadeck</i></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><i>Ilustração de Ramon Muniz</i></b></div>
<b><div style="text-align: justify;">
<b><i>Do Jornal Rascunho</i></b></div>
</b><br />
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Uma das poesias mais singulares da literatura brasileira é a de Augusto dos Anjos (1884-1914). A fortuna crítica sempre esteve em contradição entre a que escola o poeta paraibano pertence. Alguns advogaram que ele deveria ser parnasiano, devido ao gosto pelo soneto. Outros viam algo em sua temática mórbida um segmento romântico. Alguns o associaram ao simbolismo, devido à musicalidade de seus versos. E houve ainda outros que lhe viam as confluências típicas na época intermediária entre o início do século 20 até a Semana de arte moderna, de 1922, enquadrando-o no chamado pré-modernismo. Portanto, é como se na poesia de Augusto dos Anjos estivessem todas elas, mas ela não participasse de todas. Seria realmente um caso de poesia teratológica?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Como dizia Silveira Bueno (1898-1989), trata-se, sem dúvida, de uma poesia de monstros, mas também de uma poesia monstruosa. Neste sentido, não se pode idealizar o monstro; embora ingente, tampouco devemos temê-lo. É preciso contemplar-lhe o conjunto, não tentando domesticá-lo, nem exorcizá-lo. Quando olharmos para ele com olhar isento, veremos que é possível traçar-lhe uma genealogia aproximativa, o mais coerente possível.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Um dos que melhor soube compreender a poesia de Augusto dos Anjos foi Hermes Fontes (1888-1930). Para ele o livro de Augusto “é a dolorosa viagem através de sua personalidade”. Mas foi Gilberto Freyre (1900-1987) quem primeiro notou em sua poesia algo de expressionista, destacando o poeta como pensador. E em relação a isso, lamentava: “Pensar no Brasil é uma espécie de pecado intelectual”. Em famoso ensaio, A costela de prata de Augusto dos Anjos, o crítico alemão Anatol Rosenfeld (1912-1973) também aproxima a poética de Augusto dos Anjos ao expressionismo, particularmente à poesia de Gottfried Benn (1886-1956). Façamos uma comparação tendo como exemplo um poema do expressionista alemão.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<i><b>Requiem</b></i></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Auf jedem Tische zwei. Männer und Weiber</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>kreuzweis. Nah, nackt, und dennoch ohne Qual.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Den Schädel auf. Die Brust entzwei. Die Leiber</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>gebären nun ihr allerletztes Mal.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Jeder drei Näpfe voll: von Hirn bis Hoden.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Und Gottes Tempel und des Teufels Stall</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>nun Brust an Brust auf eines Kübels Boden</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>begrinsen Golgatha und Sündenfall.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Der Rest in Särge. Lauter Neugeburten:</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Mannsbeine, Kinderbrust und Haar vom Weib.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Ich sah von zweien, die dereinst sich hurten,</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>lag es da, wie aus einem Mutterleib.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<i><b>Réquiem</b></i></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Mesa pra dois. Mulher e homem cingidos.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Enviesados, nus. Mas sem tormento.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Cabeça aberta. Mas peitos partidos.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Do ventre o derradeiro nascimento.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Três compotas: de cérebros a escrotos.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Templo de Deus e Fábrica do Diabo</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Cara a cara ora escarneciam rotos</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Do Gólgota e da Queda num lavabo.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>O espólio encaixotado. Renasceram</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Recortes de homem, bustos infantis</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>E coroas, das que já se venderam,</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Como oriundos de uma única matriz.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
[Tradução: Wagner Schadeck]</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Podemos notar a sintaxe incisiva característica do poeta e médico. Os versos são abruptamente cortados. E embora se trate de línguas de sintaxe distintas, na medida do possível, os períodos curtos foram preservados na tradução, o que causa uma sensação semelhante a uma incisão cirúrgica. Todo o poema parece se desenvolver de modo a frustrar a expectativa do leitor. Mas essa quebra não causa humor, antes horroriza, espanta. Todas as estrofes apresentam alguma imagem cotidiana: o encontro, o jantar e a mudança. Por meio de comparações, as expressões ambíguas nos revelam o hediondo: o encontro amoroso entre cadáveres numa mesa de autópsia, os órgãos expostos como iguarias e os caixões com corpos esquartejados.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Concentração de elementos</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Por outro lado, ainda que minuciosa e clínica, a poesia de Augusto dos Anjos não apresenta esse mesmo recurso sintático, nem privilegia as ambiguidades que quebram a expectativa para horrorizar. A sintaxe de Augusto dos Anjos privilegia o preenchimento estrófico e a concentração de elementos. Porém, em ambos os poetas há semelhanças: um eu-lírico clínico (Benn era médico; Augusto se dizia o doutor tristeza e o poeta da morte), um gosto pelo inusitado, o uso de um vocabulário vasto (de jargões científicos e metafísicos a expressões populares) e o pessimismo em relação à natureza humana. Embora médico, Benn não se coloca como agente da cura, mas como agente da morte, em Augusto dos Anjos, além de cantar “a poesia de tudo o quanto é morto”, o erotismo é uma mera necessidade biológica. Por exemplo nos poemas A fome e o amor, Versos de amor e Idealismo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O amor da Humanidade é uma mentira.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Entretanto, é pouquíssimo provável que o poeta paraibano tenha lido poetas alemães como Benn, Heym e Trakl. E embora dedique um soneto ao pensamento de Nietzsche, o filósofo niilista que defendia o renascimento de um novo homem[1], algo que aparece no final do longo poema Os doentes, Augusto dos Anjos não pertenceu à escola expressionista. Por outro lado, dadas as semelhanças, é possível que exista algo em comum entre o estilo do poeta paraibano e os expressionistas. Classificando-o como simbolista de vertente expressionista, o poeta e organizador de sua obra completa, Alexei Bueno ainda o aproxima de Cesário Verde e Baudelaire. O que nos leva a pensar que existe uma poética anterior a quaisquer movimentos, semelhante a esses poetas. E então o que seria próprio desse estilo? Qual são suas características? Seria um gosto pelo insólito? Seria a temática mórbida? Ou estaria na forma concentrada e em rimas inusitadas? Já vimos que em comparação com Benn as semelhanças são menos formais do que essenciais. Portanto, comparemos essas duas outras poéticas sugeridas pelo poeta carioca.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A composição estrófica de Augusto dos Anjos é muito parecida com a do poeta português Cesário Verde (1855-1886). Durante a construção poética é como se cada estrofe fosse meditada antes da escrita, privilegiando rimas inusitadas e o fecho do pensamento, como blocos compactos de conceito, imagem e som. No entanto, enquanto a dinâmica de Cesário Verde é um passeio pelo presente, a de Augusto dos Anjos é quase sempre noctívaga. Vejamos como ambos tratam de um tema como a prostituição.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>E saio. A noite pesa, esmaga. Nos</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Ó moles hospitais! Sai das embocaduras</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Um sopro que arrepia os ombros quase nus.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Livro de Cesário Verde: Sentimento de um ocidental – II. Gás.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Talvez tivésseis fome, e as mãos, embalde,</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Estendeste ao mundo, até que, à toa,</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Fostes vender a virginal coroa</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Ao primeiro bandido do arrabalde.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i><br /></i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Augusto dos Anjos. Eu: Os doentes</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Tecnicamente próximos, em outros momentos, os poetas ainda mostram uma visão da cidade vista de passagem. Esse sentimento do flâneur é anterior a ambos. Além dessa técnica, em comum com Charles Baudelaire (1821–1867), é evidente também o gosto pelo bizarro, pelo inusitado e pelo grotesco, a assimilação de conceitos distantes, quando não antagônicos (como beleza e fealdade), em suma, como em Benn, a presença da beleza hedionda. O melhor exemplo dessa associação entre o belo e o bizarro seria o poema Uma carniça, de Baudelaire. Entretanto, o hediondo é um elemento que aparece em vários momentos da história da literatura ocidental, do pé pustulento de Filoctetes, de Sófocles (496 a.C.?-406 a.C.), à lepra que carcome Jó, do Velho Testamento, passando pelas lendas medievais, como a do Coração comido, retomada por Dante Alighieri (1265-1321), no primeiro soneto do livro Vida nova, ou ainda em vários episódios da Divina comédia (A tragédia de Ugolino, por ex., Canto XXXIII, do Inferno), ou mesmo a necrofilia de Noches lúgubres (1775), do espanhol José Cadalso, chegando à poética psicológica da beleza mórbida, efetivada por Edgar Allan Poe (1809-1849). A pletora de referências também faz parte desse estilo. É por isso que, nesse sentido, o hediondo é uma herança da tradição, sem a qual nem Baudelaire e nem Augusto dos Anjos poderiam desenvolver suas poesias.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
No poema já citado, Uma carniça, por exemplo, Baudelaire utiliza amplamente os recursos da língua francesa para associar o belo ao bizarro. No primeiro verso do poema, mantendo a distância pelo tratamento, o poeta relaciona o vocativo “minha alma” com “carniça infame”, e também na paisagem da “bela manhã de estio” apresentar o “leito semeado de pedras”, como uma alcova eroticamente semeada de pétalas de rosas, onde, em vez de uma “lúbrica mulher”, abrindo as pernas, há uma carniça. Trata-se de uma dessacralização do erotismo parecida com aquela que será promovida por Benn e Augusto dos Anjos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Linguagem variadíssima</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Na poesia de Augusto dos Anjos também há essa associação de elementos distantes, uma pletora de referências, um vocabulário que vai do prosaísmo reles até à metafísica, etc. Mas como a língua portuguesa não dispõe dos mesmos recursos da francesa, o poeta paraibano recorre amiúde a uma linguagem variadíssima. Então, além de terminologia científica, ele costuma também recorrer a arcaísmos, como o do galego-português “alcouces” (prostíbulos), associados com termos corriqueiros, como “doces”, ou ainda conceitos teológico como “místicos”, com o usual “característicos”, etc.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Em certa medida uma crítica desfavorável como a de Medeiros e Albuquerque (1867-1934) pôde nos mostrar algo sobre esse estilo que os outros não viram. Criticando-lhe rigorosamente a terminologia científica, Medeiros e Albuquerque dizia que Augusto dos Anjos tem “a rima rebuscada de (por exemplo) ‘acode-a’ com ‘prosódia’”, e “tem em muitos lugares rimas desse modo estranhas”. Depois de destacar dois quartetos e um terceto — talvez inconscientemente tenha-lhe notado que, por meio do mecanismo das rimas interpoladas, o poeta encontre preferencialmente os contrastes conceituais entre o segundo e o terceiro verso e, mesmo nos tercetos, que em geral formam um bloco em sextilha dupla, resolva os contrastes conceituais, fechando o poema na famosa chave de ouro —, o crítico acrescenta um comentário importantíssimo: “Esta procura de rimas estranhas tem sido feita sobretudo em versos humorísticos…”</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
De fato, em geral, o inusitado e o insólito são causa de humor. Albuquerque notou no estilo de Augusto um recurso humorístico, mas que não era utilizado para causar o riso. Como vimos, é o mesmo recurso que causa o humor negro, na poesia de Benn. O que Albuquerque não aponta é que esses recursos de rimas insólitas e inusitadas são uma constante em poetas como Baudelaire, Cesário Verde, Gottfried Benn e Augusto dos Anjos. Elas causam o efeito do novo, do inesperado, do horror.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Todas as divindades malfazejas,</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Silva e Arimã, os duendes, o Yn e os trasgos,</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Imitando o barulho dos engasgos,</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Davam pancadas no adro das igrejas.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>As Cismas do Destino</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Mas ao contrário da quebra de expectativa comum em peças humorísticas, ao misturar conteúdos diversos, o sublime e o reles, apontando para a miséria humana, esse efeito nos espanta. Na quadra supracitada, por exemplo, as palavras pouco usuais são colocadas em lugares estratégicos, em geral na posição de rimas, como “malfazejas” (rima A) e “trasgos” (rima B). O andamento decassílabo faz com que a expectativa de conclusão cíclica da rima seja prolongada. O sentido só se fecha previamente com “engasgos” (rima B), fazendo com que a conclusão da quadra recaia num substantivo comum, “igrejas” (rima A). Internamente, as aliterações sonorizam a cena: “barulho”, “pancadas” e “adro” reproduzem essa algazarra funesta, graças aos encontros consonantais em “b”, “r”, “lh”, “p”, “c”, d”, e também a sibilante “s”. É a sonoplastia das entidades demoníacas, atacando uma igreja. Mas esses recursos técnicos são muito diferentes do preciosismo parnasiano. Convém lembrar a admoestação que Manuel Bandeira (1886-1968) dirigia aos parnasianos brasileiros, mostrando que existe uma sensibilidade diferente entre o francês e o português. A busca pela rima rica ou rara era antes um defeito em muitos parnasianos porque: “A rima rica francesa não implica o sacrifício da simplicidade vocabular: ela se pode obter com palavras de uso comum. A rima rara portuguesa é quase sempre um desastre”.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Ao contrário de parnasianos que privilegiavam as descrições estáticas (ecfrasis), lançando mão de rimas raras e de conceitos próximos, de uma temática anedótica e erótica, em Augusto dos Anjos os conceitos são distantes, de temática filosófica e pessimista e o rimário busca rimas inusitadas.</div>
<div style="text-align: justify;">
Discípulo de Baudelaire, o poeta e pianista francês Maurice Rollinat (1846-1903) também desenvolveu o estilo de poesia hedionda. Embora hoje esteja um tanto esquecido, em seu tempo o autor de As neuroses (1883) foi muito apreciado. Em poemas como Les Magasin des Suicides (Loja dos suicidas) já aparece uma terminologia que lembra a do poeta paraibano. “Noz-vômica” e “horóscopo” são termos já usados pelo poeta francês, além de uma espécie de uma poética de autoanálise. Anterior ao Surrealismo, em Rollinat o eu-lírico se coloca no divã da poesia para confessar as perturbações de sua psique, algo que lembra bastante o famoso soneto Psicologia de um vencido, de Augusto dos Anjos. Outro exemplo é o longo poema narrativo, L’Enterré vif (O enterrado vivo, parafraseado por Raimundo Correia). Trata-se da história fantástica de um caixão, do velório ao sepultamento. O mesmo tema é sintetizado por Augusto dos Anjos, num soneto como O caixão fantástico:</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Célere ia o caixão, e, nele, inclusas,</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Cinzas, caixas cranianas, cartilagens</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Oriundas, como os sonhos dos selvagens,</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>De aberratórias abstrações abstrusas!</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Nesse caixão iam talvez as Musas,</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Talvez meu Pai! Hoffmânnicas visagens</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Enchiam meu encéfalo de imagens</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>As mais contraditórias e confusas!</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>A energia monística do Mundo,</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>À meia-noite, penetrava fundo</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>No meu fenomenal cérebro cheio…</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Era tarde! Fazia muito frio.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Na rua apenas o caixão sombrio</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Ia continuando o seu passeio!</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Qual outro poeta brasileiro usaria aliterações em “C”? Ao contrário do poema de Rollinat, ou de um poema como Momento num café, por Manuel Bandeira, neste soneto aparece alegoricamente o cortejo do caixão da humanidade. Além disso, longe da poética parnasiana, as rimas inusitadas de Augusto dos Anjos têm o efeito esteticamente mais próximo da poética inglesa. O gosto inglês prefere rimas inusitadas e insólitas que surjam com certa naturalidade, mas que espantem o leitor. Influenciado por Poe, Baudelaire e Rollinat usaram este efeito em francês. Em português, por conseguinte, o inusitado por um dos efeitos mais explorados por Cesário Verde e Augusto dos Anjos. E embora o poeta paraibano use assonâncias e aliterações, como outros poetas brasileiros, por exemplo Cruz e Sousa e Raimundo Correia, é o efeito inusitado que o diferencia de todos; é esse efeito, em suma, o que Victor Hugo sentiu na poesia de Baudelaire, aquele frisson nouveau.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Não haver terapêutica que arranque</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Tanta opressão como se, com efeito,</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Lhe houvessem sacudido sobre o peito</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>A máquina pneumática de Bianchi!</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Os doentes</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A rima interpolada entre o verbo “arrancar” e o nome do inventor “Bianchi” é um ótimo exemplo de inusitado. Ao contrário do rigor mortis parnasiano, movimentada pelo verbo “sacudir” no centro da quadra, a própria metáfora da opressão do peito é insólita. Outro aspecto singular da poética hedionda de Augusto dos Anjos é o uso de um verso bárbaro. Como dizia Gilberto Freyre: “Em muitos de seus versos a aspereza de sons não é evitada nem mesmo disfarçada, mas procurada”.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Além do uso de sinérese, aglutinado até três vogais, da construção de versos ricos em aliterações (bem mais do que um Cruz e Sousa, geralmente associado ao gosto por esse efeito) e assonâncias, como bem lembra Alexei Bueno, Augusto dos Anjos também lança mão de neologismos, como “ruído-clarão” (Numa forja), e mesmo parece optar por um verso, ao um só tempo, concentrado e volumoso, optando por palavras com choques consonantais, como em “abrupto”, ou ainda justapostas, como “ultrafatalidade”. Desta forma, embora mesmo na ortografia etimológica as consoantes mudas não fossem lidas, é incrível o impacto visual da união de um radical grego com uma palavra hebraica, como em “pseudo-psalmo” (Os doentes). Foi o que levou Rosenfeld a afirmar: “Da mesma forma como as palavras, o mundo de Augusto dos Anjos é, por assim dizer, na sua essência, proparoxítono, esdrúxulo, dissonante”.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
No mundo do Eu, letra e espírito são um só. Daí reaparecerem nele temas oriundos do barroco e pré-romantismo algo-saxão, como o Vanitas e as meditações no cemitério, o Memento Mori, acrescidos de outros conceitos, como o Nirvana budista e o Agnus Dei Qui tollis peccata mundi cristão, em seu desejo de ser sacrificado pela humanidade sofredora. Esses temas, no entanto, são absorvidos pelo pensamento de Augusto, e o Eu representa uma espécie de suma.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Desta forma, tal como Shakespeare, misturando o cômico com o trágico, embora utilize o inusitado provindo da poesia humorística, no poeta paraibano o sublime encontra o reles, os conceitos universais da metafísica são aclimatados à realidade, o ufanismo científico é testado com a inevitável morte individual e solitária, a religiosidade cristã é experimentada na fé que nasce do absurdo e da precariedade do mundo e, despida do ideal romântico da bondade, a natureza é nefasta e o amor, carência e fome. Constituindo, portanto, uma unidade, dos elementos estilísticos ao conjunto, a bela e hedionda poesia do Eu de Augusto dos Anjos está, sem dúvida, ao lado de grandes obras da literatura universal.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>[1] Otto Maria Carpeaux identificou nisso a essência do expressionismo. Cf. CARPEAUX, Otto Maria. História Concisa da Literatura Alemã. Faro Editorial, 2013</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<i><b>*Possui especialização em Desenvolvimento editorial pela PUC-PR. É poeta, tradutor e editor.</b></i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i><b><br /></b></i></div>
Pró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-205942312916252074.post-51057435226579326572015-08-10T12:02:00.002-07:002015-08-10T12:05:26.743-07:00A perspectiva da dor em Jean Cocteau<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://images.npg.org.uk/264_325/6/0/mw195260.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="http://images.npg.org.uk/264_325/6/0/mw195260.jpg" height="400" width="400" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Por Régis Bonvicino</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Da Ilustríssima</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
É um livro indispensável este A Dificuldade de Ser [trad. Wellington Júnio Costa, Autêntica, 208 págs., R$ 47], de Jean Cocteau (1889-1963).</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Trata-se, de fato, de uma arte poética a partir do relato de 50 anos da vida do autor, desde a infância até o momento da finalização do texto, durante a Segunda Guerra a obra foi editada na França em 1947.</div>
<span style="text-align: justify;"><br /></span>
<span style="text-align: justify;">Ao mesmo tempo, o livro possui um caráter de testemunho ativo, às vezes crítico, de um dos períodos mais ricos da cena europeia, então marcada pelos movimentos cubista, surrealista e construtivista.</span><br />
<br />
<div style="text-align: justify;">
Há, ainda, na obra, um viés de depoimento acerca de seus personagens maiores: o compositor Erik Satie (um dos mestres de Cocteau), Picasso, o poeta Guillaume Apollinaire, o bailarino e coreógrafo russo Nijinski, Charles Chaplin, o dramaturgo Jean Genet, entre tantos outros.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Cocteau, que começou a escrever aos dez anos e publicou seu primeiro volume de poemas, La Lampe d'Aladin (a lâmpada de Aladim) aos 19, foi, em essência, um poeta que escreveu romances, peças de teatro e crítica literária.</div>
<span style="text-align: justify;"><br /></span>
<span style="text-align: justify;">Foi igualmente um artista plástico inspirado, deixando sua marca em capelas de pescadores então abandonadas da Provence e da Côte d'Azur ali viciou-se em ópio, o que o levou a várias internações.</span><br />
<br />
<span style="text-align: justify;">Seu talento múltiplo, no entanto, não se diluiu em nenhuma das atividades; antes somou-se. Como ele mesmo define: Explorei tantos caminhos para que minha semente se espalhasse por toda parte. Eu conheço mal o sopro que me habita, mas ele não é suave.</span><br />
<span style="text-align: justify;"><br /></span>
<span style="text-align: justify;">Aqui quero chamar a atenção para duas faces de sua obra: a de cineasta e a de dramaturgo.</span><br />
<span style="text-align: justify;"><br /></span>
<span style="text-align: justify;">Em 1917, Cocteau escreveu para Serguei Diaguilev, fundador da companhia Les Ballets Russes em Paris, o libreto de Parade. O balé tinha cenário de Picasso e música de Satie. Apollinaire, comentando o espetáculo, o definiu como surrealista, palavra que seria, pouco depois, apropriada por André Breton e se tornaria todo um movimento, sob o qual Cocteau foi então classificado.</span><br />
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Considerado introdutor do surrealismo no cinema nascente, Cocteau assina três filmes que costumam figurar nas listas dos cem melhores (para alguns críticos, dos dez melhores) de todos os tempos: Sangue de um Poeta (1930), A Bela e a Fera (1946) e Orfeu (1950).</div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
Cocteau anota que Sangue de um Poeta emprega o mecanismo do sonhar sem dormir um meio de arrebentar o realismo industrial da vida. Denunciar a artificialidade da realidade, aliás, era uma característica do esteticismo do artista francês, segundo Eduardo Peñuela Cañizal (1933-2014) o professor espanhol, um dos fundadores da ECA-USP, teceu tal observação ao analisar a influência de Cocteau sobre Pedro Almodóvar.</div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
No teatro, fez de seu A Voz Humana (1930) um marco.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Neste monólogo, temos apenas uma solitária atriz que fala ao telefone; em termos formais é de um minimalismo expressivo ímpar.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Na estreia, a atriz Berthe Bovy representava a mulher apaixonada por um homem, que, ao que tudo indica, a deixa por outra. Seu único meio de comunicação com o amado em fuga, na tentativa de persuadi-lo a voltar ou algo assim, é o aparelho, no qual fala por uma hora, duração do texto. A ligação é algumas vezes interrompida por ruídos e desespero.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O monólogo foi adaptado por Roberto Rossellini para um segmento de L'Amore, de 1948, com Anna Magnani. A obra de Cocteau reverbera, desse modo, também em um dos mais importantes movimentos do cinema posterior a ele o neorrealismo italiano, dos quais, ao lado de Rossellini, foram protagonistas Visconti e De Sica. É considerado um precursor da nouvelle vague, que renovou o cinema francês a partir de 1958.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Neste momento, no qual a arte e a reflexão se rendem às facilidades do estar, evocar a obra duradoura de Jean Cocteau, é interessante trazer à tona o trecho do livro no qual esse artista múltiplo explica seu título.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Numa clínica, Cocteau ouviu outro paciente, indagado pelo médico sobre seu estado, responder: Eu sinto uma dificuldade de ser.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Então, o autor de A Voz Humana, entrando na conversa, disse: Senhor Fontenelle, a sua é de última hora. A minha é desde sempre. E assim recoloca a arte em sua perspectiva real: a do sofrimento, a do difícil, distante do glamour vazio dos dias atuais.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Régis Bonvicino, 60, é poeta, autor de Estado Crítico (Hedra) e Até Agora (Imesp), e diretor da revista eletrônica Sibila.<br /></b></div>
Pró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-205942312916252074.post-42322112997643474522015-08-07T11:49:00.001-07:002015-08-07T11:49:31.718-07:00A bruxaria literária de Clarice Lispector<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://f.i.uol.com.br/folha/ilustrissima/images/15211534.jpeg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="Retrato da escritora Clarice Lispector" border="0" height="400" src="http://f.i.uol.com.br/folha/ilustrissima/images/15211534.jpeg" width="272" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Por Benjamin Moser</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Tradução de Paulo Migliacci</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Da Ilustríssima</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<span class="Apple-tab-span" style="white-space: pre;"> </span></div>
<div style="text-align: justify;">
RESUMO O americano biógrafo de Clarice Lispector (1920-77) reuniu, pela primeira vez, todos os contos da escritora no livro The Complete Stories (New Directions). Abaixo, um trecho do ensaio de introdução ao volume, recentemente lançado nos Estados Unidos e ainda sem previsão de ser publicado no Brasil.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
*</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Renuncias ao glamour do mal, pergunta-se durante a missa de Páscoa nos países anglófonos, e recusas ser dominado pelo pecado?. A questão preserva uma ligação, hoje rara, entre glamour e feitiçaria; o glamour era uma qualidade que confundia, alterava formas, investia a coisa de uma aura misteriosa; nas palavras de sir Walter Scott, tratava-se do poder mágico de afetar a visão dos espectadores, de modo que a aparência de um objeto se torne totalmente diferente da realidade.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A lendariamente bela Clarice Lispector, alta e loira, adereçada com os vistosos óculos escuros e as joias volumosas que caracterizavam uma grande dame do Rio de Janeiro na metade do século 20, correspondia à definição atual de glamour. Ela foi jornalista de moda por anos, e sabia como se vestir para o papel, mas é no sentido mais antigo da palavra que Clarice Lispector é glamourosa: como lançadora de feitiços, literalmente encantadora, seu nervoso fantasma assombrando todos os ramos da arte brasileira.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Seu feitiço só fez crescer desde sua morte. Então, em 1977, teria parecido exagero afirmar que ela era a escritora moderna proeminente de seu país. Hoje, quando a afirmação já não seria exagerada, questões de importância artística são, em alguma medida, irrelevantes. O que importa é o amor magnético que ela inspira naqueles que são suscetíveis a sentir o seu apelo. Para eles, Clarice é uma das grandes experiências emocionais de suas vidas. Mas seu glamour é perigoso. Cuidado com a Clarice, disse um amigo a um leitor décadas atrás. Não é literatura, é bruxaria.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A conexão entre literatura e bruxaria tem sido há muito tempo parte importante da mitologia de Clarice Lispector. Essa mitologia, com um poderoso empurrão da internet, desenvolveu ramificações tão barrocas que hoje poderia ser definida como um ramo menor da literatura brasileira. Circula incansavelmente on-line toda uma obra fantasma, em geral profunda e respirando paixão. On-line, igualmente, Clarice adquiriu um corpo paralelo póstumo, já que fotos de atrizes que a retrataram são constantemente reproduzidas no lugar da original.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Mesmo que a tecnologia tenha mudado suas formas, a mitificação em si nada tem de novo. Clarice Lispector se tornou famosa ao publicar Perto do Coração Selvagem, no final de 1943. Ela havia acabado de completar 23 anos, uma estudante obscura de origem imigrante pobre; seu primeiro romance teve tão grande impacto que um jornalista escreveu: Não temos registro de uma estreia mais sensacional, que tenha elevado a tão grande destaque um nome que, até pouco antes, era completamente desconhecido. Mas apenas algumas semanas depois desse nome começar a ser conhecido, sua portadora partiu do Rio de Janeiro.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Lendas</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Por quase duas décadas, ela e o marido, diplomata, viveram no exterior. Ainda que visitasse seu país regularmente, não voltou em definitivo até 1959. Nesse meio tempo, as lendas floresceram. Seu estranho nome estrangeiro se tornou tema de especulação um crítico imaginou que pudesse ser pseudônimo e outros imaginavam se ela não seria, na verdade, um homem.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Somadas, essas lendas refletem uma inquietação, um sentimento de que ela era algo diferente do que parecia: que a aparência de um objeto seja totalmente diferente da realidade.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A palavra aparência precisa ser enfatizada. Uma bela esposa de diplomata, aparentemente um pilar nada ameaçador da burguesia brasileira, produziu uma série de escritos em linguagem tão exótica que, nas palavras de um poeta, a estranheza de sua prosa se tornou um dos fatos mais esmagadores... na história de nossa língua. Havia algo nela que não era o que parecia, uma estranheza muitas vezes registrada por aqueles que encontram sua escrita pela primeira vez. Mas isso raramente foi articulado tão bem quanto no final de sua vida, no meio da ditadura militar, quando ela se viu sujeita a uma rigorosa verificação, e revista física, no aeroporto de Brasília.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Tenho cara de subversiva?, ela perguntou à segurança. A mulher riu, e depois deu a única resposta possível: Até que tem.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Um velho dicionário escocês aponta que glamour é uma referência metafórica à fascinação feminina. E é uma curiosidade etimológica que a palavra derive de grammar (gramática). Na Idade Média, esta última palavra descrevia qualquer erudição, mas particularmente o saber oculto: a capacidade de encantar, de revelar objetos e vidas como totalmente diferente da realidade da aparência externa. Para uma escritora, especialmente uma escritora renomada por revelar as realidades ocultas das vidas visíveis por meio de uma sintaxe deslizante, mutável, a associação é irresistível, e ajuda a explicar a fascinação feminina que Clarice Lispector exerceu por tanto tempo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Nos 85 contos deste livro, Clarice Lispector conjura, acima de tudo, a escritora. Da promessa adolescente à maturidade confiante, e à implosão de uma artista quando se aproxima da morte e a invoca, descobrimos a figura, maior que a soma de suas obras individuais, amada no Brasil. Falar de João Guimarães Rosa é falar de Grande Sertão: Veredas. Falar de Machado de Assis é, da mesma forma, falar de seus livros, e, só depois,do homem notável por trás deles. Mas falar de Clarice Lispector é falar de Clarice, o prenome pelo qual ela é universalmente conhecida: da mulher em si. De seu primeiro conto, publicado aos 19 anos, ao último, encontrado em fragmentos dispersos depois de sua morte, acompanhamos uma vida de experimentação artística por uma vasta gama de estilos e experiências.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Essa literatura não é para todo mundo: até mesmo alguns brasileiros altamente letrados se sentem perplexos diante do fervor intenso que ela desperta. Mas para aqueles que a compreendem instintivamente, o amor pela pessoa de Clarice Lispector é imediato e inexplicável. Sua arte nos faz desejar conhecer a mulher; e ela é uma mulher que nos faz desejar conhecer sua arte. Este livro oferece uma visão de ambas as coisas: um retrato inesquecível, na e por meio da arte daquela grande figura, em sua grande e trágica majestade.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Todos juntos</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Boa parte deste livro não tem precedentes. Pela primeira vez em qualquer idioma incluindo o português todos os contos de Clarice estão reunidos em um só volume, entre os quais o primeiro Cartas a Hermengardo, que descobri em um arquivo. Essa obra incomum oferece novas provas da importância do Spinoza que ela leu quando estudante, uma influência que ecoaria por toda a sua vida.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Por mais empolgantes que esses marcos bibliográficos sejam para o pesquisador ou biógrafo, algo de muito mais surpreendente aparece quando essas histórias são por fim vistas por inteiro. Trata-se de um feito de cuja importância histórica a autora não podia estar consciente, pois só retrospectivamente ele seria capaz de surgir. E sua força seria consideravelmente diminuída se fosse uma expressão ideológica em lugar de uma derivação natural das experiências da autora.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Esse feito jaz na segunda mulher que ela conjura. Se Clarice Lispector era uma grande artista, era também uma mulher casada e mãe de classe média. Se o retrato da artista extraordinária é fascinante, o mesmo vale para o retrato da dona de casa comum cuja vida é o tema deste livro. À medida que a artista amadurece, a dona de casa, igualmente, envelhece.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Quando Clarice é uma adolescente desafiadora, tomada pelo senso de seu próprio potencial artístico, intelectual, sexual, o mesmo vale para as meninas de suas histórias. Quando, em sua própria vida, o casamento e a maternidade tomam o lugar da infância precoce, seus personagens também amadurecem. Quando seu casamento fracassa, quando seus filhos partem, essas partidas aparecem em seus contos. Quando Clarice, no passado tão gloriosamente bela, vê seu corpo sujo de gordura e rugas, suas protagonistas veem o mesmo declínio; e quando ela confronta a decadência final da idade, doença e morte, elas estão ao seu lado.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Temos aqui um registro de toda a vida da mulher, escrito ao longo de toda a vida da mulher. E, nesse aspecto, ele parece ser o primeiro registro tão completo escrito em qualquer país. Essa afirmação abrangente requer ressalvas. A vida de uma mulher casada e mãe; a vida de uma mulher ocidental, burguesa e heterossexual. Uma mulher não interrompida: uma mulher que não começou a escrever tarde, ou parou ao se casar e ter filhos, ou sucumbiu às drogas e ao suicídio. Uma mulher que, como muitos escritores homens, começou na adolescência e continuou a escrever até o fim. Uma mulher que, em termos demográficos, era exatamente como a maioria de seus leitores.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A história deles foi escrita apenas em parte. Antes de Clarice, uma mulher que escrevesse ao longo de sua vida e sobre sua vida era rara a ponto de ser inédita. A afirmação parece extravagante, mas não identifiquei quaisquer predecessoras.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Benjamin Moser, 38, escritor e tradutor americano, é autor de Clarice, (Cosac Naify).</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Paulo Migliacci, 47, é tradutor.</b></div>
Pró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-205942312916252074.post-27038565668341879322015-08-06T09:31:00.000-07:002015-08-06T09:31:35.056-07:00A filosofia tem algum problema com as mulheres?<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://d.gr-assets.com/authors/1238934099p5/59363.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="http://d.gr-assets.com/authors/1238934099p5/59363.jpg" width="316" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: center;">
<span style="font-size: x-small;"><b>A filósofa, teóloga e poeta </b><b>Marguerite Porete</b></span></div>
<b><br /><br /><br />Por Julian Baggini e Mary Warnock</b><br />
<div style="text-align: justify;">
<b>Tradução de Clara Allain</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Do Guardian</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Mary Warnock, filósofa e escritora</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A pergunta é debatida por mulheres e homens do campo da filosofia há anos e na semana passada foi o tema de capa do Times Literary Supplement. De todos os departamentos de ciências humanas de universidades britânicas, apenas os departamentos de filosofia não têm mais de 25% de seus membros que sejam mulheres. Qual é a razão disso? Como esse desequilíbrio pode ser corrigido? De maneira geral, sou muito contrária a qualquer intervenção, por cotas ou outra, para aumentar as chances de mulheres serem empregadas em qualquer campo que seja, e não há nada de intrinsecamente negativo nesse desequilíbrio. Não acredito de maneira alguma que ele revele um viés consciente contra as mulheres. Tampouco pode ser explicado pela suposição de que, pelo fato de a filosofia dizer respeito principalmente a argumentos, as mulheres sejam naturalmente menos hábeis nesse campo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Pode haver algumas mulheres que pensam mais emocional que racionalmente, mas, como bem sabemos, há alguns homens que também o fazem. Tampouco penso que as mulheres rejeitem a ideia da filosofia por seu estilo supostamente adversativo, sua orientação em torno da discussão, em vez de buscar a verdade ou o consenso. Pois não acredito que esse estilo, quando adotado em disputas acadêmicas, seja próprio apenas da filosofia. Não -penso que a filosofia acadêmica tornou-se uma disciplina extraordinariamente voltada para seu próprio umbigo, que se dedica não a expor e examinar as implicações de como pensamos o mundo, mas, em vez disso, a expor deficiências nos argumentos de outros filósofos. Em qualquer periódico profissional hoje lemos pouco que não sejam respostas que se dedicam a procurar defeitos pequenos nos argumentos de outros filósofos. As mulheres tendem a entediar-se com isso mais facilmente que os homens. A filosofia parece deixar de ser interessante justamente quando ela se profissionaliza.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Julian Baggini, filósofo e escritor</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Concordo que há pouca ou nenhuma discriminação consciente contra as mulheres na filosofia. Mas isso não quer dizer que não exista um grande viés inconsciente. O que não sabemos é por que esse viés seria mais forte na filosofia que em outras disciplinas. Penso que a resposta possa ser encontrada na autoimagem da filosofia. Os filósofos tendem a ter uma visão inflada de sua capacidade de seguir a discussão para onde quer que ela os leve, como diz a velha máxima de Platão. O que importa é a discussão, não aquele que discute, o que significa que não há necessidade de sequer pensar em gênero ou etnia. Assim, os filósofos sempre se sentiram imunes aos efeitos deturpadores do viés de gênero. A lógica é indiferente ao gênero, a filosofia é lógica; logo, a filosofia é indiferente ao gênero. Desconfio que isso tenha levado à complacência, ao desconhecimento de todas as maneiras pelas quais o viés de gênero realmente penetra. É uma constatação amplamente fundamentada da psicologia que considerar-se um juiz objetivo da realidade torna seus julgamentos menos objetivos, e tenho certeza que a filosofia sofre disso. Reconheço que esta explicação pelo menos parcial do fato de as mulheres serem sub-representadas na filosofia é um tanto especulativa, mas estou interessado em saber o que você pensa dela.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
MW - Não aceito que todo nosso pensamento seja permeado pela questão do gênero e que, por isso, deixamos de ter consciência de nosso viés. Penso que um dos grandes méritos da filosofia acadêmica é que seus tópicos centrais são tão indiferentes ao gênero quanto os da física, matemática ou linguística. Mas concordo que as mulheres podem ter esperanças diferentes quanto aos resultados do estudo desses tópicos e que, de modo geral, elas tendem menos que os homens a seguir a discussão onde quer que ela as leve, mas que mudam a direção se ela conduz ao absurdo ou ao paradoxo. Essa é outra maneira de dizer que as mulheres são mais constritas que os homens pelos ditames do bom senso. E isso condiz com, ou faz parte de, o desejo de que a filosofia seja inteligível pelos não filósofos, se eles se dispõem a pensar sobre ela. É claro que este desejo não é exclusivo das mulheres (como mostram seus próprios escritos). A aversão a abrir mão do bom senso pode parecer uma super simplificação, embora possa ser mais bem descrita como aversão à escolástica. Em entrevistas para empregos, isso pode levar as mulheres a parecer mais pragmáticas que brilhantes, o que pode prejudicar suas chances de êxito.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
JB - É possível que as mulheres tendam a ter prioridades intelectuais diferentes das dos homens. Mas, como não sabemos até que ponto estas são culturais ou biológicas, não devemos presumir que quaisquer diferenças desse tipo sejam fixas. O que é mais importante é que isso seria razão ainda maior para tentarmos levar mais mulheres a cargos seniores na filosofia, já que não existe razão para supor que as prioridades tradicionais sejam superiores. É importante distinguir a ideia de que todas as ideias filosóficas são permeadas pelo gênero, que ambos rejeitamos, da ideia de que os vieses de gênero afetam os modos de pensar e agir de todos os filósofos. Por exemplo, Rae Langton e Jennifer Hornsby argumentaram persuasivamente que normas e estereótipos culturais podem afetar adversamente a capacidade das mulheres de serem ouvidas e levadas a sério. Creio que isto prejudica as mulheres na filosofia tanto quanto as prejudica em praticamente qualquer outra área. Você é contra as cotas e outras formas de intervenção. Isso quer dizer que você pensa que nada pode ou deve ser feito?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
MW - Concordo com algo que você disse antes, que os homens são complacentes ao acreditar que suas prioridades intelectuais são melhores. E isso torna mais difícil para as mulheres se fazerem ouvir. Mas sou contra a intervenção positiva, mesmo assim, porque ela sempre implica o risco de que uma mulher indicada graças a um sistema de cotas, por exemplo, seja vista como não sendo necessariamente a melhor candidata e, por essa razão, seja ainda mais contestada e enfraquecida. Penso, em vez disso, que as coisas estão mudando gradualmente na filosofia, mesmo que isso não esteja ocorrendo em outras disciplinas. Graças em parte ao trabalho de algumas mulheres, como Onora O'Neill, e alguns homens, como você, a aplicação de métodos filosóficos a outras disciplinas vem ganhando reconhecimento maior. Por exemplo, a ligação entre filosofia moral e medicina hoje é amplamente reconhecida, e, o que talvez seja ainda mais importante, a interface entre filosofia e psiquiatria vem sendo explorada mais e mais. Essa ampliação do escopo da filosofia vai inevitavelmente atrair mais mulheres para a disciplina, mesmo que isso se dê apenas gradualmente.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
JB - As cotas são problemáticas de fato, mas existem outras intervenções de ação afirmativa possíveis, como exigir que departamentos, conferências e periódicos monitorem de perto o número de mulheres que se candidatam ou oferecem artigos para publicação, comparando-o ao número das que são aceitas. O simples fato de se obrigar as pessoas a prestar atenção a disparidades possíveis já é uma maneira poderosa de aumentar a conscientização.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Outra prioridade é levar os filósofos a um entendimento melhor dos efeitos psicológicos que interferem no seu pensamento supostamente claro e racional. Todos os filósofos devem ter conhecimento, por exemplo, do trabalho de Sally Haslanger e Jennifer Saul sobre como fenômenos psicológicos como um viés implícito e a ameaça de estereótipos podem atuar em sua disciplina. Mas a mudança mais importante e eficaz é que os filósofos simplesmente encarem a profundidade do problema em seu campo. Muitos filósofos se limitam a supor, com complacência, que qualquer sexismo na filosofia hoje seja residual e de pouca monta. Sete anos atrás Haslanger escreveu: Em minha experiência, é muito difícil encontrar um lugar na filosofia que não seja ativamente hostil às mulheres e minorias ou que, no mínimo, não presuma que um filósofo bem sucedido deve ter a aparência de um homem (tradicional e branco) e agir como tal. Haslanger perseverou, mas, se outras mulheres de talento estão abandonando o esforço ou sendo passadas por cima, quem perde com isso é tanto a própria filosofia quanto as mulheres.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
Pró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-205942312916252074.post-34160515276747585192015-07-28T11:09:00.001-07:002015-07-28T12:04:37.758-07:00O rico legado do Museu de Imagens do Inconsciente<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiKTCOiO590NHH0UWNxDOhHzg7n5c2JcWB2v32Kav1QjC9Qg7-OP5TB3BV3GL0lqL4An50ccfSPF8SjNxHlmsZ5qIT6uBn5LInNTXPwhe3nPcDxXnBhfrT7EAvP4bGbqRWPHeT87_LtAhSU/s1600/15204658.jpeg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="237" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiKTCOiO590NHH0UWNxDOhHzg7n5c2JcWB2v32Kav1QjC9Qg7-OP5TB3BV3GL0lqL4An50ccfSPF8SjNxHlmsZ5qIT6uBn5LInNTXPwhe3nPcDxXnBhfrT7EAvP4bGbqRWPHeT87_LtAhSU/s320/15204658.jpeg" width="320" /></a></div>
<div style="text-align: center;">
<b><span style="font-size: x-small;">Mário Pedrosa e Nise da Silveira, no Rio, em 1980</span></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Por Luiz Carlos Mello</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>D Ilustríssima</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Nise da Silveira (1905-99) nasceu em Maceió e cursou a faculdade de medicina na Bahia, sendo a única mulher em uma turma de 127 homens. Mudou-se para o Rio, onde obteve aprovação no concurso para médico psiquiatra em 1933. No governo Vargas, residindo no hospital da Praia Vermelha, foi presa sob acusação de comunismo e afastada do serviço público de 1936 a 1944. Com a onda de democratização do país no final da Segunda Guerra, foi readmitida.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Por não aceitar as formas de tratamento psiquiátrico em uso na época, como o eletrochoque, a lobotomia e o coma insulínico, Silveira criou, em 1946, no Centro Psiquiátrico Nacional (antigo hospital do Engenho de Dentro), no Rio, a Seção de Terapêutica Ocupacional. Entre 17 atividades diferentes, a produção dos setores de pintura e modelagem foi tão abundante e revelou-se de tão grande interesse científico que, em 1952, nasceu o Museu de Imagens do Inconsciente, que se tornou um centro de estudo e pesquisa. As imagens produzidas no ateliê levantavam perguntas que não encontravam respostas na formação psiquiátrica acadêmica.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Ela observou, por exemplo, que formas circulares apareciam em grande quantidade na pintura dos esquizofrênicos. Fotografou dezenas dessas imagens e enviou uma carta a Carl Jung perguntando se eram realmente mandalas. A resposta confirmava suas indagações: as mandalas expressariam o potencial autocurativo da psique. Por meio dessa correspondência, a psicologia junguiana foi introduzida na América Latina.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O Museu de Imagens do Inconsciente possui a maior e mais diversa coleção do gênero no mundo, documentando importante período da história da ciência e da cultura. Seu estágio de organização e pesquisa é uma referência e constitui genuíno patrimônio da humanidade.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O grande interesse despertado por este acervo, aliado ao amplo espectro de pesquisas que ele permite, faz do museu uma instituição com potencial de crescimento inigualável, de proveito em especial para o desenvolvimento de ações ligadas à inclusão e ao desenvolvimento sociais combinadas com os novos conceitos de saúde cultural e sustentabilidade.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Em 1947, o Museu de Imagens do Inconsciente realizou sua primeira exposição na sede do Ministério da Educação, no Rio de Janeiro. Mário Pedrosa, então crítico de arte do jornal Correio da Manhã, escreveu: O artista não é aquele que sai diplomado da Escola Nacional de Belas Artes, do contrário não haveria artista entre os povos primitivos, inclusive entre os nossos índios. Uma das funções mais poderosas da arte - descoberta da psicologia moderna - é a revelação do inconsciente, e este é tão misterioso no normal como no chamado anormal. As imagens do inconsciente são apenas uma linguagem simbólica que o psiquiatra tem por dever decifrar. Mas ninguém impede que essas imagens e sinais sejam, além do mais, harmoniosas, sedutoras, dramáticas, vivas ou belas, enfim constituindo em si verdadeiras obras de arte.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Hoje, a Sociedade Amigos do Museu de Imagens do Inconsciente está desenvolvendo um projeto para uma nova sede com o objetivo de ampliar suas múltiplas atividades. O acervo é estimado em 360 mil obras, sendo que as principais coleções (com 127 mil obras) são tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O Arquivo Pessoal de Nise da Silveira foi incluído recentemente no Registro da Memória do Mundo da Unesco. Nosso país tem o dever de manter e dar desenvolvimento a esse trabalho - um dos tesouros mais valiosos da alma brasileira.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<i><br /></i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>LUIZ CARLOS MELLO, 64, é diretor e curador do Museu de Imagens do Inconsciente; trabalhou com Nise da Silveira durante 26 anos.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
Pró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-205942312916252074.post-66747947024906510922015-07-22T13:03:00.001-07:002015-07-22T13:03:43.014-07:00A banalidade do bem<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://filosofia.uol.com.br/filosofia/ideologia-sabedoria/17/imagens/i112627.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="384" src="http://filosofia.uol.com.br/filosofia/ideologia-sabedoria/17/imagens/i112627.jpg" width="400" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Por Luiz Felipe Pondé</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Da Ilustrada</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Conhecemos a banalidade do mal descrita pela filósofa Hannah Arendt em seu tratamento do Eichmann em Jerusalém. Pará além da questão do Holocausto em si, seu conceito de banalidade do mal fez fama: Eichmann era um sujeito medíocre, um filho da burocracia, sem tato moral, como diria o sociólogo Zygmunt Bauman em seu Modernidade e Holocausto.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Os efeitos da burocracia são a idiotice moral, a estupidez intelectual, o amor ao protocolo e o não a qualquer forma de originalidade.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Já a banalidade do mal marca o mal não como uma profundidade, como na tradição bíblica, mas como uma espécie de fungo que se espalha pelo mundo sem grandes profundidades ou sofrimento moral, aniquilando qualquer reação moral que importe. A banalidade do mal convive bem com horrores contanto que a janta seja servida na hora.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O mal é banal num mundo em que pessoas que são boas mães demitem centenas de funcionários para equilibrar custos na empresa. Como dizia o poeta russo Joseph Brodsky: O mal adora orçamentos equilibrados (Discurso Inaugural, ensaio que integra seu livro Menos que Um).</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Mas, não quero falar da banalidade do mal hoje. Quero falar da banalidade do bem, a irmã caçula da banalidade do mal.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Menos conhecida, ela desfila por nossas praças chiques em que caras limpas e bem vestidas caminham domingos e feriados, em busca de uma vida equilibrada. Seus filhos pequenos e seus cães brincam juntos, provando que está surgindo uma nova geração com mais consciência.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Voltando ao poeta russo Brodsky e ao texto dele citado anteriormente, uma das ideias mais elegantes que o autor nos apresenta nesse ensaio é que não devemos falar do bem diante de muitas pessoas porque os maus sentimentos são os mais comum nas pessoas, e, por isso mesmo, quando você tem muitas pessoas reunidas, o provável é que maus sentimentos estejam por toda parte, e que você esteja falando com muitas pessoas más.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Sobre o bem, diz Brodsky, deve-se falar apenas em círculos muito íntimos. Logo, não existe a possibilidade de falarmos do bem nas redes sociais, se formos levar a sério (como eu levo) o que nos diz o poeta russo. Portanto, o bem nas redes é sempre banalidade do bem. E o que é a banalidade do bem, afinal?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Banalidade do bem é uma forma de fungo também, mas que causa um efeito um tanto eufórico em quem a pratica, porque faz você se sentir bem consigo mesmo. Tipo ajudar crianças na África e postar fotos de você sorrindo ao lado da foto de uma delas. Ou assistir a rituais indígenas em algum centro cultural em São Paulo e postar fotos de você ao lado de um neoxamã. Ou postar foto de você com transexuais mostrando que você ama a diversidade. Ou postar frases do tipo Odeie seu ódio!. Ou imagens de sua filha reciclando lixo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Veja que a banalidade do bem tem uma dependência direta de você postar que você é do bem. Se o habitat natural da banalidade do mal são a burocracia e a gestão, o habitat natural da banalidade do bem são as redes sociais.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Aliás, um sintoma típico da banalidade do bem é dizer frases do tipo fazer o bem faz você se sentir bem consigo mesmo. Evite pessoas que falam frases como essas. Se forem suas amigas, provavelmente pegarão seus maridos ou namorados, se tiverem uma chance. Se forem seus amigos, provavelmente, também pegarão seus maridos e namorados.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A banalidade do bem convive bem com sua irmã mais velha, a banalidade do mal. Aliás, arriscaria dizer que as duas fazem uma dupla e tanto. A caçula, como toda caçula, tende a ser mais gostosinha e em forma. A banalidade do bem tem vida equilibrada, só come comida sem glúten, sem gordura trans, faz yoga e fala para os filhos sobre desigualdade social.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Ambas estão preocupadas com a janta, mas a banalidade do mal, mais pobrinha, se contenta com novela da Globo enquanto come a janta. Já a banalidade do bem, mais chiquinha, é do tipo vinho branco com comida peruana.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Mas, atenção! Se você tem certeza de que é uma pessoa do bem e ficar eufórica, tome remédio contra fungos. E seja discreta e não conte para ninguém.<br /><br /></div>
Pró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-205942312916252074.post-19991192124128869752015-06-29T11:59:00.000-07:002015-06-29T11:59:32.525-07:00Encontros com Susan - Fragmentos de uma entrevista de 1978<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://f.i.uol.com.br/folha/ilustrissima/images/15175621.jpeg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="640" src="http://f.i.uol.com.br/folha/ilustrissima/images/15175621.jpeg" width="360" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Francesca Angiolillo</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Ilustração de Leda Catunda</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Da Ilustríssima</b></div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A escritora norte-americana Susan Sontag (1933-2004) foi entrevistada duas vezes em 1978 pelo jornalista Jonathan Cott para a revista Rolling Stone, que, em 1979, publicou parte do diálogo. A íntegra, editada em inglês em 2013, sai no mês que vem no Brasil; uma seleta das respostas é apresentada, em tópicos, aqui.</div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
*</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Um escritor é alguém que presta atenção ao mundo. A famosa definição de Susan Sontag para seu ofício é, quase certamente, a melhor definição dela própria.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Ficcionista, dramaturga, crítica e sobretudo ensaísta mas também cineasta e, notavelmente, ativista, Sontag foi autora de um livro inteiro sobre fotografia no qual, ultrapassada a capa, não há uma só fotografia; e de um ensaio de história cultural sobre a doença escrito praticamente num leito de hospital, ao longo de um tratamento contra o primeiro de seus dois cânceres o segundo a mataria aos 71 anos, em 2004.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Foi em 1978, aproximando-se a confluência desses lançamentos Sobre Fotografia saíra no ano anterior; Doença como Metáfora estava para sair, bem como o livro de contos I, Etcetera que o jornalista Jonathan Cott entrevistou a escritora. Ele conhecera Sontag quando era aluno na Universidade Columbia, em Nova York, onde ela lecionava, e viria a ter com ela algumas vezes ao longo dos anos 1960. Até o fim da década seguinte, porém, Cott não tinha achado oportunidade para um almejado encontro mediado pelo gravador.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Quando Sontag aceitou a proposta de ser entrevistada para a revista Rolling Stone, eles se viram em Paris, onde a ensaísta estava morando, no mês de junho. Conversaram por três horas, ao fim das quais a entrevistada para surpresa do entrevistador, que ia se dando por satisfeito propôs um segundo encontro, em Nova York, para onde estava voltando.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Esse novo encontro se daria só em novembro; a entrevista foi publicada quase um ano depois, em outubro de 1979 um terço dela. A íntegra da conversa em dois tempos dormiu nos arquivos de Cott até 2013, quando foi publicada em livro pela Yale University Press. No mês que vem, sai no Brasil como Susan Sontag: Entrevista Completa para a Revista 'Rolling Stone' [trad. Rogério Bettoni, Autêntica, R$ 34, 128 págs.].</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Na segunda resposta a Cott, Sontag expressa sua noção de estar no mundo e atenta.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Olha, o que quero é estar presente por inteiro na minha vida ser quem você é de verdade, contemporânea de si mesma na sua vida, dando plena atenção ao mundo, que inclui você. Você não é o mundo, o mundo não é idêntico a você, mas você está nele e presta atenção nele. O escritor faz isso presta atenção no mundo. Sou contra essa ideia solipsista de que está tudo na nossa cabeça.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
De uma ou outra forma, as cerca de cem páginas que se seguem podem ser lidas como uma glosa dessa ideia e de outra, complementar, que é a de que esse estar no mundo é sempre mutável.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Cott recorda que, em determinado momento entre os dois encontros, Sontag lhe dissera: Precisamos nos ver logo porque eu posso mudar demais. Isso me surpreendeu, confessa ele. Rindo, a escritora responde: Por quê? Parece tão natural.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
DESLOCAMENTOS</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Sontag teve uma biografia incomum e marcada por mudanças e deslocamentos, nem sempre voluntários. Não conheceu o pai, um comerciante de peles que morreu na China quando ela tinha quatro anos. Sua mãe, alcoólatra, decidiu sair de Nova York para o Arizona em busca de clima mais quente para a irmã de Susan, que era asmática.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Ter aprendido a ler sozinha aos três anos, quando a maioria das crianças está ainda estruturando a linguagem verbal, fez dela uma devoradora de livros. Mais ainda, fez com que ela questionasse a validade mesma do conceito de infância, como se vê na entrevista.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Diante da conturbada vida familiar, afirma-se sem origens, o que pode ter a ver com a perseguição da autonomia em sua trajetória.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Precoce em tudo, casou-se aos 17 com Philip Rieff, seu professor na Universidade de Chicago a segunda que frequentava, depois de um período em Berkeley. Aos 25, abandonaria casamento e vida acadêmica de uma tacada, após um período na Europa. Seguiu vida independente, ao lado do filho, David, e de amantes a última foi a fotógrafa Annie Leibovitz.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A maneira como saltou de tema a tema e se aventurou em diferentes formas de expressão, semelhante à forma errática como escolhia leituras na infância, é notável e, às vezes, vista como ligeireza.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Não se pode interpretar a obra a partir da vida. Mas pode-se, a partir da obra, interpretar a vida, escreveu em um de seus ensaios mais famosos, Sob o Signo de Saturno. O que diz sobre o filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940), vale em boa extensão para ela mesma, e os fulcros entre as instâncias surgem na entrevista com Cott, ao final da qual fica a impressão de que Sontag está mais em seus livros do que considerava.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Embora seu pensamento seja límpido a maneira articulada como falava, em parágrafos extensos e bem cuidados, é frisada por Cott no prefácio a figura que fica desse livro é mais errática, humana e acessível do que a imagem de séria Minerva, mecha branca sobre a fronte, que se tem dela.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
É essa a Sontag que, na íntegra, nos convida a ler sua obra e nos faz pensar sobre o que, no mundo de hoje, captaria sua atenção.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
ESTAR NO MUNDO</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O que quero é estar totalmente presente na minha vida -ser quem você realmente é, contemporânea de si mesma na sua vida, dando plena atenção ao mundo, que inclui você. Você não é o mundo, o mundo não é idêntico a você, mas você está nele e presta atenção nele. O escritor faz isso -presta atenção no mundo. Sou contra essa ideia solipsista de que está tudo na nossa cabeça. Mentira, há um mundo lá fora quer você esteja nele ou não.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
ESCREVER SOBRE A DOENÇA</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Escrever não costuma ser agradável para mim. Geralmente é muito cansativo e entediante, porque passo por muitos rascunhos quando escrevo. E, apesar do fato de que tive</div>
<div style="text-align: justify;">
de esperar um ano para começar a escrever, A Doença como Metáfora foi uma das poucas coisas que escrevi bem rápido e com prazer, pois podia me conectar com tudo que estava acontecendo diariamente na minha vida.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
ENVELHECER</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Você não pode se irritar com a natureza. Não pode se irritar com a biologia. Todos nós vamos morrer -é algo muito difícil de aceitar- e todos vivenciamos esse processo. A sensação é de que existe uma pessoa -na sua cabeça, basicamente- presa nesse repertório fisiológico que vai sobreviver pelo menos uns 70 ou 80 anos, normalmente, em uma condição decente qualquer. Em certo momento ela começa a se deteriorar, e então durante metade da sua vida, talvez até mais, você observa essa matéria se desgastar. E não pode fazer nada a respeito.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
LEITURA</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Ler é minha diversão, minha distração, meu consolo, meu pequeno suicídio. Quando não consigo suportar o mundo, me enrosco a um livro, e é como se uma nave espacial me afastasse de tudo. Mas minha leitura não é nada sistemática. Tenho muita sorte de conseguir ler rápido, acho que, comparada à maioria das pessoas, sou uma leitora veloz, o que me dá uma vantagem grande de poder ler bastante, mas também tem suas desvantagens porque não me envolvo muito com aquilo, apenas absorvo e deixo digerindo em algum lugar. Sou muito mais ignorante do que as pessoas pensam. Se você me perguntar o que significa estruturalismo ou semiologia, não saberei dizer. Sou capaz de me lembrar de uma imagem numa frase de Barthes e ter uma ideia geral daquilo, mas não entender muito bem.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
ARGUMENTOS</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Não tenho paciência para ensaios que usam um argumento linear. Sinto que tenho de tornar as coisas mais sequenciais do que realmente são porque minha mente simplesmente salta, e um argumento, para mim, se parece muito mais com os raios de uma roda do que com os elos de uma corrente.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
AUTONOMIA</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Meu desejo era ter diversas vidas, e é muito difícil ter diversas vidas quando temos um marido -pelo menos no tipo de casamento que eu tinha, algo inacreditavelmente intenso. [...] Por isso digo que, em algum momento da nossa trajetória, precisamos escolher entre a Vida e o Projeto.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
ERUDITO & POPULAR</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
No final dos anos 50, vivi num universo totalmente acadêmico. Ninguém sabia de nada, e eu não conhecia uma única pessoa com quem pudesse compartilhar essas coisas, então não comentava nada com ninguém. Não perguntava coisas do tipo: Você ouviu aquela música?. As pessoas que eu conhecia falavam de Schönberg. Muita gente diz um tanto de baboseiras sobre os anos 50, mas é verdade que, naquela época, havia uma separação completa entre as pessoas antenadas com a cultura popular e aquelas envolvidas com a alta cultura. Nunca conheci ninguém que se interessasse pelas duas coisas; eu sempre me interessei pelas duas e costumava fazer tudo sozinha porque não tinha ninguém com quem compartilhar. Em determinado momento, é claro, tudo mudou. E isso é o interessante dos anos 60. Mas agora, como a alta cultura está sendo liquidada, as pessoas querem dar um passo para trás e dizer: Ei, espera um minuto, Shakespeare ainda é o maior escritor que já existiu, não se esqueçam disso.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
TEMAS</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Eu não fazia ideia de que estava dizendo a mesma coisa desde que comecei a escrever. É impressionante, mas não gosto de pensar muito nisso porque pode acontecer algo com o que tenho na minha cabeça. A maioria das coisas que faço, ao contrário do que pensam, é muito intuitiva e nada premeditada, e não aquele tipo de atividade cerebral calculada que as pessoas imaginam. Apenas sigo meus instintos e minhas intuições.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
FOTOGRAFIA</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Eu amo fotografias. Não tiro fotos, mas observo, gosto, coleciono, sou fascinada por elas... é um interesse antigo e muito apaixonado. Comecei a ter vontade de escrever sobre fotografia quando percebi que essa atividade central refletia todos os equívocos, contradições e complexidades da nossa sociedade. Esses equívocos, contradições ou complexidades definem a fotografia, a maneira como pensamos. E considero interessante que essa atividade, que para mim envolve tirar fotografias e também observá-las, encapsula todas essas contradições -não consigo pensar em outra atividade em que todos esses equívocos e contradições estejam tão incorporados.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
FRAGMENTOS</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A Vênus de Milo nunca teria se tornado tão famosa se tivesse braços. Começou no século 18, quando as pessoas viram a beleza das ruínas. Suponho que o amor pelos fragmentos tem primeiro a ver com certo sentido do páthos da história e com as devastações do tempo porque o que aparecia para as pessoas na forma de fragmentos eram obras, cujas partes despencaram, foram perdidas ou destruídas. E agora, é claro, é possível e muito convincente que as pessoas criem obras na forma de fragmentos. Os fragmentos no mundo do pensamento ou da arte parecem ruínas, como aquelas artificiais que os ricos colocavam em suas propriedades no século 18.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
SENTIR E PENSAR</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Uma das minhas campanhas mais antigas é contra a distinção entre pensar e sentir, o que é realmente a base de todas as visões anti-intelectuais: cabeça e coração, pensamento e sentimento, fantasia e julgamento... não acredito que isso seja verdade. Temos mais ou menos o mesmo corpo, mas tipos muito diferentes de pensamentos. Acredito que pensamos muito mais com os instrumentos dados pela cultura do que pelo corpo, e disso surge uma diversidade muito maior de pensamento no mundo. Tenho a impressão de que o pensar</div>
<div style="text-align: justify;">
é uma forma de sentir, e que o sentir é uma forma de pensar.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
METÁFORAS</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Não que eu seja contra poesia -ao contrário, as duas coisas que mais leio são poesia e história da arte. Mas, na medida em que existe uma coisa chamada prosa e outra coisa chamada pensamento, acho que fico girando e girando em torno do problema do que é a metáfora.Não é como uma comparação: se você diz que uma coisa é como outra coisa, tudo bem, você deixa claro quais são as diferenças... embora às vezes não fique tão claro, porque a poesia pode ser muito compacta. Mas quando você diz, por exemplo, a doença é uma maldição, vejo como um tipo de colapso do pensamento -é uma forma de parar de pensar e cristalizar as pessoas em determinadas atitudes.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
ESTEREÓTIPOS</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
As pessoas dizem o tempo todo: Ah, não posso fazer isso. Tenho 60 anos, estou velha demais. Ou: Não posso fazer isso, tenho 20 anos. Sou nova demais. Por quê? Por que dizer isso? Na vida você quer manter o máximo possível de opções abertas, mas é claro que quer poder ser livre para fazer escolhas verdadeiras. Quer dizer, não acho que você possa ter tudo, e é preciso fazer escolhas. Os americanos tendem a pensar que tudo é possível, e eu gosto disso nos americanos [rindo]; nesse sentido me sinto muito americana.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
MASCULINO E FEMININO</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Sinto uma lealdade intensa para com as mulheres, mas ela não se estende ao ponto de dar minha obra apenas para revistas feministas porque também sinto uma lealdade intensa para com a cultura ocidental. Apesar do fato de ser profundamente comprometida e corrompida pelo sexismo, é essa a cultura que temos, e sinto que precisamos trabalhar com essa coisa comprometida, ainda que sejamos mulheres, e fazer as correções e transformações necessárias.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
TRANSSEXUALIDADE</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Certamente haverá outros relatos no futuro, mas o que as pessoas mais notaram sobre a mudança de Jan Morris é que ela realmente se identifica com uma ideia bem convencional de feminilidade -quando James Morris cogitou como seria se tornar Jan Morris, pensou o seguinte: Eu gostaria de vestir isso, agiria dessa ou daquela maneira, sentiria isso ou aquilo, e ela o fez em termos que considero estereótipos culturais convencionais.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
INFÂNCIA</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Comecei a ler aos três. O primeiro romance que me comoveu foi Os Miseráveis -chorei, solucei, lamentei. Quando você é uma criança leitora, acaba lendo os livros que estão pela casa. Lá pelos 13 anos, li Mann, Joyce, Eliot, Kafka, Gide -basicamente os europeus. Só fui descobrir a literatura americana muito depois. Descobri um monte de escritores nas edições da Modern Library, que eram vendidas numa loja de cartões comemorativos da Hallmark, e eu costumava guardar minha mesada e comprar todos. Cheguei a comprar uns abacaxis também, como A Riqueza das Nações, de Adam Smith [rindo]. Eu achava que tudo da Modern Library devia ser ótimo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
ORIGENS</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Não quero retornar às minhas origens. Acho que elas são apenas o ponto de partida. Minha interpretação é de que já cheguei longe demais. E o que me agrada é a distância que já percorri desde minhas origens. Isso porque tive, como já mencionei, uma infância sem raízes e uma família extremamente fragmentada. Em Nova York tenho vários parentes próximos que nunca vi. Não sei quem são. E isso tem apenas a ver com o fato de eu fazer parte de uma família que ruiu, se desintegrou ou se separou. Não tenho nada a que retornar, não consigo imaginar o que encontraria. Passei a vida toda me distanciando.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
AMOR</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Pedimos tudo do amor. Pedimos que seja anárquico. Pedimos que seja o elo que une a família, que permite que a sociedade seja ordenada, que permite que todos os tipos de processos materiais sejam transmitidos de uma geração para a outra. Mas acredito que a conexão entre amor e sexo é muito misteriosa. Parte da ideologia moderna do amor consiste em assumir que amor e sexo andam sempre juntos. Acho que eles podem andar juntos, mas acredito mais numa coisa em detrimento da outra. Talvez o maior problema dos seres humanos seja o fato de as duas coisas simplesmente não caminharem juntas. E por que as pessoas querem se apaixonar? Isso é muito interessante. Em parte, as pessoas querem se apaixonar da mesma maneira como voltam a uma montanha-russa -mesmo sabendo que seu coração vai se partir.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
AUTODIDATA</div>
<div style="text-align: justify;">
Penso em mim mesma como alguém que se criou -é uma ilusão que funciona. Também penso em mim mesma como autodidata, apesar de ter tido uma excelente educação -Berkeley, Chicago, Harvard. Mas ainda acho que, em essência, sou autodidata. Nunca fui discípula nem protegida de ninguém, não fui lançada por ninguém, não fiz minha carreira por ser amante, esposa ou filha de alguém. Nunca esperei que fosse de outra maneira.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
ZERAR</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Sabe, eu tenho uma fantasia persistente -é claro que nunca a realizo porque não sei como, e talvez também não tenha tanto tempo de vida para fazê-la valer a pena- mas tenho essa fantasia de jogar tudo para o alto e começar do zero, usando um pseudônimo que ninguém relacionaria a Susan Sontag. Eu adoraria fazer isso, seria maravilhoso começar de novo e não ter de carregar o peso de uma obra já feita.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
MUDANÇAS</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Sinto que estou mudando o tempo inteiro, algo difícil de explicar, porque as pessoas costumam acreditar que a atividade do escritor está ou ligada à expressão de si ou à criação de uma obra que convença ou mude as pessoas de acordo com as visões do escritor. Não acho que nenhum dos dois modelos faça sentido para mim. Quer dizer, escrevo em parte para mudar a mim mesma, de modo que não tenha que pensar sobre alguma coisa depois de escrever sobre ela. Na verdade escrevo para me livrar dessas ideias.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
TAREFA</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Antes eu disse que a tarefa do escritor é prestar atenção no mundo, mas obviamente acredito que a tarefa do escritor, como a concebo em relação a mim mesma, também é manter uma relação agressiva e antagônica para com todos os tipos de falsidade... [...] Acho que sempre deveria haver pessoas autônomas que, por mais quixotesco que pareça, tentam arrancar mais algumas cabeças [da Hidra de Lerna], tentando acabar com a alucinação, a falsidade e a demagogia, tornando as coisas mais complicadas, pois existe um impulso inevitável para tornar as coisas mais simples.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
VIDA & OBRA</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Se algo que na verdade acontece cabe perfeitamente num personagem que estou escrevendo, posso muito bem usar aquele fato em vez de criar algo diferente. Então às vezes emprego coisas da minha própria vida porque parecem funcionar, mas não acho que eu esteja representando a mim mesma. [...] Eu estou interessada é no que está no mundo. Toda a minha obra é baseada na ideia de que realmente existe um mundo, e sinto que estou nele de fato.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
PARAR DE PENSAR</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Para mim, a coisa mais terrível seria sentir que concordo com as coisas que já disse e escrevi -isso me tornaria ainda mais desconfortável, pois significaria que parei de pensar.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>FRANCESCA ANGIOLILLO, 43, é editora-adjunta da Ilustríssima.</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>LEDA CATUNDA, 54, é artista plástica. Ela participa da exposição Geração 80: Ousadia & Afirmação na galeria Simões de Assis, em Curitiba, até 1/8.</b></div>
Pró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-205942312916252074.post-54968398057456580932015-06-15T12:13:00.000-07:002015-06-15T12:17:58.511-07:00Nossos gostos culturais estão muito infantilizados?<div style="text-align: justify;">
</div>
<div style="text-align: center;">
<img src="http://webinsider.com.br/wp-content/uploads/2012/08/batman-cavaleiro-das-trevas-ressurge.jpeg" height="266" width="400" /></div>
<b><br />Michael Hogan e Ed Cumming</b><br />
<div style="text-align: justify;">
<b>Do "Guardian"</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Tradução de Paulo Migliacci</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Michael Hogan, crítico de entretenimento</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O nerd meiguinho mostrou os dentes esta semana quando o ator Simon Pegg criticou os filmes de super-heróis como infantis e sugeriu que a indústria do cinema havia emburrecido. Isso pode ser um exemplo clássico de sujeito com telhado de vidro atirando pedra, no caso de Pegg, cuja carreira inteirinha consiste em ser o palhaço príncipe dos nerds, como ele mesmo conta em sua autobiografia Nerd Do Well [trocadilho que contraria a expressão ne'er do well, que descreve os sujeitos que jamais se dão bem]. Mas concordo com a crítica.</div>
<div style="text-align: justify;">
A cultura pop desativou os nossos cérebros e paralisou nosso desenvolvimento. Os cinemas estão repletos de espetáculos de computação gráfica, desenhos animados fofos da Pixar e entediantes continuações de passados sucessos. Todos os nossos restaurantes servem hambúrgueres artesanais, hot dogs finos e frango frito falsamente irônico. Nossos guarda-roupas estão lotados de blusas com capuz, macacões, camisetas com logotipos e outras formas de roupas de bebê superdimensionadas. Nossos feeds de Facebook estão repletos de monossílabos infantis e de fala de bebê simulada. É como se estivéssemos congelados na adolescência, e o pronunciamento de Pegg procede, ainda que seja um tanto absurdo, vindo dele.</div>
<div style="text-align: justify;">
Depois da inevitável tempestade em xícara de chá que o Twitter sempre propicia, ele retirou o que havia dito, em um post de blog no qual critica sua afirmação anterior (bem, pelo menos não foi uma carta aberta). Simon Pegg pode ter se colocado em uma enrascada, mas o ponto original de seu argumento continua válido. A vingança dos nerds agora se completou, e eles herdaram o planeta. Mas sua produção subsequente nos transformou em crianças grandes, obcecadas por quadrinhos, jogos de computador, fast food e nostalgia preguiçosa. Os sonhos que sonhávamos acordados em nossas infâncias dos anos 80 e 90 se tornaram realidade no século 21 e isso representa um desperdício cretino para todos nós.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>Ed Cumming, editor de artigos da revista do Observer</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Como ele mesmo percebeu rapidamente, as palavras de Pegg foram um passo em falso. Mas é possível compreender o motivo: o lamento de todos os homens que começam a envelhecer por as coisas já não serem o que eram. Para os nerds, o problema não é que existam astronautas e super-heróis demais, mas que agora o tipo errado de pessoas gosta deles. Pode-se compreender por que isso irrita o sujeito - constrói uma persona em torno de encontrar valor em formas de arte negligenciadas, e agora de repente todo mundo mais também as adora. A primeira estratégia, nesse caso, é redefinir sua posição e insistir em chamar quadrinhos de graphic novel - um exemplo clássico de insistir em um rótulo inteligente que na verdade prova burrice. O passo seguinte é deixar essas coisas no passado, como Pegg alega estar acontecendo com ele. Mas sua declaração não nos engana.</div>
<div style="text-align: justify;">
Ele recua a filmes como Taxi Driver, esquecendo que em 1976 o épico de Scorsese foi superado nas bilheterias por King Kong e pela versão de Nasce uma Estrela com Barbra Streisand, que ninguém compararia ao Rei Lear de Kosintev. Thor e Capitão América podem ter faturado mais, mas os filmes mais comentados do ano passado foram um longa de três horas sem trama aparente sobre o amadurecimento (Boyhood) e um filme de arte sobre um baterista de jazz (Whiplash). O Oscar de melhor ator foi para uma interpretação de um astrofísico que sofre de uma profunda deficiência física. Onde está o emburrecimento? Online, todo mundo pode ser crítico e criador - má notícia para a velha guarda mas boa notícia para a cultura pop.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<i style="font-style: italic;">MH:</i> Os filmes que você citou foram os mais mencionados pelos críticos de grandes jornais, pelos comitês de seleção para prêmios e pela pavorosa elite metropolitana, mas não no mundo real. Nas bilheterias tanto britânicas quanto mundiais, nenhum deles esteve entre os 50 filmes mais assistidos - lamentavelmente liderado por Transformers, que encabeçou os 10 mais em companhia de quatro filmes de super-heróis, quatro continuações e uma aventura espacial.</div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
Quando eu era menino (é aqui que entra a música do anúncio da Hovis), havia um Guerra nas Estrelas ou Super-Homem por ano, se a gente tivesse sorte. Eram verdadeiros eventos para a comunidade, e os cinemas locais lotavam de crianças de verdade, e não de homens de meia-idade e infantilizados falando sem parar sobre repaginações, arcos narrativos e histórias sombrias sobre origens, em um esforço por tentarem se convencer de que não estão aprisionados em um eterno loop adolescente.</div>
<div style="text-align: justify;">
Hoje em dia, com um olho nos lucrativos mercados estrangeiros, o outro no merchandising e o terceiro (estamos falando de ficção científica - três olhos são admissíveis) na risonha audiência de homens-meninos, há meia dúzia de adaptações de histórias sobre aventureiros mascarados a cada ano. Os Vingadores: Era de Ultron (acho que a história gira em torno de sabão em pó) continua a liderar as bilheterias, e no verão podemos esperar Ant-Man e The Fantastic Four - para não mencionar novas sequências nas franquias Jurassic Park, Exterminador do Futuro e Missão Impossível, e mais incontáveis outras continuações idiotas de filmes de grande sucesso. É como apanhar na cabeça com um martelo de burrice, e não deveria ser considerado coisa de velhote ou esnobismo dizê-lo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>EC:</i> Há muitos filmes como esses porque eles refletem os apetites da era. Se por mundo real você quer dizer as audiências dos filmes de maior sucesso, então estamos falando de principalmente de rapazes jovens, que sempre gostaram de tiroteios e pancadaria, mas agora se sentem ansiosos quanto aos efeitos da tecnologia e portanto atraídos por filmes que refletem esses medos.</div>
<div style="text-align: justify;">
Além disso, existe tanta opção no mundo do entretenimento que as audiências de cinema se deixam atrair por extremos: as lutas mais empolgantes, os efeitos especialíssimos. Os filmes de grande orçamento não concorrem mais só com outros filmes, mas com Grand Theft Auto, Call of Duty e qualquer que seja a mais recente novidade que as pessoas estão baixando em seus celulares. É reducionista dizer que isso é necessariamente infantil. A concorrência gera inovação.</div>
<div style="text-align: justify;">
Os grandes estúdios de Hollywood podem depender de marcas conhecidas para sustentar um filme e atrair a atenção inicial das pessoas, mas para além disso há muito trabalho interessante em circulação. Nem mesmo Simon Pegg ousaria argumentar que os filmes de Christopher Nolan sobre o Batman foram piores do que as lambanças anteriores. X-Men, Transformers e Homem de Ferro provaram que se pode fazer mais com o gênero do que medíocres filmes de Super-Homem. JJ Abrams deu vida nova a Jornada nas Estrelas, e parece provável que faça o mesmo com Guerra nas Estrelas. Anjos da Lei 2 foi ainda mais engraçado que o original. Não deveríamos nos deixar enganar por nomes conhecidos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>MH:</i> Quer dizer que a trilogia Cavaleiro das Trevas (quase oito horas de resmungos autoindulgentes com um pedacinho bacana ou outro) foi um pouquinho melhor que as versões cafonas de Joel Schumacher nos anos 90, Anjos da Lei 2 foi ligeiramente mais engraçado e alguns filmes de gente fantasiada e espaçonaves foram marginalmente melhores do que poderiam ter sido? Nossa, estou deslumbrado. Mais mediocridades da Marvel, por favor.</div>
<div style="text-align: justify;">
Mas, deixando o sarcasmo de lado, com certeza a era geek já chegou ao pico; será que a fixação de Hollywood por franquias que giram em torno de explosões não poderia ser atenuada em troca de dramas adultos e mais interessantes para a audiência geral? Com porcarias sobre robôs em uma ponta do espectro e bateria de jazz na outra, acho que a distância entre as salas de arte e o multiplex está se ampliando demais. Também gostaria que os preços dos ingressos caíssem para que as audiências não se sentissem compelidas a assistir só aos sucessos garantidos e pudessem experimentar mais. Nerds do planeta, tirem seus óculos 3-D e camisetas falsamente irônicas sobre Bobba Fett (pelo menos até que comece o frenesi de Guerra nas Estrelas, em dezembro). Vocês nada têm a perder exceto a virgindade.</div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>EC:</i> Não sei se você merece vencer um debate sobre a infantilização da cultura pop com uma piadinha sobre virgindade. Mas, deixando isso de lado, sim: a moda de filmes marcados por explosões criadas em computador vai passar. A História separará o joio do trigo. Mas é um mito pensar que algum dia existiu demanda pelo tipo de drama sério sobre o qual você fala. É como imaginar que os romances vitorianos fossem todos brilhantes como os de Dickens, e não histórias vulgares sobre quem dormiu com quem. Cada era tem suas modas, seus artefatos culturais improváveis. Alegar que a nossa é de alguma maneira mais pueril do que qualquer das precedentes, ou que nossos interesses são menos dignos de respeito, é o cúmulo do narcisismo; é até infantil.</div>
<br />
<br />
<br />Pró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-205942312916252074.post-32073926953362146172015-05-06T13:47:00.000-07:002015-05-06T13:47:11.939-07:00Orson Welles,100 anos: Inacabado e incômodo<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://revistacult.uol.com.br/home/wp-content/uploads/2015/04/welles-813x1024.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="http://revistacult.uol.com.br/home/wp-content/uploads/2015/04/welles-813x1024.jpg" width="317" /></a></div>
<div style="text-align: center;">
<b><span style="font-size: x-small;">Orson Welles, "Faustus", 1937, Mercury Theatre - Imagem do livro "Orson Welles: Banda de um homem só", Rio de Janeiro, Editora Azougue, 2015 (no prelo)</span></b></div>
<div style="text-align: center;">
<b><br /></b></div>
<b><br /></b>
<b>Por Adalberto Müller</b><br />
<b>Da Revista Cult</b><br />
<br />
<div style="text-align: justify;">
Comemorar os 100 anos do nascimento de Orson Welles, além do aspecto memorialístico, implica em discutir uma vida e uma obra cheias de lacunas e de mistérios. Como muitos de seus personagens, ele foi e é, ainda, um enigma. George Orson Welles teve muitas vidas. Ou, pelo menos, duas.</div>
<div style="text-align: justify;">
Em uma delas, foi uma celebridade: nos palcos, em carreira meteórica a partir dos 17 anos; no rádio, criou novas formas de comunicação e provocou um estado de caos nos EUA, com A guerra dos mundos; no cinema, assinou o mais generoso contrato que jamais diretor algum assinaria com Hollywood, que o levou a dirigir, aos 25 anos, Cidadão Kane, marco do cinema moderno; na política, aliado importante do New Deal de Franklin Delano Roosevelt; enfim, um diretor decisivo na transformação do cinema europeu, nos anos 1950 e 1960, influenciando diretamente e interagindo com diretores da Nouvelle Vague, dos novos cinemas europeus, e do “terceiro mundo” (Glauber Rocha, Paulo Emílio Salles Gomes, e Vinicius de Moraes o atestam).</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Na outra vida, foi um homem marcado, desde a infância, por instabilidades emocionais; por casamentos e relacionamentos que não deram certo; por inimizades e traições; por uma vida boêmia, errante e sem domicílio – Welles passou sua vida em hotéis. A maior parte de suas obras foi recusada ou mutilada, e deixou uma fileira tão grande quanto impressionante de projetos inacabados. Essa obra fragmentária, hoje em arquivos, ajuda a repensar o legado de Welles.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Se é verdade que a relação entre a obra e o homem é importante para atingir a compreensão do estilo, no caso de Welles é preciso pensar em dois tipos de obra, e dois tipos de estilo: uma, a grandiosa, a grandiloquente, a insuperável obra composta por filmes hoje clássicos, que vale lembrar: Cidadão Kane, Soberba, A dama de Shangai, Otelo, A marca da maldade, Falstaff e Verdades e mentiras; outra, a obra incompleta, inacabada, problemática: Heart of Darkness (1939-1940), It’s All True (1942-?), Don Quixote (1957-1972-?), Moby Dick (1956-?), The Other Side of The Wind (1970-1976-2015-?). Ou seja, há um Welles muito além de Cidadão Kane. Mas estranhamente, Kane também ajuda a pensar Welles e suas obras.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Em Cidadão Kane, Welles expõe, através da vida do magnata das mídias, Charles Forster Kane, que todas as formas de poder, na era moderna, se consolidam com os meios de comunicação de massa (hoje apoiados pelas chamadas mídias sociais, que apenas replicam mensagens dominantes). Pode-se dizer que Cidadão Kane é, para o cinema, o que Kant é para a filosofia: ele pôs em questão, nesse filme, as infinitas possibilidades de se fazer um filme, de se fazer cinema. Produzido dentro de Hollywood, o filme rompia com praticamente todas as convenções de dramaturgia e de estilo do “cinema clássico hollywoodiano”. Começa rompendo a moldura causal e psicológica do realismo e do romanesco pseudoaristotélico. Ao invés de uma narrativa linear, é como um quadro cubista, oferecendo múltiplas perspectivas para os fatos, criando vazios e incertezas. Também rompeu com modos de fotografar e de montar os filmes. Kane é, em vários sentidos, um antifilme, um filme que se desconstrói, um filme-enigma. A própria figura de C. F. Kane é ambígua, e se torna vítima de sua própria sede de poder – o que acontece em outros filmes wellesianos como Macbeth e A marca da maldade.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A figura do monomaníaco ambicioso e despótico habita a maior parte das obras de Welles. Desde o seu Dracula radiofônico (1937) até o ambicioso projeto de um oratório multimídia chamado Moby Dick (1956) sobre o maníaco capitão Ahab. Em seu projeto de adaptar Joseph Conrad (Coração das trevas, 1939-1940), Welles iria protagonizar (com uso de câmera subjetiva) tanto Marlow, o jovem aventureiro, quanto Kurtz, o déspota esclarecido na selva africana (o qual seria, depois, interpretado por Marlon Brando, no filme de Coppola, que parte do projeto de Welles).</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Como grande leitor de Shakespeare, Welles sempre se preocupou com a questão do poder. Mais do que isso, com o modo como o poder deixa de ser um meio para se transformar num fim. A sede de poder, a vontade de poder, é o motor do cinema wellesiano. Vale lembrar que o jovem Orson, aos nove anos, pretendia escrever um ensaio sobre Nietzsche. Por isso mesmo, os seus magnatas (Kane, Amberson, Arkadin) são figurações do poder da plutocracia americana, que ele conheceu de perto. </div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Nascido e criado no meio-oeste americano, filho de um industrial, Welles sabia que a engrenagem do poder, na modernidade, roda infinitamente com o óleo do dinheiro, enquanto vai moendo os menos favorecidos. Por isso mesmo, sua obra, mesmo que reprimida e fraturada, mesmo que fragmentária, é como o fantasma do velho Hamlet: sempre retorna para dizer que há algo de podre no reino do capitalismo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
Pró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-205942312916252074.post-12217456744632059592015-02-09T10:42:00.000-08:002015-02-09T10:42:02.872-08:00Humildade<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://www.spainisculture.com/export/sites/cultura/multimedia/galerias/obras_excelencia/lagrimas_san_pedro_detalle_mcu.jpg_1306973099.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="221" src="http://www.spainisculture.com/export/sites/cultura/multimedia/galerias/obras_excelencia/lagrimas_san_pedro_detalle_mcu.jpg_1306973099.jpg" width="400" /></a></div>
<div style="text-align: center;">
<b><span style="font-size: x-small;">As lágrimas de São Pedro (detalhe) - El Greco</span></b></div>
<div style="text-align: center;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Por Luiz Felipe Pondé</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Da Ilustrada</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span class="Apple-tab-span" style="white-space: pre;"> </span></div>
<div style="text-align: justify;">
A humildade é uma das virtudes mais difíceis na vida. Principalmente porque está fora de moda, confundida com baixa autoestima. Somos ensinados a buscar o orgulho como autoafirmação. Nada mais distante de uma personalidade razoavelmente madura do que o orgulho.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A humildade é uma das virtudes bíblicas. O filósofo judeu Martin Buber, quando elenca em seu maravilhoso (Prometheus Books), de 1988, as quatro principais virtudes do místico hassídico, coloca a humildade como a máxima entre elas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O hassidismo é uma escola judaica típica do leste europeu dos séculos 18 e 19, e o termo vem da palavra hebraica hesed, que pode ser traduzida por piedade.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
As quatro virtudes são: êxtase na contemplação , trabalho , a intenção reta do coração e a humildade . Segundo ele, alguém que tem intimidade com D'us (no judaísmo, não se escreve o nome de Deus completo) tem gosto pelo trabalho, seja ele qual for, porque sente que ser parte do mundo é colaborar com ele.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O êxtase é o que acontece com quem vê D'us e sua piedade com frequência. O ato de contemplar D'us -a palavra , em hebraico, remete ao fogo- incendeia a alma. A intimidade com Deus leva o místico a não conseguir mentir aquilo que sente e pensa, ele diz. Daí a ideia de um coração reto.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Por fim, a humildade. As três anteriores convergem para o que Buber se refere como a consciência de que D'us carrega o mundo na palma da Sua mão, imagem comum na Bíblia hebraica (o Velho Testamento dos cristãos).</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
É comum personagens como Davi e Abraão usarem essa imagem ou similares para descrever a relação entre D'us e o mundo. A humildade é marca suprema da alma que se conhece sem mentir para si mesma.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A humildade também pode ser vista como grande virtude e desafio para pessoas distantes de qualquer sensibilidade religiosa, mas que têm grande sucesso na vida.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Se você é alguém que não teve sucesso na vida, dizer que é humilde é mais falta de opção do que qualquer virtude de fato. Por isso, a humildade sempre foi cobrada de grandes guerreiros e mulheres lindas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O sucesso, seja ele físico, financeiro, intelectual ou imaterial, sempre foi um desafio: o risco do sucesso é deformar a alma. Sobre isso, basta ver o horror que é o mundo intelectual e seu profundo desprezo (ao contrário do que querem transparecer) pelo povo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A chamada segurança de si vai melhor com a humildade do que com o self-marketing. Qualquer pessoa sabe que não se pode falar das próprias virtudes, porque o autoelogio é signo de desespero.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A humildade é o manto com o qual a alma virtuosa se cobre e esconde sua face. E isso nada tem a ver com tristeza ou falta de percepção do sucesso. A felicidade, quando verdadeira, é sempre uma forma de generosidade.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Assim como D'us esconde a sua face, segundo o hassidismo, para nos proteger de sua grandeza, o virtuoso esconde seu rosto em chamas, seja ele incendiado por D'us, seja pelo sucesso, para que não saibam que ele está acima do homem comum.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Não é outro o sentido de se dizer, no cristianismo, que Jesus era um humilde. Qualquer homem comum que fosse alçado a condição de D'us seria um miserável orgulhoso.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Porém, existe um outro tipo de humildade, de que não se costuma falar muito, mas que considero tão essencial quanto o que é mais falado no mundo da filosofia moral. Trata-se da humildade da qual fala Freud. Estranho? Nem tanto. Na psicanálise, a humildade é também essencial.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O sábio de Viena dizia que se ele conseguisse levar seu paciente a trabalhar e a amar razoavelmente, estaria satisfeito como psicanalista.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Além do fato de que grande parte dos psicanalistas é tão horrorosamente orgulhosa quanto minha tribo de filósofos e afins (em alguns casos, o orgulho de alguns beira o grotesco), acho que essa fala de Freud não serve apenas para esses profissionais, mas também para os pacientes.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Muitas vezes, se concentrar em conseguir levantar de manhã e trabalhar, conseguir olhar para as pessoas à sua volta e ser generoso, pode ser o maior dos milagres na Terra.</div>
<br />Pró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-205942312916252074.post-17795765608025702852015-02-04T11:40:00.001-08:002015-02-04T11:40:56.631-08:00As leis nas peças de William Shakespeare<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://i.telegraph.co.uk/multimedia/archive/02122/WILLIAM-SHAKESPEAR_2122089b.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="http://i.telegraph.co.uk/multimedia/archive/02122/WILLIAM-SHAKESPEAR_2122089b.jpg" height="250" width="400" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Por Nelson de Sá</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Da Ilustrada</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Livro de professor americano analisa peças do autor inglês (1564-1616) centradas no mundo jurídico para mostrar, por meio dessas questões, que a obra do bardo continua atual. Personalidades do direito e do teatro comentam no texto as relações entre literatura -não só a de Shakespeare- e a realidade contemporânea.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>*</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A primeira coisa a fazer: matar todos os advogados. O verso dito por Dick the Butcher em Henrique 6º, Parte 2 é apenas uma entre dezenas de referências ao direito nas peças de William Shakespeare. Na trama, é uma sugestão feita ao líder rebelde Jack Cade, convocando a destruir a ordem.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
São tantas referências que Mil Vezes Mais Justo - O Que as Peças de Shakespeare nos Ensinam sobre a Justiça [trad. Fernando Santos, WMF Martins Fontes, R$ 39,90, 320 págs.] deixa de lado Henrique 6º e outros textos do dramaturgo iniciante.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O livro de Kenji Yoshino concentra-se naqueles escritos do auge do autor, como as grandes tragédias (Hamlet, Otelo) e, sobretudo, as peças que retratariam as figuras do advogado (O Mercador de Veneza) e do juiz (Medida por Medida).</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A ideia é defender a noção de que Shakespeare continua, nas palavras de Jan Kott, nosso contemporâneo, explica, por e-mail, o autor, que é professor de direito constitucional da Universidade de Nova York -em Shakespeare, Nosso Contemporâneo, de 1961, o teórico polonês identifica o dramaturgo com as ideias e o teatro de meados do século 20.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Yoshino, que também dá aula de direito e literatura na NYU, reproduz o procedimento de Kott e relaciona, por exemplo, os volteios de raciocínio de Pórcia, a advogada do Mercador, com o que fez o então presidente Bill Clinton, também advogado, para se defender da acusação de perjúrio no caso Monica Lewinsky.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
De um lado, Pórcia diz que seu cliente não pode entregar uma libra da própria carne, como prometido em caso de não pagar uma dívida, porque verteria sangue -o que não está no contrato.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
De outro, Clinton, questionado sobre a declaração de não ter feito sexo com Lewinsky, diz que sexo oral passivo não é relação sexual, só ativo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Noutro capítulo, sobre Otelo, faz uma ponte entre o assassinato de Desdêmona por Otelo, com a prova questionável de um lenço, e o assassinato de Nicole Brown por O.J. Simpson, absolvido pela prova também questionável de uma luva, num julgamento controverso em 1994/95, nos EUA.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O personagem de Otelo se deixa enganar quanto a um lenço de Desdêmona, que teria sido encontrado com o suposto amante dela, o que detona as ações que o levam a matá-la. No caso real, uma luva apresentada pela acusação como sendo de Simpson é testada por ele no julgamento -após ter encolhido, embebida em sangue- e não lhe serve, o que se torna o mote da defesa para sua liberação.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Festejado por acadêmicos shakespearianos como Stephen Greenblatt, da Universidade Harvard, pela intensidade com que enfrenta a obra do dramaturgo, Yoshino é questionado por outros como Garry Wills, da Northwestern, para quem o estratagema usado permite aulas divertidas, mas não aprofunda o conhecimento das obras.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Aos críticos, Yoshino responde que continua à vontade com os paralelos que traça no livro -e que eles deveriam evitar o risco de se perderem nos detalhes, não vendo a floresta por causa das árvores, num provérbio inglês do tempo de Shakespeare. A floresta, sua tese, como descreve, é a contemporaneidade do dramaturgo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Questionado sobre eventuais paralelos também no Brasil, ele evita aventurar-se, dizendo conhecer pouco o panorama jurídico do país. Instado pela Folha, o advogado Pierpaolo Bottini, professor de direito penal da Faculdade de Direito da USP, arrisca um cotejo com Mercador, não necessariamente de Pórcia, mas do oponente dela, o judeu Shylock, personagem que defende a sua própria humanidade na peça: Um judeu não tem olhos? Um judeu não tem mãos, órgãos, dimensões, sentidos, afetos, paixões?, diz o personagem.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
No campo criminal, talvez o caso mais relevante de apelo a analogias de linguagem seja a defesa de Harry Berger por Sobral Pinto, que usou a lei de maus tratos aos animais para atacar o tratamento desumano que seu cliente sofria nos porões da ditadura do Estado Novo, diz. Apontou que a proteção aos animais se estendia, por óbvio, a humanos, fazendo dessa extensão do sentido literal da lei um argumento até hoje lembrado e repetido nos tribunais.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Sobre Otelo, Bottini, que foi secretário da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, lembra que o personagem Iago nutre ódio por Otelo porque este promoveu Cássio, e não a ele, desrespeitando de certa forma o critério de antiguidade. E esse é um dilema que até hoje assola nossos tribunais, por exemplo, onde são muito comuns as acusações de promoção por amizade.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O advogado brasileiro anota que, de modo geral, não só as peças de Shakespeare que tratam da questão jurídica mas todas as que tratam das relações de poder acabam repercutindo no direito.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>OLHO POR OLHO</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Um ano antes de Yoshino, o advogado José Roberto de Castro Neves, professor de direito civil da PUC-Rio e da Uerj, lançou Medida por Medida - O Direito em Shakespeare [GZ Editora, R$ 95, 473 págs.], já em sua terceira edição. Ele não busca pontes dos casos shakespearianos com episódios contemporâneos, mas é mais extensivo, analisando 27 peças, inclusive Henrique 6º.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Por exemplo, sobre Medida por Medida, que dá nome a seu livro e é uma referência direta à Justiça, Castro Neves escreve que a peça mostra como o exercício do poder é fonte de abusos, se os valores da sociedade e as leis são esquecidos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O título da peça é tirado por Shakespeare do Sermão da Montanha: Não julgueis, e não sereis julgados. Porque do mesmo modo que julgardes sereis também vós julgados e, com a medida com que tiverdes medido, também vós sereis medidos. Na trama, o duque de Viena, reconhecendo ser um juiz frouxo, deixa o poder com Ângelo, um puritano que, cruel e hipócrita, primeiro impõe as leis depois abusa delas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Para Yoshino, a peça contrapõe três concepções da Justiça: a do Novo Testamento, mais frouxa, representada pelo duque e baseada no sermão (não julgueis, e não sereis julgados); a do Velho Testamento, representada por Ângelo e baseada no Êxodo (vida por vida, olho por olho, dente por dente); e o sentido pagão, representado por um personagem menor, Escalo, que tomaria por base Aristóteles (temperança) e Arquimedes (meio-termo).</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O diretor brasileiro Ron Daniels, que trabalhou por 22 anos na Royal Shakespeare Company e se prepara no momento para encenar Medida por Medida no Brasil, diz considerar essas ideias todas sobre Shakespeare e o direito muito interessantes. O que me interessa, porém, mais do que um debate sobre a Justiça, é a jornada de cada um dos personagens em cena, como cada um se transforma no percorrer da peça, diz.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Acrescenta não ser uma atitude anti-intelectual, mas de quem acredita que o importante, em Medida por Medida, não é a análise da Justiça em abstrato, a não ser, talvez, no que se refere a um posicionamento impossivelmente radical perante a vida.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Quanto ao propósito declarado de Yoshino, de reforçar a noção de que as peças seguem tendo valor no mundo de hoje, pergunta, com ironia: Mas essa noção precisa mesmo de reforço?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>INIQUIDADES</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Questionado, José Roberto de Castro Neves arrisca uma ponte entre Shakespeare e o direito no Brasil hoje. Lembra que uma das questões jurídicas renitentes na obra é como agir diante de iniquidades. Bolingbroke, o futuro Henrique 4º, toma o poder em 'Ricardo 2º' exatamente porque vê seu direito ameaçado. A perda da ordem é o gatilho da tragédia, assim como o desrespeito à ordem jurídica cria o ilícito.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Prossegue ele: No Brasil de hoje, essa ordem se perdeu. A falta de ordem gera o caos, como ocorre em 'Henrique 6º', quando os nobres brigam pelo poder, deixando espaço livre para a balbúrdia. É então, em meio à balbúrdia, que Dick the Butcher defende matar todos os advogados. Claro, para que a revolução funcione, deve-se matar aquele que representa a proteção da lei, diz Castro Neves.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Cristiano Paixão, professor de direito constitucional da UnB e autor de estudo sobre O Mercador de Veneza, diz que é sempre difícil traçar esse tipo de paralelo, de Shakespeare com a atualidade.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Ele, porém, anota que Pórcia reflete o antissemitismo, questão bastante delicada em Shakespeare, e que a questão dos 'negros criminosos' aparece não só em Otelo, mas no sanguinário Aarão, de 'Titus Andronicus'. Antissemitismo e racismo que persistem, no Brasil e no resto do mundo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Se não Shakespeare, algum autor brasileiro pode ajudar a iluminar a Justiça por aqui?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
É difícil, mais uma vez, ligar a literatura ao crime para compreender o contemporâneo, responde Paixão. Mas eu teria uma sugestão: lendo as 'Memórias Póstumas de Brás Cubas', de Machado de Assis, encontra-se um excelente panorama da forma ambígua e complexa com que o Brasil lida com seu passado escravagista.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Pierpaolo Bottini também deixa uma proposta: Sempre que falamos em crimes e tormentos na literatura brasileira, o que me vem à cabeça é 'Angústia', de Graciliano Ramos, uma espécie de 'Crime e Castigo' tropical, que merece ser lido por todo aquele que se interessa pela matéria. Os conflitos psicológicos, a agonia mental, a decisão pelo crime são expostos de forma surpreendente.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><i><br /></i></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><i>NELSON DE SÁ, 54, é repórter especial da Folha. Assina o blog Cacilda com a fotógrafa Lenise Pinheiro no site do jornal.</i></b></div>
Pró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-205942312916252074.post-46493546875588335702015-02-03T11:27:00.001-08:002015-02-03T11:27:55.943-08:00Sobre a prepotência<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://veja.abril.com.br/050901/imagens/comportamento1.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="http://veja.abril.com.br/050901/imagens/comportamento1.jpg" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Por Marcia Tiburi</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Da Revista Cult</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
É bastante conhecida a passagem da Odisseia de Homero em que Ulisses encontra as sereias e, desejando ouvi-las sem enlouquecer, faz-se amarrar ao mastro do navio em que viaja, não sem antes alertar seus remadores para que tapem os ouvidos com cera e possam, deste modo, continuar a travessia normalmente. Esta história encanta muita gente há muito tempo, mas foi apenas Kafka quem percebeu a ingenuidade de Ulisses, a de acreditar que o poder do canto das sereias poderia ser contido por cera e cordas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Ao perceber isso, Kafka diz que há algo mais terrível do que o canto das sereias. Segundo ele, se alguém pudesse escapar ao canto das divindades telúricas, todavia não poderia escapar ao seu silêncio…</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
No conto de Kafka, Ulisses acreditou que as escutava. Mas as sereias não cantaram. E não cantaram porque Ulisses lhes pareceu um sujeito meio bobo com toda aquela parafernalha usada para proteger-se do seu canto.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Para entender Kafka, poderíamos nos perguntar mais ou menos assim: como pode alguém que vai ver e ouvir as sereias – justamente as SEREIAS – estar preocupado com outra coisa que não a experiência da coisa enquanto tal, uma coisa absurda como ouvir SEREIAS? Não se trata de música que se ouve no rádio, nem de nada que se possa baixar na internet pra ouvir com fones. Trata-se, afinal, do mítico canto das sereias. Convenhamos que não é pouca coisa, pensemos como Kafka. A verdadeira experiência de arrebatamento com a qual um ser humano sonha e da qual está impedido por limitações humanas, ali, finalmente realizável. E Ulisses? Ora, Ulisses quase chegou lá, mas preferiu menos, não porque quisesse permanecer humano (afinal, esse problema não era o seu), mas porque já estava com a consciência instrumentalizada.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Apesar da ingenuidade de Ulisses, as sereias gostariam de tê-lo capturado. Se não os ouvidos, pelo menos os olhos do herói astucioso. Mas os olhos de Ulisses não se dirigiam a elas. Não se dirigiam às forças temíveis da natureza que desejariam justamente aniquilar olhos em geral. Os olhos de quem se dispusesse a vê-las. Os olhos da cultura, digamos assim. Ora, o poder dos seres míticos seria o de subjugar os seres racionais, o poder dos seres divinos deveria suplantar o poder humano. Seria lógico que Ulisses se submetesse a elas. Mas os olhos de Ulisses eram olhos distraídos, estavam atentos demais às estratégias para vencer as sereias e, mesmo assim, eram olhos (e ouvidos, não esqueçamos) que queriam “curtir”. Aqueles olhos e aqueles ouvidos precisavam ser capturados pelo canto e pela imagem das sereias, do contrário seria o fim das sereias. Mas Ulisses não podia dar o braço a torcer e dizer que encontrou com o seu silêncio.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Por sorte, tudo acabou bem. Ulisses fingiu que ouvia e foi embora. E alguma coisa ele viu. As bocas perplexas. As sereias, sem entender como era possível que alguém não se desse conta do que acontecia naquele momento, continuaram existindo apesar de Ulisses quase as ter destruído com sua boçalidade.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Kafka termina o conto sem dar uma de Ulisses, ou seja, combatendo a tentação de prepotência que caracteriza o protagonista homérico, afirmando que talvez Ulisses tenha percebido tudo isso e tenha escapado das sereias, do seu poder terrível e destrutivo, o poder da sedução (mas não só, o poder do misterioso que é viver), justamente controlando esse jogo de aparências, fingindo que tinha entendido tudo. Ulisses era um espertinho, as sereias sabiam que não, mas Kafka, que era um homem decente, apenas nos põe a desconfiar e deixa tudo no tom do “quem vai saber?”.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Há um momento do texto em que se pode reconhecer o poder da prepotência de Ulisses que quase destruiu as sereias: “Contra o sentimento de tê-las vencido com as próprias forças e contra a altivez daí resultante – que tudo arrasta consigo – não há na terra o que resista.”</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Essa força, a da crença de que se venceu as sereias, não tem comparação. Ela destrói tudo. Mas que poder de destruição é esse que seria capaz de eliminar logo as sereias se elas estivesses desprotegidas? Lembremos que as sereias estavam protegidas por serem inconscientes e permanecerem na eternidade, apenas que ficaram meio perplexas com o jogo humano…</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A condição humana sob o signo do capitalismo tecnológico nos tornou cada vez mais parecidos com Ulisses, o boçal. Ulisses que Adorno e Horkheimer chamaram de “protótipo do indivíduo burguês” não é mais do que o turista que usa câmera de fotografar e filmar quando teria a chance de entregar-se à viagem; é o pai que filma o parto enquanto a criança se ocupa em nascer e a mãe torna-se um objeto decorativo no filme bizarro; é, por fim, o dono do celular último-tipo que deixa de conversar com os filhos, o amigo, a mulher, porque há coisa muito mais interessante para ver no mundo virtual além da mesa do restaurante…</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Lembro que dizíamos: aponta-se a estrela e ele olha para o dedo…</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Eis Ulisses, olhando para o dedo com o qual tecla o celular enquanto as sereias resolvem dormir…</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O conto de Kafka nos aponta para a prepotência da inteligência de Ulisses que, na época só tinha em mãos, corda e cera. Hoje, na era tecnológica, com os aparelhos impressionantes que temos, somos todos Ulisses em estado avançado de putrefação espiritual. Perdemos de ouvir o canto das sereias porque nossos olhos distraídos são de vidro, plasma, LCD, LED, ou outro material que empolga os tontos no contexto da ideologia da alta resolução. Evolução direta da cera e da cordinha que amarrava Ulisses ao mastro fazendo ele se sentir inteligente.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Viver, mais uma vez, deve ser algo parecido com “resistir” a essas bugigangas. Resistir certamente nos fará ouvir o silêncio das sereias.</div>
Pró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-205942312916252074.post-15561336030598735262015-02-02T12:37:00.002-08:002015-02-02T12:37:31.800-08:00Trinta e quantos?<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjaNx2ZobWnrjKsw1tjrbOO6xNEFJ8ScKWHi0Ys1Utxgfh5-T-7eiQKAYnlYblFINNzmFDxGk-Myx7N8YH4sqJFFvZtimHRZmxJxoDO-VjIrPoCe8YZMgFBiH7PUhOEmkD_qQxxuA57ghqF/s1600/1505007_843148605750950_8919851561318830162_n.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjaNx2ZobWnrjKsw1tjrbOO6xNEFJ8ScKWHi0Ys1Utxgfh5-T-7eiQKAYnlYblFINNzmFDxGk-Myx7N8YH4sqJFFvZtimHRZmxJxoDO-VjIrPoCe8YZMgFBiH7PUhOEmkD_qQxxuA57ghqF/s1600/1505007_843148605750950_8919851561318830162_n.jpg" height="400" width="293" /></a></div>
<div style="text-align: center;">
<b><span style="font-size: x-small;">Van Gogh - Cabeça de um homem (possivelmente Theo Van Gogh)</span></b></div>
<div style="text-align: center;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Por Antonio Prata</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Da Ilustrada</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Outro dia, numa mesa de bar, hesitante e assustado, me dei conta de que eu não sabia a minha idade. Trinta e seis parecia pouco, 38 parecia muito e 37, sei lá por que, me soava meio estranho. Que era alguma coisa por aí, eu tinha certeza. Trinta e cinco eu tive já faz muito, muito tempo, mas não tanto, tanto tempo para que eu já pudesse estar com 40; não, se eu fizesse 40, eu iria perceber, ou, no mínimo, iria ouvir algum comentário dos mais próximos. Céus, como pode, a esta altura do campeonato -qual altura, exatamente?- a pessoa ignorar quantos anos tem?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Quando você é criança, a idade é um negócio fundamental. É o dado mais importante depois do seu nome. Você aprende a mostrar nos dedos e passa uma década dizendo quatro, vou fazer cinco, cinco, vou fazer seis, seis, vou fazer sete e assim por diante. Lembro que, na época, eu achava de uma obviedade tacanha esse vou fazer, mas hoje entendo: o desejo de crescer é uma parte fundamental do software com o qual viemos ao mundo. Seis, vou fazer sete é menos uma constatação óbvia do que uma saudável aspiração.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Na adolescência, a idade continua sendo importante. Afinal, a diferença entre 14 e 16 é, geralmente, a diferença entre Mario Bros e o sexo. Pense no Mario Bros, pense no sexo, e fica evidente que há certas coisas que só dois aniversários fazem por você.</div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Dos 20 aos 30, avança-se lentamente, com sentimentos contraditórios. A escola foi há séculos, mas ser adulto ainda é estranho. Pelo menos, adulto como aqueles anciãos de 30 que usam gírias de pai, dançam de um jeito engraçado e parecem ter aprendido a se vestir em algum sitcom da Warner. A resposta sincera a quantos anos você tem, nessa fase, seria: 26, queria fazer 25, 25, queria fazer 24, até chegar a 20 -acho que ninguém, a não ser dopado por doses cavalares de nostalgia e amnésia, gostaria de ir além, ou melhor, aquém, e voltar à adolescência.</div>
<br />
<br />
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Trinta anos é uma idade marcante. Agora é inegável que você ficou adulto, e se o seu quarto ainda guarda algum vestígio da escola (uma coleção de latinhas? Um cone de trânsito? Uma bandeira da Jamaica?) é o caso de refletir seriamente sobre a sua autoimagem. Trinta e um, 32, você vai anotando, sem perder a conta. Mas aí você faz 35 e entra numa zona cinzenta (ou grisalha?) em que idade não significa mais muita coisa. A impressão que eu tenho, a esta altura do campeonato -qual altura, exatamente?-, é que todo mundo tem a minha idade. Meus amigos de 60 e poucos, meus amigos de 20 e muitos. Trinta e dois? Quarenta e oito? Não sendo púbere nem gagá, tão todos no mesmo barco, uns com mais dor nas costas, outros com os dentes mais brancos, mas no mesmo barco, trabalhando, casando, separando e resmungando no Facebook. Deve ser por isso que, sem perceber, parei de contar.</div>
<br />
<br />
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Trinta e sete, Antonio! Você tem 37!, interveio minha mulher, lá no bar, meio brava com o meu lapso. Ainda fiz as contas no celular, pra ter certeza. Era isso mesmo. Trinta e sete, vou fazer 38, se Deus quiser e não morrermos todos sem água e sem luz até agosto de 2015.</div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
(É em 2015 que a gente tá, né?)<br /><br /></div>
Pró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-205942312916252074.post-58581531266406735772014-12-22T12:32:00.002-08:002014-12-22T12:36:09.546-08:00O espírito de Natal em um conto inédito de China Miéville <div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEixvM4itkxMqmhui68radQ8fRcgKI-i5COOPjcU3rTjfq4l4aIOK0jLa-Snh7DxwNDeIh28JS4VB7Zrzle6koUCZso3Qq1pNZho8uhp7ZUjrMtAV3OVbqEUB03WTMPNZgfoRKG_5GP7PFzv/s1600/14352412.jpeg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEixvM4itkxMqmhui68radQ8fRcgKI-i5COOPjcU3rTjfq4l4aIOK0jLa-Snh7DxwNDeIh28JS4VB7Zrzle6koUCZso3Qq1pNZho8uhp7ZUjrMtAV3OVbqEUB03WTMPNZgfoRKG_5GP7PFzv/s1600/14352412.jpeg" height="400" width="330" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>China Miéville </b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Tradução: Fábio Fernandes </b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Ilustração: Odyr</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Da Ilustríssima</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>SOBRE O TEXTO</b> Num futuro indeterminado, tudo o que diz respeito ao Natal foi transformado em marcas registradas: os festejos só podem ocorrer sob licença. Neste texto, o escritor britânico China Miéville visita um tópico dos contos dedicados a essa temporada -o roubo do espírito natalino- e o relê em chave política.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
*</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Podem me chamar de infantiloide, mas eu adoro toda essa bobajada -a neve, as árvores, os enfeites, o peru. Adoro presentes. Adoro canções natalinas e músicas bregas. Eu simplesmente adoro o Natal.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Foi por isso que fiquei tão empolgado. E não só por mim mas por Annie. Aylsa, sua mãe, disse que não entendia para que tanto reboliço e por que eu era sentimental, mas eu sabia que Annie mal podia esperar. Ela podia ter 14 anos, mas, em se tratando disso, eu tinha certeza de que ela ainda era uma garotinha, sonhando com meias na chaminé. Sempre que é a minha vez de ficar com Annie -eu e Aylsa temos alternado desde o divórcio- dou o melhor de mim no dia 25.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Confesso que Aylsa fez com que eu me sentisse mal. Fiquei com muito medo de Annie se decepcionar. Então nem dá pra dizer como fiquei maravilhado ao descobrir que pela primeira vez na vida eu ia conseguir fazer uma comemoração adequada.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Não me entendam mal. Eu não tenho ações da NatividadeCo, e nem condições de pagar uma licença de usuário para um dia, então não poderia fazer uma festa legalizada. Por algum tempo pensei em comprar de um dos concorrentes mais baratos tipo a XmasTym, ou um derivado de uma não especialista, como a Coca-Crissmas, mas a ideia de fazer um Natal de pobre era deprimente demais. Eu não poderia usar muitas das coisas tradicionais e, se você não pode ter tudo, qual é o sentido? (A XmasTym tinha os direitos de Egg Nog. Mas Egg Nog é nojento.) Aquelas outras firmas vivem tentando criar alternativas próprias para clássicos privatizados, como renas e bonecos de neve, mas nunca decolam. Jamais esquecerei o fracasso que foi a reação do público à Lagartixa Natalina da JingleMas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Não: assim como a maioria das pessoas, eu ia ter um pequeno Evento Invernal, só Annie e eu. Desde que eu tenha o cuidado de ficar longe de produtos licenciados, tudo vai dar certo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Com as decorações feitas de hera você ainda pode se safar; visgo é proibido, mas eu tinha guardado um monte de tomates-cereja, que estava planejando espetar em cactos. Não ia arriscar guirlandas, mas eu tinha uns dois cintos coloridos que ia pendurar na minha aspidistra. Você sabe como é esse tipo de coisa. Os inspetores não são tão maus: às vezes eles fazem vista grossa para um badulaque ou outro (o que é muito bom, porque as multas para comemorações de Natal sem licença são astronômicas).</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Eu estava me preparando assim, mas aí aconteceu a coisa mais extraordinária. Ganhei na loteria!</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Quer dizer, não ganhei-ganhei. Mas fiquei entre os primeiros, e foi um premiozinho bacana. Um convite para uma festa especial, licenciada, de Natal, no centro de Londres, organizada pela própria NatividadeCo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Quando li a carta, tremi dos pés à cabeça. Era a NatividadeCo, então a coisa seria pra valer. Ia ter Papai Noel, Rodolfo, Visgo, Bolos, e uma Árvore de Natal com presentes embaixo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Esse último item era algo com que eu não me conformava. Era uma coisa tão triste colocar meus presentes embrulhados em papel-jornal ao lado da aspidistra, mas desde que a NatividadeCo comprou os direitos do papel colorido e da colocação de presentes embaixo de árvores, os inspetores haviam caído com todo o rigor em quem cometesse Presenteamento Subarbóreo Grave. Eu não parava de pensar que Annie ia poder estender a mão e apanhar seu presente sob galhos de pinheiro.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Talvez eu não devesse ter contado pra Annie, apenas feito a surpresa a ela no dia, mas eu estava empolgado demais. E, pra ser honesto, em parte eu contei a ela porque eu queria deixar Aylsa com inveja. Ela era muito metida a besta, sempre dizendo que não sentia saudade do Natal e coisa e tal.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Pense só -eu disse- vamos poder cantar canções de Natal legalmente! Ah, desculpe, você odeia canções de Natal, não é?- Eu fui muito escroto.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Annie ficou quase doente de empolgação. Ela mudou seu nick on-line pra ehchegadaaestacao, e até onde eu pude acompanhar ela passava o tempo todo se gabando para seus pobres amigos, mortos de inveja. Dei uma espiadinha na tela quando fui levar chá pra ela: as janelas de chat estavam cheias de nomes como tinkerbell12 e punhadodeflores, e tudo o que eu podia ver eram exclamações como naaaaummm??!!nataaaalll??!! taaauuum legaaall!!!!! antes que ela bloqueasse a tela exigindo privacidade.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Tenha piedade -eu disse a ela.- Não esfregue isso na cara das suas amigas -mas ela simplesmente riu e me disse que estavam combinando de se encontrar no dia de qualquer maneira, e que eu não sabia do que estava falando.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Quando Annie acordou no dia 25, havia uma meia esperando por ela na ponta da sua cama, pela primeira vez em sua vida, e ela veio tomar café carregando a meia e sorrindo de orelha a orelha. Eu tive um prazer enorme em sacudir meu passe da NatividadeCo e dizer, perfeitamente dentro da lei, Feliz Natal, meu amor. Fiquei feliz porque o ® era mudo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Eu havia mandado o presente dela para a NatividadeCo, conforme as instruções. Ele estaria esperando sob a árvore. Era o modelo mais avançado de console. Mais do que eu podia pagar, mas sabia que ela ia adorar. Ela é ótima em videogames.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Saímos cedo. Havia um número razoável de pessoas nas ruas, todas fazendo aquilo que fazemos no dia 25, quando, sem dizer nada ilegal, você ergue as sobrancelhas e sorri um cumprimento natalino.</div>
<div style="text-align: justify;">
Tecnicamente era um dia de semana regular para os horários dos ônibus, mas, naturalmente, metade dos motoristas estava de licença por motivo de doença.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Não vamos ficar esperando -disse Annie.- Temos um montão de tempo. Por que é que a gente não anda?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- O que você comprou pra mim? -eu não parava de perguntar pra ela. -Qual é o meu presente? -eu fazia de conta que ia espiar dentro da bolsa dela, mas ela balançava o dedinho.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Você vai ver. Estou muito satisfeita com meu presente, pai. Acho que é algo que vai significar muito pra você.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Não era para termos demorado tanto, mas, por algum motivo, fomos devagar, indo no nosso tempo, conversando, e de repente percebi que íamos chegar atrasados. Isso foi um choque. Comecei a correr, mas Annie ficou mal-humorada e reclamou. Me segurei para não dizer de quem tinha sido a ideia de ir a pé até lá. Corremos um bocado até o centro de Londres.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Vamos -Annie não parava de falar. - Estamos chegando?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Havia um número surpreendente de pessoas em Oxford Street. Uma multidão e tanto, todos com aquela expressão secreta de felicidade. Eu também não podia evitar sorrir. Subitamente Annie já tinha disparado lá pra frente, voltando depois pra me puxar. Agora ela queria acelerar. E eu tinha que pedir desculpas a cada vez que esbarrava nas pessoas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A maioria era uma garotada de uns vinte anos, casais e grupinhos. Eles abriram caminho, indulgentes, enquanto Annie me arrastava, corria na frente, voltava a me arrastar.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Era realmente um número impressionante de pessoas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Mais adiante se ouvia música e alguns gritos. Fiquei tenso, mas não pareciam gritos zangados.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
-Annie! -gritei mesmo assim.- Venha cá, meu amor! -eu a vi pulando por entre a massa.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
E era realmente uma massa. Aquele som era de um apito? De onde tinha vindo todo mundo? Eu estava sendo empurrado, puxado como se toda aquela gente fosse uma maré. Vislumbrei um garotão e, com um susto, percebi alarmado que ele estava usando um macacão grande com uma rena de nariz vermelho. Só de olhar saquei que ele não tinha licença.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
-Annie, venha cá -eu a chamava, mas o som da minha voz foi sufocado. Uma moça perto de mim elevou a voz, cantando uma nota, muito alta.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Baaaaa...</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O rapaz com quem ela estava começou também, e depois o amigo dele, e depois um bando de gente ao lado deles, e em poucos segundos estava todo mundo fazendo a mesma coisa, uma mistura de vozes bonitas e horrorosas, se combinando naquele gritinho alto insuportável.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Baaaaa... -e aí, com um timing impecável, todas as centenas de pessoas meio que olharam umas nos olhos das outras, e a canção continuou.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- ....te o sino pequenino, sino de Belém...</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Vocês estão loucos? -eu gritei, mas ninguém me ouvia por sobre aquela maldita canção ilegal. Ah, meu Deus. Eu sabia o que estava acontecendo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Estávamos cercados por natalinos radicais.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Eu zanzava de um lado para o outro, gritando por Annie, correndo atrás dela, procurando a polícia. Não havia como as câmeras de rua não captarem aquilo. Eles mandariam o Esquadrão Natividade.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Vi Annie no meio da multidão -diabos, tinha mais gente chegando!- e corri em sua direção. Ela me chamava, olhava ansiosa ao redor, e eu batia nas pessoas para que saíssem da frente, mas, quando me aproximei, vi que ela estava olhando para alguém ao lado dela.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Pai! -ela gritou. Vi os olhos dela se arregalarem ao me reconhecer, e então -será que eu tinha visto uma mão agarrá-la e puxá-la para fora dali?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Annie! -eu gritei quando cheguei aonde ela havia estado. Mas ela não estava mais lá.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Eu estava entrando em pânico: ela é uma garota inteligente e estávamos em plena luz do dia, mas de quem era aquela mão, diabos? Liguei para o telefone dela.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Pai -ela respondeu. O sinal estava horrível naquela multidão. Eu gritava, perguntando onde ela estava. Ela soava tensa, mas não assustada. -... OK... eu vou estar... ver... um amigo... na festa.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- O quê? -eu estava gritando. - O quê?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Na festa -ela disse, e eu perdi o sinal.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Certo. A festa. Era para lá que ela estava indo. Eu me controlei. Abri caminho empurrando a multidão.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A coisa estava ficando mais bolchevique. Estava virando uma baderna natalina.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Oxford Street estava congestionada, eu estava no meio do que, de repente, havia se tornado milhares de manifestantes. Foram séculos abrindo caminho, ansioso, através da manifestação. O que havia parecido uma multidão anônima subitamente floresceu em variedade e cor. Todo mundo estava marchando. Eu passava por diferentes contingentes de manifestantes.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
De onde diabos haviam saído todas aquelas bandeiras? Slogans flutuavam sobre a minha cabeça como destroços de um navio. PELA PAZ, SOCIALISMO E NATAL; TIREM AS MÃOS DA NOSSA TEMPORADA DE FESTAS; PRIVATIZEM ISTO. Um mesmo cartaz estava em toda parte. Era muito simples e clean: a letra R em um círculo vermelho, atravessada por uma linha diagonal.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Ela vai ficar OK, pensei, angustiado. Ela disse isso. Eu olhava ao meu redor enquanto avançava na direção da festa, distante apenas umas poucas ruas agora. Eu podia ver a manifestação.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Aquele pessoal era louco! Não que eles não tivessem boa intenção, mas aquilo não era jeito de conseguir as coisas. Tudo o que eles iam conseguir era causar encrenca para todo mundo. A polícia ia chegar ali a qualquer momento.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Mesmo assim, havia que admitir que sua criatividade era admirável. Com todas as roupas e as cores, aquilo parecia incrível. Não faço ideia de como eles tinham conseguido contrabandear aquele negócio pelas ruas, de como haviam organizado aquilo. Deve ter sido on-line, o que teria implicado um uma encriptação bastante sofisticada pra tapear o copware. Cada trecho da marcha parecia cantar algo diferente, ou cantar canções que eu não ouvia havia anos. Eu atravessava um país das maravilhas invernal.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Passei por um contingente de cristãos, todos carregando cruzes, cantando hinos natalinos. Bem à frente deles havia um grupo de gente malvestida vendendo exemplares de um jornal de esquerda e carregando cartazes com uma foto de Marx. Eles haviam sobreposto um chapéu de Papai Noel ao retrato dele. Eu sonho com um Natal vermelho, eles cantavam, e mal.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Agora nós estávamos ao lado da Selfridges, e um nó de gente havia parado ao lado das vitrines abarrotadas com a mistura costumeira de perfumes e sapatos. Os manifestantes olhavam uns para os outros, e de novo para a vitrine. Numa rua lateral, alguns passantes observavam o extraordinário espetáculo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Levei um susto ao ver compradores normais: para mim era inconcebível que houvesse alguém ali além dos manifestantes que marchavam nas ruas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Eu sabia o que os observadores da Selfridges estavam pensando: eles se lembravam (ou lembravam de terem lhes falado -alguns deles pareciam jovens demais para lembrar da vida antes do Ato de Natal) de uma antiga tradição.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Se não vão nos dar nossas vitrines de Natal -uma mulher rugiu- vamos ter que criá-las. -E, com isso, eles pegaram marretas. Meu Deus. Eles quebraram a vitrine.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Não! -ouvi um homem vestindo um sofisticado paletó de lã gritar com eles. Um contingente dos manifestantes, que parecia horrorizado, abaixou as bandeiras, que diziam AMIGOS TRABALHISTAS DO NATAL. - Todos queremos a mesma coisa -gritou o homem- mas não podemos apoiar a violência!</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Mas ninguém lhe dava a menor bola. Eu esperei que as pessoas começassem a roubar os artigos, mas elas simplesmente os empurraram para longe do caminho, junto com o vidro quebrado. Colocavam coisas nas vitrines. De sacolas e bolsos saíam pequenas manjedouras, Papais Noéis de papier mâché, Presentes lindamente embrulhados, Azevinho e Visgo, que os manifestantes espalhavam, compondo vitrines toscas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Eu segui em frente. Um homem se postou no meu caminho. Ele fazia parte de um grupo de sujeitos bem-vestidos que estavam nas bordas da multidão. Com um risinho de deboche, ele me entregou um panfleto. INSTITUTO DE IDEIAS MARXISTAS VIVAS. Por Que Não Estamos Marchando.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Vemos com desdém as tentativas patéticas da velha Esquerda de reviver esta cerimônia Cristã. A ideia de que o governo 'roubou' 'nosso' Natal é tão somente um aspecto do domínio dessa Cultura do Medo que rejeitamos. Chegou a hora de uma reavaliação além da esquerda e da direita, e de forças dinâmicas revigorarem a sociedade. No mês passado, nós do IIMV organizamos uma conferência no ICA sobre por que greves são chatas e por que a caça à raposa é o novo pretinho básico...</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O texto me pareceu totalmente sem pé nem cabeça. Joguei fora.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Foi quando se ouviu o trovejar de um helicóptero de combate. Fodeu, pensei. Eles chegaram.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Atenção -disse a voz amplificada vinda do céu.- Vocês quebraram a seção 4 do Código de Natal. Dispersem imediatamente ou serão presos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Para meu espanto a reação foi uma risada rouca. Um cântico começou. No começo não consegui entender as palavras, mas logo não havia mais como confundi-las.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- De quem é o Natal? É nosso! De quem é o Natal? É nosso!</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Não pegou muito bem.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Passei por um grupo que reconheci do noticiário, natalinas feministas radicais vestidas todas de branco, usando cenouras no nariz: as sNOwMEN. Um sujeito baixinho passou correndo por mim, olhando ao redor e resmungando: Alto demais, alto demais. Começou a gritar: Qualquer um que meça até 1,55 m, venha participar do quebra-quebra com os Pequenos Ajudantes de Papai Noel!. Outro baixinho começou a discutir furiosamente com ele. Ouvi as palavras piada e condescendente.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
As pessoas estavam comendo pudim de Natal, fatias de peru. Elas se obrigavam até mesmo a engolir couve-de-bruxelas, só por questão de princípio. Alguém me deu um pedaço de bolo. Bendito seja, gritou um pagão radical no meu ouvido, e me deu um panfleto exigindo que assim que tivéssemos recuperado de volta a estação nós a rebatizássemos de Solstividade. Foi expulso a pontapés por um grupo de bailarinos e bailarinas musculosos vestidos de fadas e quebra-nozes.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Eu estava me aproximando do lugar onde a festa deveria acontecer, mas agora havia ainda mais gente nas ruas. O lugar ia ser cercado. Como é que iríamos entrar?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Figuras se moviam na multidão. Que merda, pensei, a polícia. Mas não era. Era um bando agressivo, com pinta de zangado, quebrando para-brisas dos carros pelo caminho. Estavam todos vestidos de Papai Noel.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Caralho -alguém resmungou. - São os Red & White blocs.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Era óbvio que os R&W estava ali pra criar baderna. Todo o restante da multidão tentou se afastar deles. Vão embora, porra! ouvi alguém gritar, mas não lhe deram atenção.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Agora dava para ver a polícia se aglomerando nas ruas laterais. Os Red & White blocs a atraíam para fora, sacudindo garrafas, gritando Podem vir! como fãs de Futebol® emputecidos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Eu estava recuando. Me virei, e lá estava, o local da festa.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Hamleys, a loja de brinquedos. Os guardas armados que normalmente a protegiam deviam ter fugido muito antes, ao darem de cara com esse caos. Levantei a cabeça e vi rostos horrorizados nas janelas.</div>
<div style="text-align: justify;">
Eu devia estar lá em cima, pensei. Com vocês. Eles eram os convidados da festa. Crianças e seus pais, cercados pela manifestação, vendo a chegada da polícia.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
E, ah, lá estava Annie, gritando para mim, parada sob a marquise da Hamleys. Soltei um grito de alívio e corri até ela.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- O que está acontecendo? -ela gritou. Parecia apavorada. O Esquadrão Natividade estava se aproximando dos provocadores dos Red & White blocs, batendo com seus cassetetes em escudos enfeitados com guirlandas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Puta merda -sussurrei. Envolvi Annie com meus braços para protegê-la. - Vai dar problema -eu falei. -Se prepare pra correr.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Mas nós ficamos ali, tensos e, de repente, uma coisa surpreendente aconteceu. Eu pisquei e, do nada, apareceu um rapaz vestindo um manto branco comprido. Antes que qualquer um pudesse detê-lo, ele se posicionou entre as fileiras dos Red & White blocs e a polícia.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Ele é louco! -alguém gritou, mas todas as centenas e centenas de pessoas foram se calando.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O homem estava cantando.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A polícia caiu em cima dele, os R&W fizeram que iam empurrá-lo pra longe, mas sua voz se elevou, e ambos os lados hesitaram. Eu nunca tinha visto alguém tão lindo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Ele cantou uma única nota, de uma pureza que não era deste mundo. Ele a fez durar, por longos segundos, e depois continuou:</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Ai, vinde todos à porfia/ Cantar um hino de louvor.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Ele fez uma pausa, até que a tensão entre nós chegou ao limite.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Hino de paz e alegria/ Que os anjos cantam ao Senhor.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Os Red & White blocs estavam quietos. Todo mundo estava quieto.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Gló-ó-ó-ó-ó-ria in Excelsis Deo</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Agora os policiais estava parando. Eles abaixaram seus cassetetes. Um a um, eles puseram seus escudos de lado.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Naquela noite venturosa/ Em que nasceu o Salvador...</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Mais figuras de branco surgiam. Eles caminharam calmamente para se juntar ao seu amigo. Assustei-me ao notar que estava tapando meus próprios olhos. Havia uma autoridade implacável nessas figuras incríveis que haviam aparecido do nada, aqueles rapazes altos, belos, e tão jovens. Seus mantos eram de um branco inconcebível. Eu não conseguia respirar.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Agora todos eles cantavam. Gló-ó-ó-ó-ó-ó-ria in Excelsis Deo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Um a um, os policiais tiraram seus capacetes e se puseram a ouvir. Eu podia escutar os gritos frenéticos de seus superiores saindo dos auriculares que eles removiam.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Naquela noite venturosa/ Em que nasceu o Salvador... Os cantores fizeram uma pausa, até eu ficar desesperado para que eles terminassem a melodia: Vozes de anjos harmoniosas/ Lançam ao céu este clamor.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O grupo de policiais sorria e chorava em meio a uma montanha de cassetetes e proteções corporais descartadas. O primeiro cantor levantou a mão. Ele olhou para todo o armamento jogado ali. Declamou para os Red & White blocs.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Vocês não deveriam ter tentado lutar -ele disse, e eles pareceram envergonhados. Ele aguardou.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Vocês teriam sido massacrados. Ao passo que agora -ele continuou- esses idiotas se desarmaram. Agora é a hora de lutar... -Ele se girou e, ao mesmo tempo, ele e seus colegas cantores se jogaram em cima da polícia, os mantos adejando.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Os policiais indefesos ficaram pasmos, deram meia volta e saíram correndo; a multidão rugiu e começou a segui-los.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Nós somos o Partido Cantor Radical dos Homens Gays! -o cantor principal gritou em seu registro de tenor exótico. - Orgulhosos de lutar pelo Natal do Povo!</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Ele e seus camaradas começaram a entoar: - Estamos aqui! Somos o coral! Viemos pra ficar!</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- É um milagre de Natal! -disse Annie. Eu simplesmente a abracei até ela resmungar - Tá bom, papai, calma.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Atrás de mim a multidão gritava, tomando as ruas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Esse é o problema com os Red & White blocs -resmungou Annie. - Maldita estratégia de tensão do caralho. Bando de aventureiros anarquistas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- É -disse um garoto do lado dela. - Seja como for, metade deles são agentes da polícia. É a regra número um, não é? Aquele que quer mais violência é o policial.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Eu estava boquiaberto, minha cabeça indo de um para o outro, como um imbecil assistindo a uma partida de tênis.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- O quê? -eu disse finalmente.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Qual é, pai -disse Annie. Ela beijou meu rosto.- Você nunca teria me deixado vir de outra maneira. Eu tinha que fazer você andar até aqui ou a gente teria chegado cedo demais. E ficado preso igual a eles. - Ela apontou para os ganhadores do prêmio que ainda estava encarando nos andares superiores da Hamley.- Então eu tive que sair correndo ou você nunca teria me deixado entrar. Vem.- Ela me pegou pela mão. -Agora que a gente passou pelas linhas da polícia, podemos retomar a marcha passando pela Downing Street.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Ora, então é a oportunidade perfeita para sairmos daqui...</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Pai -ela disse. Olhou para mim com dureza.- Eu não pude acreditar quando você ganhou o prêmio. Nunca pensei que teria uma chance de vir para cá hoje.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Alguém te agarrou -falei.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Foi Marwan -ela indicou o rapaz que havia falado.- Pai, este é Marwan. Marwan, este é meu pai.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Marwan sorriu e apertou minha mão educadamente, mudando o cartaz de mão. MUÇULMANOS PELO NATAL, dizia. Ele me viu lendo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Isso não representa grande coisa para mim -ele disse- mas todos nós nos lembramos de como esse pessoal veio em nossa ajuda quando a Umma plc tentou privatizar o Eid. Sabe, isso foi muito importante. De qualquer maneira... -ele desviou o olhar tímido.- Eu sei que é importante para Annie -ela olhou para ele de lado. - Ah-pensei.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Marwan é punhadodeflores, pai -disse ela.- Na internet.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Escuta, eu tenho que dizer que estou muito irritado com isso tudo -falei. Estávamos chegando perto de Downing Street. Marwan havia se despedido na Trafalgar Square, então estávamos sós de novo, só nós e mais 10 mil pessoas. -Eu te comprei... eu perdi um monte de... tem um presentão naquela festa...</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Sendo franca, pai, eu não preciso mesmo de um console novo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Como você sabia...? -perguntei, mas ela já continuava sua fala.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- O que eu tenho está muito bom. De qualquer maneira, eu uso mais mesmo pra jogos de estratégia, e eles não consomem tanta energia. Além disso, tenho todos os pinkopatches na minha máquina. Seria um saco transferi-los, e baixá-los de novo é arriscado demais.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Que patches são esses?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Coisas tipo o Red3.6. Ele converte uma pá de jogos. Transforma SimuCityState em RedOctober. Coisas desse tipo. Eu já cheguei no nível 4. O chefe do fim do nível é um czar. Assim que eu conseguir descobrir como passar por ele eu vou chegar ao Poder Duplo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Desisti até de tentar entender.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Na entrada da residência do primeiro-ministro havia uma enorme Árvore de Natal® branca e prata. Todo mundo começou a vaiar quando nos aproximamos. O Exército estava protegendo o local, então as pessoas fizeram questão de garantir que as vaias eram bem-humoradas. Alguém jogou um pudim de Natal, mas o povo o tirou dali rapidinho.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Isso aí não é o Natal! -nós todos gritamos ao passar. - Isto aqui é que é o Natal!</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
À medida que os céus iam escurecendo, a multidão foi começando a dispersar um pouco, antes que a polícia pudesse se reagrupar. Passamos por um contingente em que todos usavam bandanas vermelhas e nos somamos à cantoria deles:</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Já faz tempo que eu pedi/ Mas o meu Papai Noel não vem/ Com certeza já morreu/ E a Internacional/ É tudo que a gente tem.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Mesmo assim -eu disse- estou um pouco chateado por você não ter conseguido ver a festa.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Pai -disse Annie, e me sacudiu.- Este foi o melhor Natal de todos. De todos. OK? E foi tão maravilhoso passar ele com você.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Ela me olhou de lado.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Já adivinhou? -ela perguntou.- Qual é o seu presente?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Ela estava me encarando, bem séria, bem intensamente. Fiquei bastante emocionado.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Pensei em tudo o que havia acontecido naquele dia e nas minhas reações. Tudo pelo qual eu havia passado e visto e integrado. Percebi como eu me sentia diferente agora do que naquela manhã. Era uma revelação surpreendente.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- Sim... -hesitei.- Sim, acho que sim. Obrigado, meu amor.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
- O quê? -ela disse. - Você adivinhou? Merda.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Ela segurava um pacotinho embrulhado. Era uma gravata.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>CHINA MIÉVILLE, 42, escritor britânico, autor do romance A Cidade e a Cidade, que acaba de sair no Brasil pela Boitempo.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i><br /></i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>FÁBIO FERNANDES, 48, é tradutor, responsável por trazer ao português livros como Laranja Mecânica (Aleph).</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i><br /></i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>ODYR, 47, quadrinista, ilustrou Guadalupe (Quadrinhos na Cia.), de Angélica Freitas.</i></div>
Pró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-205942312916252074.post-76780399712097206532014-12-19T10:55:00.000-08:002014-12-19T10:55:36.326-08:00O cineasta japonês Hayao Miyazaki é o grande mago do cinema moderno<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh3M1CcO_HTOzZBoPfXli7IVr4jXyvR1TZMjWkW78TodI-6PGVbPeMwzi_bWCZJIXfJW74_zN_K1jGXXOdXQWaCvm6j9faty4YHr8iVFeXkS-OFzGy5HHDZ1qRByskqTsw1zz8XsTRu9V5A/s1600/14352242.jpeg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh3M1CcO_HTOzZBoPfXli7IVr4jXyvR1TZMjWkW78TodI-6PGVbPeMwzi_bWCZJIXfJW74_zN_K1jGXXOdXQWaCvm6j9faty4YHr8iVFeXkS-OFzGy5HHDZ1qRByskqTsw1zz8XsTRu9V5A/s1600/14352242.jpeg" height="400" width="282" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Por Nigel Andrews</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Do Financial Times</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Tradução de Paulo Migliacci</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<i><br /></i></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>"É o destino da vida moderna que repetidamente percamos o contato com a natureza, o meio ambiente, o planeta. Mas tentamos repetidamente retomá-lo. É como um círculo. Nos corações e almas das crianças, quando elas nascem, a natureza já existe, com raízes fundas. Por isso, o que desejo fazer em meu trabalho é encontrar um caminho para suas almas" - Hayao Miyazaki</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Magia é uma palavra usada demais e uma mercadoria encontrada de menos. Como palavra, ela é repetida incansavelmente, quer como superlativo coloquial, quer como marca multitarefas de aprovação jornalística. Mas como mercadoria, ela é mais rara que dentes de dragão. Onde se pode encontrá-la, e em que forma? No trabalho de um prestidigitador? Talvez, mas verdadeira magia é mais que o simples truque de um ilusionista. Em um filme de fantasia e aventura de Hollywood? Nesse caso, ela muitas vezes terá algo de kitsch, artificial e exibicionista, por obra de mutações produzidas via computação gráfica.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Mas e quanto à magia relacionada à palavra mago vidente, visionário, encantador? E quanto à magia definida pelo dicionário Oxford como algo que influencia os acontecimentos cotidianos pelo uso de forças misteriosas ou sobrenaturais, ou que a Wikipedia, em um raro momento de exatidão na busca, define como tentativa de entender, experimentar e influenciar o mundo usando rituais, símbolos, ações, gestos e linguagem?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Se o grande mago do drama de ficção é Próspero, de Shakespeare, um mago que serve de agente a um artista mágico, o grande mago do cinema moderno é o japonês Hayao Miyazaki, com ou sem os personagens de animação que ele cria para executar seus encantos. Ele é o maior fantasista do reino do cinema porque seus filmes são mais que fantasias. Como A Tempestade, seus melhores filmes são fábulas que buscam sondar as profundezas da mortalidade e da moralidade. Ele remapeia, e até re-mitifica a experiência por meio do uso de rituais, símbolos, ações, gestos e linguagem para tomar de empréstimo a definição da Wikipedia.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Protegido contra intempéries, de alguma maneira, eu não havia assistido a nenhum dos filmes de Miyazaki antes de A Viagem de Chihiro, em 2001. Não demorei a perceber que aquele era o melhor filme de animação que já tinha visto. Continua sendo. É um conto de fadas que se passa entre deuses, monstros, jovens e tiranos ;em um parque de diversões aparentemente abandonado que se transforma em império de possibilidades oníricas, e trata de temas como a perda, o amor, o amadurecimento e a identidade.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O filme oferece algumas das maiores imagens já propiciadas pela narrativa de fantasia. Os pais que se transformam em porcos comilões o herói que toma a forma de dragão voador; o feroz monstro da lama; o trem que viaja na água. Continua a ser o único filme ao qual, usando a magia da matemática surreal só para aquela resenha, atribuí seis estrelas, em uma classificação cuja nota máxima era cinco.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Para Miyazaki, as mudanças propiciadas pela magia têm propósito moral e importância poética. Sua preocupação não é apenas com a mutabilidade das formas ou com os seres transfigurados, humanos ou animais, mas com vidas, aspirações, ideias e emoções que mudam de forma.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Todos, em seus filmes, podem ser outra pessoa, ou mesmo diversas outras pessoas, dentro de uma só história. Em O Castelo Animado (2004), Sophie, a heroína enfeitiçada, alterna entre a forma de jovem garota e de velha feiticeira. Howl, o bonito dono de castelo, também passa por rápidas metamorfoses, se tornando cachorro, espantalho e um avião de caça humano. Mesmo Calcifer, o fogo da lareira ;com seus olhos dançarinos e sua boca sarcástica; saltita, metaforicamente, para indexar mudanças de clima, emoção e anseios.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Quem um personagem é, a cada dado momento, depende de em que ponto da história, ou de sua evolução pessoal, o personagem se encontra. Na vida de um personagem ou história de Miyazaki, a catástrofe pode correr em companhia da esperança e da expectativa, o horror ao lado do humor, a realidade ao lado do sonho ou pesadelo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
E nem sempre é necessária uma transformação física. Miyazaki, como Hitchcock, tem o talento de encontrar o apocalíptico no cotidiano. E isso não pode ser demonstrado melhor do que pela sequência de abertura de A Viagem de Chihiro. Um carro que está percorrendo uma estradinha no campo se vê detido por uma grande muralha, como que um muro de arrimo ferroviário, e a única passagem é um túnel que conduz a lugar nenhum. É a singeleza surreal uma estrutura ordinária em um lugar extraordinário que parece fantasmagórica, até sinistra, nesse portal para um outro mundo. É a versão de Miyazaki para a toca do coelho de Alice no País das Maravilhas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Essa conexão com o real é o que energiza o reino irreal de Miyazaki. O pai dele era operário em uma fábrica de componentes para aviões, e seu trabalho raramente permite que esqueçamos o fato. Máquinas voadoras realistas, fantásticas, belas, ferozes, grotescas fazem parte de quase todas as suas histórias, e isso atinge o clímax em seu filme de despedida, Vidas ao Vento, de 2013. O filme, uma biografia de um projetista japonês de aviões de caça, também é uma biografia do patrimônio de Miyazaki. Beleza e terror, bem e mal, vivem tanto no passado do cineasta quanto no passado do Japão.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Mas que grande artista criou arte que vá além de si mesmo? Se a arte não estiver conectada ainda que de modo distante à vida de seu criador, aos seus sonhos, desejos, amores e ódios, ela não tem fonte de energia. A grandeza de um artista está no escopo desse além. Os temas e percepções de Miyazaki são miraculosamente dispersos, mas também afixados como que por um cabo subterrâneo à psique do cineasta.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<u>TRÊS OBSESSÕES</u></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Ele é fanático quanto ao meio ambiente e à adulteração ou salvação de nosso planeta. Longe dos estúdios, um de seus passatempos é ajudar sua comunidade a remover detritos dos rios. Desse Miyazaki vem a magistral ameaça cômica do Monstro do Lodo (de A Viagem de Chihiro), a onipresença fantasmagórica dos Homens Bolha feitos de óleo e sempre mudando de forma (em O Castelo Animado) e o clímax de Princesa Mononoke, no qual maldição e redenção chegam de modo espetacular a uma paisagem maculada pelas satânicas engrenagens da indústria.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A guerra é uma segunda paixão ou antagonismo apaixonado. Nausicaa - A Princesa do Vale dos Ventos (1984), uma mistura fantasiosa de ficção científica e folclore nascida dos mangás, e o primeiro grande sucesso internacional de Miyazaki, é um permanente armagedom. A guerra, também guerra aérea serve de ruído de fundo e de palheta pictórica de fundo a O Castelo Animado, como uma ferida no céu que não para de se reabrir dolorosamente. Em Vidas ao Vento, a guerra é um pacto faustiano que o Homem Inventor faz com o mal, e o preço que ele paga pela liberdade de sonhar.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A terceira obsessão: crianças e o processo de amadurecer. Se os jovens são a esperança do mundo, não podemos permitir que essa esperança dependa de inocência imaculada. As crianças nos filmes de Miyazaki são colocadas à prova, especialmente as meninas (e isso por um cineasta muitas vezes classificado como feminista).</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O verão para as duas irmãs de Meu Amigo Totoro (1988), privadas da presença da mãe que está internada no hospital (como aconteceu com Miyazaki, cuja mãe passou muito tempo internada com tuberculose espinhal nos anos 50), se torna uma representação repleta de fantasia sobre nascer, a infância e a aquisição da sabedoria. Elas fazem amizade com um gigantesco e carinhoso animal da floresta, Totoro, que serve como uma espécie de mãe substituta. Totoro oferece sustento (em uma cena, faz uma árvore crescer por mágica) e iniciação para a vida (as leva a voar por sobre os campos em um pião aéreo).</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
E quando se trata da obrigação materna de permitir a troca do ventre do crescimento pelo espaço do crescimento, Totoro compartilha o papel com seu amigo, o Ônibus Gato. O ônibus tem a forma de um gato vivo com janelas, olhos como faróis e patas como rodas e é uma das grandes criações cômicas e surreais de Miyazaki, como um refúgio uterino que tivesse crescido e pudesse percorrer o mundo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A Viagem de Chihiro também é em larga medida um desfile de pantomimas sobre o processo de amadurecer. Chihiro, a pequena heroína, está sendo levada pelos pais à sua nova escola. Quando não a encontra, a família tropeça em um reino fantasmático que oferece a Chihiro a verdadeira educação de que ela precisa uma educação para a vida, para a sabedoria e o sentimento.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Entre as coisas que ela aprende estão: nenhuma busca humana é realizada sem trabalho duro e adversidade; nenhuma figura de autoridade (nem mesmo os pais) merece confiança acrítica; sempre acredite no que vir, e não naquilo que lhe disserem; e se o amor disser que a acompanhará até os confins da terra, faça-o cumprir sua promessa.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Mas Miyazaki não passa o tempo todo dando lições de vida. Há ornamentos, glórias e piadas soltas espalhadas por todos os filmes, minúcias inconsequentes que revelam uma imaginação infatigável. Veja as minúsculas criaturas que não param de surgir, como um insano coral, em seus filmes. Em Princesa Mononoke, os pequenos fantasmas da floresta com seus olhos ocos e cabeças rotativas, em Meu Amigo Totoro e A Viagem de Chihiro as criaturas de fuligem, pequenas aranhas que correm, conspiram, e aprontam.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Ou veja o delírio de inventividade que resultou em O Castelo Animado. Parte tanque, parte fortaleza, parte fábrica, parte cortiço, parte gigantesco bule de chá, ele ronca e cambaleia pela paisagem com suas pernas parecidas com as de uma galinha, e cada uma de suas partes parece se sacudir e reajustar separadamente durante o movimento. O castelo apita, o castelo range, o castelo lança fumaça de suas chaminés.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
É um triunfo de insanidade organizada e poética, com um toque de mágica. O que talvez seja a melhor maneira, ou a única maneira, de resumir o cinema de Hayao Miyazaki.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<br />
<br />Pró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-205942312916252074.post-19070914887427109762014-12-15T11:42:00.000-08:002014-12-15T15:05:36.393-08:00David Hockney: "Quando trabalho me sinto com 30"<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjHEzktS2tn7BnlfsVW42naTZp8SQfayLKmadfx1OAwpfeOolPKvhU5nrO0FhJx_-He45UK6ChwC2kG8-GYekUdACJymkZFBNiyCm-TMjbe-Z6_Vc0bjg421pN9wutMGbrF6WNIYJRjA-P4/s1600/T03255_10.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjHEzktS2tn7BnlfsVW42naTZp8SQfayLKmadfx1OAwpfeOolPKvhU5nrO0FhJx_-He45UK6ChwC2kG8-GYekUdACJymkZFBNiyCm-TMjbe-Z6_Vc0bjg421pN9wutMGbrF6WNIYJRjA-P4/s1600/T03255_10.jpg" height="400" width="397" /></a></div>
<b><br /></b>
<b>Por Tim Lewis</b><br />
<b>Do Observer</b><br />
<b>Tradução de Clara Allain</b><br />
<b>Ilustração de Ana Elisa Egreja</b><br />
<br />
<br />
<div style="text-align: justify;">
<u>RESUMO</u> No ano passado David Hockney deixou Yorkshire, na Inglaterra, após acontecimentos traumáticos em sua vida pessoal na região, e voltou para sua casa em Hollywood Hills. O artista britânico, 77, fala de como a Califórnia o remoçou e responde a perguntas de leitores do Observer e de personalidades do mundo cultural.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
*</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
David Hockney quer contar uma piada. Um homem vai ao médico e diz que pretende viver pelo máximo possível de tempo. O que fazer? O médico pede que ele redija uma lista de seus vícios e então lhe diz: Muito bem, quero que você abandone o cigarro, deixe de beber, abra mão da alimentação gordurosa e desista do sexo. O homem fica chocado e fala em voz baixa: Ok. Desse jeito vou ter vida mais longa?. O médico responde: Não, mas será essa a sensação.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Como se estivesse ouvindo a piada pela primeira vez, Hockney, 77 anos, solta uma gargalhada que mais parece um uivo, terminando num urro rouco e num chiado de fumante. Estamos em duas poltronas respingadas de tinta no estúdio, que é um anexo à casa do artista em Hollywood Hills. Hockney passa a maior parte de seus dias aqui. O lugar tem tudo de que ele precisa, incluindo alguns galões de água mineral e um estoque de 2.000 cigarros Camel Wides, para a eventualidade de um terremoto atingir Los Angeles.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Ao chegar à casa, depois de subir por ruas tortuosas saindo de Sunset Boulevard, desviando de caminhões de lixo que desciam em alta velocidade no sentido oposto, foi impossível não ser dominado por uma sensação de déjà vu. Muito antes do Google Earth, Hockney pintou essas colinas em tons absurdos de laranja, verde, azul e vermelho, em paisagens como Mulholland Drive: The Road to the Studio, 1980. Agora que estou aqui, algo que eu pensava ser uma fantasia hiper-realista em tinta acrílica revela-se surpreendentemente realista -mais um exemplo do dom de Hockney para captar alguma essência de qualquer lugar ou pessoa que pinta.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A casa, comprada no final da década de 1970, se esconde atrás de portões cinzas, que não deixam transparecer o país das maravilhas que escondem. Passando por eles, o terreno desce, numa selva de exóticas samambaias e palmeiras, até a famosa piscina na parte mais baixa. O sol inclemente faz faiscarem tons iridescentes de rosa e cerúleo. O artista Howard Hodgkin disse certa vez que a casa era tão romântica e artificial quanto ele esperava -e é. Mas, hoje, tudo está calmo, e as folhas que boiam sobre a piscina traem seu uso apenas esporádico. Talvez faça tempo desde que festas tresloucadas varavam a noite e pessoas se deitavam nuas sobre as pedras quentes à beira da água.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Não saio de casa. Quase nunca saio daqui, Hockney admite. Contrastando com os trabalhos vibrantes que o cercam, sua aparência é tão sóbria quanto é sóbrio o portão da casa: calças risca de giz cinzentas, casaco cinza escuro e, inesperadamente, considerando o desdém com que ele encara qualquer forma de exercício, tênis Skechers. Vou ao dentista, ao médico, à livraria e à loja de maconha, porque a cada um desses lugares é preciso ir pessoalmente. E é só. Não saio muito, na verdade, porque estou surdo demais. Estou ouvindo você agora, mas se houvesse duas pessoas conversando em voz baixa eu não conseguiria ouvir, porque ouço tudo em um ruído só. Por isso não tenho propriamente uma vida social, porque a vida social é conversar e ouvir, e não consigo ouvir realmente. Mas está tudo bem, tenho um monte de coisas para fazer, estou bem.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Você é freguês regular da loja de maconha? Bem, sou... ele começa a responder, tirando a carteira do bolso de trás para mostrar seu cartão de paciente de maconha medicinal, como se estivesse sendo revistado pela polícia. Para conseguir esse cartão só é preciso falar 'tenho dor nas costas, ansiedade ou alguma coisa', e pronto. E é ótimo, na verdade. Não fumo muito, mas, como não tomo mais álcool, um pouco de maconha à noite às vezes é agradável.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Hockney voltou para Los Angeles no verão de 2013, depois de oito anos na Inglaterra, a maior parte do tempo em Bridlington, na parte leste de Yorkshire. Foi um período produtivo, em que ele ampliou seus horizontes técnicos e tecnológicos. Sua produção foi surpreendente para um artista de qualquer idade: desde milhares de pequenos desenhos em seu iPhone e iPad até enormes paisagens da região de Yorkshire Wolds (notadamente Bigger Trees Near Warter, de 12,2 metros por 4,6 metros), culminando numa exposição triunfal na Royal Academy, em 2012. Mais de 600 mil pessoas viram David Hockney: A Bigger Picture, o dobro do número previsto de visitantes -e esse público se repetiu quando a mostra viajou para Bilbao e Colônia.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Mas sua saída de Yorkshire foi repentina -até insatisfatória. Não parecia ser a hora da despedida; problemas pessoais se impuseram. Em setembro de 2012, Hockney sofreu um AVC. Num primeiro momento ele não se deu conta do que tinha acontecido. Levantou-se cedo e saiu para comprar o jornal, mas então percebeu que não conseguia dizer frases completas. Depois, em março do ano passado, um de seus assistentes de estúdio, Dominic Elliott, de 23 anos, morreu na casa do artista, em Bridlington, após ingerir um produto de limpeza doméstica, sob efeito de ecstasy e cocaína. Por fim, a surdez de Hockney, que é hereditária e o obriga a usar aparelhos nos dois ouvidos, piorou.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O retorno a Hollywood Hills, onde ele viveu durante boa parte dos anos 1980 e 1990, tem sido um tanto catártico, ele acredita. Antes de deixar a Inglaterra, estava trabalhando sobre paisagens sombrias em Yorkshire, desenhadas a carvão, mas, na Califórnia, decidiu outra vez usar tintas acrílicas ousadas e fazer alguns retratos. O primeiro foi de Jean-Pierre Gonçalves de Lima, seu assistente principal, sentado numa cadeira com a cabeça apoiada nas mãos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Comecei essa pintura de JP, diz. Nos sentíamos muito caídos, muito mesmo. Estávamos deprimidos por causa do que aconteceu na Inglaterra e tínhamos acabado de voltar. Tinha outras coisas acontecendo, mas comecei a fazer esses retratos, e só foi preciso isso. Pintei 50 pessoas, todas na mesma cadeira, na mesma posição. Levou três dias cada uma, mais ou menos três sessões de seis horas, e eu curti fazer isso. Chamei pessoas para virem sentar-se ali e falei: É uma exposição de 18 horas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Desde então, Hockney não parou mais. Ele continua a mexer com tecnologia para produzir trabalhos novos. (Trabalho oito dias por semana, diz Gonçalves de Lima, fingindo estar exasperado. Todo dia é segunda-feira.) Ele completou recentemente um conjunto de cinco desenhos fotográficos: montagens em diferentes perspectivas de pessoas distribuídas por seu estúdio, exibidas em telas de alta definição. Esses trabalhos estão expostos na Pace Gallery, em Nova York, onde ficarão até 10 de janeiro, juntamente com alguns dos retratos na cadeira e pinturas de grupos de bailarinos -uma homenagem a A Dança, de Henri Matisse.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Quando nos encontramos, Hockney acabava de começar uma série de estudos mais convencionais de jogadores de baralho. Com os olhos azuis cintilando, ele diz que agora entende o que atraiu Cézanne e Caravaggio para o mesmo tema. Os jogadores ficam razoavelmente parados, suas mãos estão sobre a mesa, eles estão concentrados, eles me ignoram, mas mesmo assim me sinto próximo deles.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Hockney está determinado a olhar para o futuro, mas nós ganhamos uma oportunidade preciosa para uma incursão retrospectiva em sua vida com o lançamento do documentário que leva seu nome, que estreou no mês passado e será exibido pela BBC2 ano que vem.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Hockney acende um Camel Wide -agora só restam 1.999 no estoque- e se prepara para responder perguntas de outros artistas, amigos e leitores do Observer.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>ARTISTAS PERGUNTAM</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Grayson Perry (artista visual) - Tenho a sensação de que, à medida que vou ficando mais velho, quero fazer arte cada vez mais feliz. O que você acha, David?</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
David Hockney -É uma boa pergunta. Bom, minha arte é brincalhona, ela tem muito disso. Não sei se ela é feliz, mas acho que não é infeliz. O estado de ânimo em que você está sempre transparece em seu trabalho. Na verdade, se estou muito deprimido e infeliz, eu nem trabalho. Isso não acontece com muita frequência. Geralmente eu trabalho sete dias por semana. Hoje em dia, o trabalho é a única coisa que eu faço. Estou com, deixe eu ver, 77 anos, e sinto que ainda estou apenas explorando coisas. Neste momento, estou explorando a perspectiva de maneira nova. Isso é interessante para mim.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Não sou um artista deprimido. A arte deve transmitir alegria. Ainda não vi a exposição de Matisse [a exposição Cut-Outs da Tate que foi levada aos Estados Unidos], pretendo ir na semana que vem quando eu estiver em Nova York, mas estou com muita vontade de ver. Matisse é pura alegria. Jovens e velhos amam isso, não? E acho que minha mostra na Royal Academy foi vista por jovens e velhos, então isso deve ser uma coisa boa.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Ali Smith (escritora) - Como você descreveria o lugar onde as coisas que você já leu e a música que conhece penetram os quadros que você faz? Olho para suas paisagens e de alguma maneira eles me parecem... Beethoven. É uma forma de sinestesia em ação?</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Se é sinestesia, não sei. Alguém disse que sou sinestesista devido à cor que usei nas imagens que fiz para o palco de óperas anos atrás, mas acho que não, na realidade. Mas Beethoven... talvez eu estivesse ouvindo Beethoven algumas vezes quando pintei uma paisagem. Eu me lembro de que no carro, a caminho de Woldgate, eu ouvia Glenn Gould tocando ao piano a versão de Franz Liszt da Quinta Sinfonia de Beethoven. O carro foi o último lugar onde pude realmente ouvir música, porque era um carro bom, tinha 18 caixas de som.</div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Bella Freud (estilista) - Como você bolou um jeito tão bom de se vestir? Foi algo pensado com cuidado ou foi um experimento casual que funcionou bem?</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Foi por acaso! Não sei, meu pai era um dândi. Ele sempre usava ternos, e eram feitos sob medida. Ele não ganhava muito, mas naquela época as pessoas mandavam fazer seus ternos. Ele os mandava fazer em Bradford, só isso. Hoje eu tenho uns dez ternos e na realidade é só isso que uso. Durante uns 20 anos a Fallan &amp; Harvey em Savile Row fez meus ternos. E eu pinto de terno, então alguns estão mais manchados que outros. Mas é só isso que eu uso.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Quando você é um jovem artista, você quer chamar a atenção. É necessário, mas depois de ter chamado a atenção, está feito. Não penso muito sobre roupa, simplesmente visto alguma coisa. Hoje vesti esta calça mais nova. Bem, é mais nova que as mais velhas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>David Shrigley (artista visual) - Você tem a mesma paixão por fazer arte de quando era mais jovem?</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Tenho ainda mais. Estou trabalhando mais hoje do que trabalhava 20 anos atrás, estou produzindo mais. Provavelmente porque tenho mais certeza das coisas. Tenho plena confiança no que estou fazendo. Eu sei que meu trabalho é interessante. Sei disso porque vejo o trabalho de outras pessoas e sei que o meu é diferente. Eu sei que estou um pouco por conta própria. Gosto do seu trabalho. Vi sua exposição na Hayward Gallery. Achei muito, muito boa. Uma exposição memorável.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Paul Smith (estilista) - Você ainda desenha do modo mais tradicional, como fazia inicialmente quando saiu do Royal College?</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Sim, eu desenho. Em 2013 fiz uns 30 retratos, desenhos a carvão -bem convencionais, na realidade, mas não tanto assim. Os desenhos me levaram dois dias. Dos 16 aos 20 anos eu só fiz realmente desenhar, porque estava na escola de artes de Bradford e em Bradford você podia ficar na escola das 9h às 21h. Passei quatro anos desenhando. Se você faz isso você melhora, qualquer pessoa melhoraria, mas hoje não são muitas as pessoas que tentam, e é esse o problema. Eu tentei e me aperfeiçoei rapidamente.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Não sei como estão as escolas de arte hoje, mas me disseram que elas não ensinam mais desenho. </div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Isso me parece uma insensatez. O desenho será necessário no futuro. Videogames e outras coisas -são pessoas desenhando. Sempre é preciso voltar à tábua de desenho. Sempre. Mesmo no computador, é preciso voltar à prancheta de desenho.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Yinka Shonibare (artista visual) Desenhar com o iPad lhe dá a mesma sensação que desenhar no papel?</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Não, porque você está desenhando numa folha de vidro. Mas num iPad você pode desenhar para sempre, e numa folha de papel isso não é possível. E no iPad você desenha de forma um pouco diferente, mas é só isso.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O desenho existe há 50 mil anos, não é verdade? Acho que ele vem de algum lugar muito profundo em nosso íntimo. Quando aquele pessoal todo nos anos 1970 estava tentando abrir mão do desenho, eu fui ver essas pessoas e elas me disseram: Agora não é mais preciso desenhar. E eu observei: Por que vocês não tentam dizer isso àquela criancinha ali? Tentem lhe dizer que ela não precisa desenhar e vejam o que acontece.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>LEITORES PERGUNTAM</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Se você pudesse dar um jantar para cinco pessoas, vivas ou mortas, quem seriam?</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Cinco pessoas: Picasso, Goya, Rembrandt, Michelangelo e um escritor, talvez Goethe, porque sei que ele tinha um papo interessante e porque não sei muito sobre ele.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Eu frequentemente faço uma peregrinação até a galeria Salts Mill, em Saltaire, para ver suas obras e me comovo com a dos últimos momentos de vida de sua mãe. </div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Quando você cria um trabalho profundamente pessoal, como esse, como se sente quando volta para vê-lo alguns meses ou anos mais tarde?</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Penso em minha mãe. Penso nela com frequência. Nos últimos dez anos de vida dela eu ia vê-la quatro vezes por ano. Ela viveu até os 99 anos. Eu passava uma semana em Bridlington e a desenhava, sempre. Pensava que talvez aquela fosse a última vez que a veria. E ainda tenho todos aqueles desenhos. A pintura da qual você fala pertence a mim, eu apenas a cedi temporariamente a Saltaire. Guardei todas as pinturas e os desenhos de minha família; só dei uma para a Tate porque a queriam, mas fiquei com muitas. Mais adiante vou dá-las a museus e assim por diante.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Uma das coisas que sempre amei em você e seu trabalho é que você dá a impressão de ser totalmente indiferente às críticas. Essa impressão é verdadeira? Ou alguma crítica já o feriu ou o obrigou a rever seu trabalho?</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Não, isso nunca aconteceu. A maioria das críticas não é grande coisa. Se eu prestasse atenção aos críticos, ficaria louco. Nunca dei importância a Brian Sewell; ele me ataca sempre, ataca todos os artistas ingleses contemporâneos, mas na realidade ele é uma piada, só isso. Nunca o levei a sério. Sim, sempre fui capaz de ignorar as críticas. Na realidade, sempre tive muita autoconfiança. Quando cheguei ao Royal College of Art, as pessoas me tratavam com sarcasmo por eu ser de Yorkshire, faziam piadinhas em tom de menosprezo. Eu não dava bola, mas às vezes olhava os desenhos delas e pensava: Se eu desenhasse assim, ficaria calado. Mas eu nunca me importei, não tinha importância. </div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Quando primeiro fui para Londres, imaginei que todo o mundo ali seria muito, muito bom, mas depois de quinze dias no Royal College eu já tinha formado uma opinião sobre muitas coisas. Podia ver que nem todos eram tão bons assim.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Sempre tive autoconfiança porque eu sabia desenhar. Eu tinha consciência de possuir um talento; tive essa consciência desde menino. Eu pensava: Se as coisas ficarem difíceis, eu sempre poderia pintar retratos no La Coupole, em Paris. Havia um homenzinho que desenhava retratos, e eu pensava: Eu também poderia fazer isso. Pensar que você sempre teria a opção de fazer isso ou aquilo lhe dá confiança.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Você sempre foi um homem apaixonado. Agora que está mais velho, qual é o papel do amor em sua vida? Esse papel mudou?</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Amo meu trabalho. E acho que o trabalho tem amor, na realidade. Estou morando sozinho. Bem, vivo com JP, mas não somos amantes. Estou aberto à possibilidade do amor romântico, estou sempre aberto! Mas não espero isso agora. Já tive amor suficiente, estou razoavelmente feliz aqui. Não estou infeliz. Estou trabalhando, é só isso que quero fazer, e há amor em minha vida. Amo a vida. É assim que assino cartas: Amo a vida, David Hockney. Quando estou trabalhando, me sinto como Picasso, me sinto como se tivesse 30 anos. Quando paro, eu sei que não tenho, mas quando pinto, passo seis horas por dia em pé e me sinto com 30 anos, isso mesmo. Picasso disse que entre os 30 e os 90 anos, ele sempre se sentiu com 30 quando pintava.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>O que você diz aos não fumantes que falam de seu vício em tom farisaico?</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Uma vez eu estava caminhando no Holland Park (estava posando para Lucian Freud) e parei para observar alguns coelhos pretos brincando. Me sentei num banco e então algumas pegas -aves pretas e brancas- pousaram no chão. Eram bonitas. Eu estava sentado lá, fumando um cigarro, e três garotas passaram ao lado correndo. Elas me viram, disseram ai, ai [faz um gesto de repreensão com o dedo]. Fiquei sentado e pensei: Elas acham que são muito saudáveis, mas não viram os coelhos. Pensei: Sou mais saudável que elas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
As pessoas são mesquinhas, são sim. São mesquinhas e deprimentes: deprimentes! Uso a palavra deprimente porque acho muitas pessoas deprimentes, e elas não me interessam. São deprimentes. Deprimentes demais.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Você acha que, com sua arte, mudou a atitude das pessoas em relação à homossexualidade? Se sim, isso é importante para você?</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Provavelmente, e isso é uma coisa boa, acho. Sim, quando eu era muito jovem eu já sabia que os gays escondem coisas, e eu não queria fazer isso. Pensei: Vou ser um artista, simplesmente. Tenho que ser honesto. É preciso ser honesto. Então era isso, eu era gay e isso não me preocupava. E eu sempre dizia que vivíamos na zona boêmia e que ela é um lugar tolerante. Naquela época existia uma zona boêmia. Hoje em dia não existe, porque, para haver uma zona boêmia, é preciso haver lugares que custem pouco, certo? Paris foi uma cidade boêmia no passado, mas hoje não é, é rica demais. Nova York está ficando assim. Acho que não existe muita zona boêmia em Nova York hoje.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Se você pudesse ter uma pintura apenas da história pendurada em seu quarto, qual seria? E, se daqui a 2.000 anos só restassem algumas poucas de suas telas, qual você mais gostaria que durasse?</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Há um desenho de Rembrandt que para mim é o maior desenho já feito. Está no British Museum. É de uma família ensinando uma criança a andar, então é uma coisa universal, todo mundo já viveu ou viu isso. Todo mundo. Eu costumava imprimir cópias grandes de desenhos de Rembrandt, eu as dava às pessoas e dizia: Se vocês encontrarem um desenho melhor, mandem para mim. Mas se vocês encontrarem um melhor, será de Goya ou de Michelangelo, talvez. Mas na realidade acho que não existe nada melhor. É um desenho magnífico, magnífico.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Quanto a uma pintura minha... 2.000 anos! Isso é muito tempo, acho que até lá minhas pinturas não serão mais grande coisa. Mas na realidade eu as pinto para durar, e elas são pintadas corretamente, ou seja, são pintadas gordo sobre magro [permitindo que as camadas inferiores sequem, para evitar rachaduras na superfície], então a tinta se projeta. A primeira coisa que fiz quando ganhei dinheiro foi comprar telas e tintas de qualidade melhor, porque sabia que era necessário, e posso olhar aqueles quadros de 50 anos atrás e ainda estão bem. Se eu tivesse que escolher apenas um, escolheria o retrato de meus pais. Mas não sei se ele duraria 2.000 anos. Talvez durasse, mas as pinturas só duram se alguém realmente quer vê-las; se são guardadas em algum depósito, acabam virando pó.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Qual foi a pessoa mais linda que você já beijou?</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O artista Peter Schlesinger, talvez. Eu o conheci quando ele tinha 18 anos, e eu, 28. Ele era um rapaz muito, muito, muito sexy, e era inteligente também. Eu já tinha conhecido rapazes sexy antes, mas não eram muito espertos. Peter era inteligente, era um tipo diferente de pessoa.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<i>- TIM LEWIS é jornalista, publicou originalmente a entrevista com David Hockney no britânico Observer.</i></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
Pró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-205942312916252074.post-8147687106235848232014-12-01T09:45:00.002-08:002014-12-01T09:45:59.027-08:00A beleza salvará o mundo<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiBsPB2S63_04G7-IXyKGT0YOtM-_FsWFn2XffNEfQWRNWZHWroxJ53a5RV8JrqYlR8bCNapQKowBChTh_6jSdY3AoKhPhkIGRT_6BEAlArOec_LKxEZTYQs3KOKi5Cr3TagatFoC1vYoFH/s1600/litho02.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiBsPB2S63_04G7-IXyKGT0YOtM-_FsWFn2XffNEfQWRNWZHWroxJ53a5RV8JrqYlR8bCNapQKowBChTh_6jSdY3AoKhPhkIGRT_6BEAlArOec_LKxEZTYQs3KOKi5Cr3TagatFoC1vYoFH/s1600/litho02.jpg" height="400" width="310" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Por Luiz Felipe Pondé</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Da Ilustrada</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Caro leitor, cara leitora, que sua semana se abra com tamanha beleza: Meu único amor, nascido de meu único ódio! Cedo demais o vi, ignorando-lhe o nome, e tarde demais fiquei sabendo quem é. Monstruoso para mim é o nascedouro desse amor, que me faz amar tão odiado inimigo. É uma fala de Julieta, na peça Romeu e Julieta de William Shakespeare.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
E mais: Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora! Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Estavas comigo, mas eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti as tuas criaturas, que não existiriam se em ti não existissem. Tu me chamaste, e teu grito rompeu a minha surdez. Fulguraste e brilhaste e tua luz afugentou a minha cegueira. Espargistes tua fragrância e, respirando-a, suspirei por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tu me tocaste, e agora estou ardendo do desejo da tua paz.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O trecho é de Confissões, de Santo Agostinho, capítulo dez.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O grande autor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881) dizia que a beleza salvaria o mundo. Conhecendo o abismo do desespero e do niilismo, ele profetizou a força da beleza como restauradora do espírito.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Para ele, habitaríamos um futuro em que a verdade desapareceria por força de nossa própria dúvida e razão, e que, talvez, apenas a beleza poderia recuperar a forma do mundo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Mundo este feito para acolher a misericórdia, já que habitado por solitários como nós. A esperança, para o nosso russo, é flor que brota dos escombros. Visões de um romântico, claro. Romântico como a jovem Julieta.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Mesmo que presos ao tempo -que nos assola a cada dia com o desespero que parece brotar do vazio das horas e lentamente nos revela o destino que nos espera-, é este mesmo tempo que ambos, Shakespeare e Santo Agostinho, chamam à cena para marcar o momento da descoberta da beleza.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Sempre tarde demais ou cedo demais, ela chega. E nós, com nossas palavras e gestos, corremos atrás pra dar-lhe nome. Romeu e Deus. É pelo esforço de dar nome à doce fúria que ela nos incita, que recuperamos o gosto pelas coisas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Mesmo que seja, como diz o príncipe no final de Romeu e Julieta, para nos mostrar como nosso mundo não suporta a beleza de dois jovens que se amam, sem perceberem que o mundo não é lugar para tamanha monstruosidade de um amor fora do lugar.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A beleza que Agostinho tarda a amar, na história de Cristo, é esta beleza mesma, despedaçada pela incapacidade humana de sair da cela da humilhação para a leveza da humildade -única virtude indestrutível, como diria outro grande artista, Georges Bernanos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Sem a humildade, nos sentimos humilhados pela beleza de Deus. O desejo enlouquecido de Agostinho no texto é lugar comum na literatura mística, tradição marcada pelo encontro com esta beleza.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
No texto de Shakespeare, Romeu é o objeto de amor avassalador da jovem de 13 anos conhecida como Julieta, da nobre família dos Capuleto, representante aqui de todo homem e toda mulher que um dia enlouqueceu de amor.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
No texto de Santo Agostinho, Deus é o objeto. Aquele que sustenta tudo que existe e que é mais íntimo de mim do que sou de mim mesmo. Conhecer Deus exige de nós um autoconhecimento desconhecido para quem nunca se descobriu cego.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Beleza esta que nasce das profundezas da cegueira de quem se sabe incapaz de criá-la, mas pressente sua presença nalgum lugar que não sou eu.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Uma ciência do mistério, que encanta todos que um dia escreveram sobre ela. Ridícula, como diria o profeta russo Dostoiévski em seu maravilhoso conto tardio, Sonho de um homem ridículo, porque inacessível para quem nunca se viu disforme.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Se lembrarmos o que dizia outro grande artista, Nelson Rodrigues, que escrevia contos de amor e morte, assistiríamos à peça Romeu e Julieta de joelhos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Logo o amor será objeto de algum psicofármaco. Trataremos Julieta com calmantes, como já tratamos Santo Agostinho. Eis o inferno para um romântico: a vida bem resolvida.</div>
Pró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-205942312916252074.post-16252695127933694792014-11-28T11:14:00.000-08:002014-11-28T11:16:12.636-08:00Depois de Derrida - Retrato de uma Obra Viva<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEit2q_nNoaePwdzcsvttuDLCjW6k7G0TyUNeU7-11DeKiR_FNCri_uwPsnZZILW_6xYxrSF3GmtHAMgW20lcIWe2ZDH4eqh6IZgJI0hfB6FRCRCHfqkwHnwURvEip0qjuQ_WWWFe-5NyV-9/s1600/JacquesDerrida.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEit2q_nNoaePwdzcsvttuDLCjW6k7G0TyUNeU7-11DeKiR_FNCri_uwPsnZZILW_6xYxrSF3GmtHAMgW20lcIWe2ZDH4eqh6IZgJI0hfB6FRCRCHfqkwHnwURvEip0qjuQ_WWWFe-5NyV-9/s1600/JacquesDerrida.jpg" height="303" width="400" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Por Evando Nascimento, da Ilustríssima</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Homenagens internacionais lembraram a morte, há dez anos, de Jacques Derrida. Brasil teve papel importante na difusão da obra do filósofo da desconstrução, termo por vezes mal compreendido, que alimentou teorias, como os estudos pós-coloniais, em que é central a noção de alteridade proposta pelo francês.</div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>*</b></div>
<div style="text-align: justify;">
Todo filósofo ou escritor tem outro pensador com quem dialoga permanentemente. O meu é Jacques Derrida, cuja morte, ocorrida há dez anos, foi lembrada ao longo deste 2014 em homenagens mundo afora.</div>
<span style="text-align: justify;"><br /></span>
<span style="text-align: justify;">O pensador franco-argelino de origem judaica, nascido em 1930 em El-Biar, foi tema de publicações, palestras, colóquios e mesmo um documentário, realizado a partir da biografia escrita por Benoît Peeters, Derrida [trad. André Telles, Civilização Brasileira, 742 págs., R$ 80], pela cineasta Virginie Linhart -Jacques Derrida: le Courage de la Pensée (a coragem do pensamento). Na qualidade de ex-aluno e de organizador do último evento de que ele participou, dei um pequeno testemunho para o filme, produzido pelo canal franco-alemão Arte.</span><br />
<br />
<div style="text-align: justify;">
No caso de Derrida, o primeiro diálogo que se instaura, logo no início de sua trajetória, é com Husserl -de quem ele se tornaria um dos maiores especialistas franceses, tendo escrito um trabalho de peso ainda em sua época de estudante. Esse texto seria publicado como livro pela PUF, em 1990 (Le Problème de la Genèse dans la Philosophie de Husserl, o problema da gênese na filosofia de Husserl).</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Nietzsche e Heidegger são as duas referências maiores, que o acompanham até o final. Em nenhum desses casos há mera repetição, por Derrida, daquilo que o outro pensador disse, mas uma leitura desconstrutora, sinalizando os avanços (e também os aspectos dogmáticos) de cada um deles.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Num texto pouco conhecido, em que faz um balanço dos filósofos que o marcaram, Nous autres Grecs(literalmente, nós outros gregos), descarta ser um devedor absoluto de qualquer um deles. O único pensador do qual ele se reconheceria de fato tributário seria Heráclito, em particular em relação ao hén diaphéron heautoû, o uno diferente de si mesmo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Constata-se, nesse fragmento heraclitiano, o princípio da différance com a, noção derridiana, que, como a escritura, foi muito difundida nos anos 1960 e 70. O termo francês que significa diferença se escreve com e, différence; mas, por várias razões de ordem filosófica, Derrida rasura a ortografia: ao substituir o e por a, desloca o sentido da palavra, expondo assim a forma, sobretudo ocidental, de pensar as diferenças, sempre por oposição: o masculino x o feminino, o branco x o negro, o conteúdo x a forma etc.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Todo o pensamento de Derrida tenta analisar, de modo empírico e transcendental, um tempo-espaço da diferença de forma não binária.</div>
<span style="text-align: justify;"><br /></span>
<span style="text-align: justify;">Essa différance se refletiria no que ele nomeou, em diálogo com o matemático Gödel, como indecidibilidade. Em certos contextos, alguns termos se distinguem pela impossibilidade de decidir por um dos polos da oposição clássica.</span><br />
<br />
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>DROGA</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O exemplo mais famoso dessa 'indecidibilidade é o do phármakon. Numa leitura cerrada do Fedro e de outros diálogos de Platão, Derrida mostra como esse vocábulo, em diversas passagens, é dotado da ambiguidade do veneno e do remédio, tal como para nós, hoje, o termo droga. A diferença é que droga detém uma conotação moral que o phármakon não possui de antemão.</div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
Num ensaio muitíssimo conhecido, A Farmácia de Platão (trad. Rogério da Costa, Iluminuras, esgotado), Derrida expõe como o phármakon é associado sistematicamente à escrita, muitas vezes como uma potência perturbadora do lógos, o discurso racional que, entre os séculos 5 e 4 a.C., estava em plena elaboração.</div>
<br />
<span style="text-align: justify;">A partir do final dos anos 1980, mas sobretudo nos 90, até 2003, quando adoece e suspende seus seminários na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, ele enfatiza cada vez mais os aspectos ético-políticos de sua obra.</span><br />
<br />
<div style="text-align: justify;">
Alguns leitores passaram a chamar esse momento de political turn (virada política), expressão equivocada, uma vez que textos anteriores, como Margens - Da Filosofia (trad. Joaquim Torres Costa e Antonio M. Magalhães, Papirus, esgotado), já continham diversos elementos de reflexão política, por meio da noção de descentramento -ou de abalo dos centros absolutos: Deus, verbo, essência, poder, verdade-, sem, no entanto, cair no relativismo.</div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
Com efeito, os seminários dos anos 1990 em diante foram designados por ele próprio sob a rubrica questões de responsabilidade -e envolviam temas como o segredo, o perdão, a dádiva, a hospitalidade incondicional, os animais e a pena de morte. Trata-se de uma enorme contribuição para a história do pensamento, que questiona problemas da atualidade, como a pena capital, a política imigratória na Europa e os desdobramentos do 11 de Setembro.</div>
<br />
<span style="text-align: justify;">Alguns dos livros publicados nesse período final estão disponíveis no país. Em 2004, por exemplo, traduzi Papel-Máquina [Estação Liberdade, 360 págs., R$59], com textos sobre a cultura digital e o livro, além de ensaios sobre a globalização. Dois outros volumes sobre questões políticas já foram muito bem traduzidos: Força de Lei (Martins Fontes), por Leyla Perrone-Moisés, e Espectros de Marx (Relume Dumará) -esgotados, mereceriam nova edição, como outros aqui citados, também fora de catálogo.</span><br />
<br />
<div style="text-align: justify;">
<b>DESCONSTRUÇÃO</b></div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
Jacques Derrida ficará conhecido decerto como o pensador da desconstrução. O termo foi banalizado, ganhando em setores da mídia o sentido de demolição. Isso nada tem a ver com as propostas derridianas, pois não se trata de destruir uma ordem para impor outra, mas de apontar o que, na ordem estabelecida, não funciona mais, abrindo o horizonte da reflexão.</div>
<br />
<span style="text-align: justify;">Derrida raramente definiu a desconstrução, salvo em situações pontuais, relacionadas a determinados contextos. Como fez, de forma muito precisa, antes de vir ao Brasil em 2004, para um colóquio por mim organizado, em parceria com a Universidade Federal de Juiz de Fora e com o consulado francês no Rio.</span><br />
<br />
<span style="text-align: justify;">Ao telefone, ele me disse: A desconstrução é um modo de pensar a filosofia, ou seja, a história da filosofia no sentido ocidental estrito, e, consequentemente, de analisar sua genealogia, seus conceitos, seus pressupostos, sua axiomática, além de naturalmente fazê-lo não apenas de maneira teórica mas também levando em conta as instituições, as práticas sociais e políticas, a cultura política do Ocidente -a entrevista completa foi publicada na Folha, pelo antigo caderno Mais!, em 15 de agosto daquele ano.</span><br />
<br />
<span style="text-align: justify;">Ao contrário do que supõe um equívoco corrente, as desconstruções não vieram destruir a cultura ocidental, mas repensá-la a partir de seus outros, daquilo que ela tentou excluir como o exótico, o diferente, o que está à margem. Derrida sempre declarou seu amor pela tradição filosófica, embora todo o esforço fosse para pensar além dela. Seu questionamento fundamental serviria a diversas lutas sociais, como o feminismo, o antirracismo, o movimento gay e os estudos pós-coloniais.</span><br />
<br />
<span style="text-align: justify;">Foi nesse sentido que -desde a época de adolescente na Argélia colonizada pela França- seu desejo intelectual dividiu-se entre literatura e filosofia. Ele explica isso na longa entrevista Essa Estranha Instituição Chamada Literatura [trad. Marileide Esqueda, ed. UFMG, 118 págs., R$ 35], em que expõe as relações entre discurso filosófico e literário ao longo de seu percurso.</span><br />
<span style="text-align: justify;"><br /></span>
<span style="text-align: justify;">Por ser uma instituição vinculada ao surgimento das democracias modernas, a literatura possibilitaria o direito de dizer tudo, embora muitas vezes possa ser censurada. Quando fui seu aluno, na França, esse tópico foi motivador, em minha tese, da categoria que denominei literatura pensante, relacionada à alteridade radical.</span><br />
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Não há em Derrida oposição entre literatura e filosofia, mas um desejo de que uma insemine a outra, ampliando o leque das reflexões. Em sua última entrevista ao jornal Le Monde, ele faz uma aposta no sentido de que seus herdeiros efetivos seriam poetas-pensadores, aqueles que soubessem reinventar seu legado, escrevendo um novíssimo texto.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>PIONEIRO</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O Brasil foi pioneiro na tradução de Derrida -antes mesmo da edição de qualquer livro seu nos Estados Unidos, país para onde começou a viajar nos anos 1960, a fim de dar palestras e seminários, e que é em geral considerado o berço da difusão de seu pensamento fora da França.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A Escritura e a Diferença, livro de 1967, saiu aqui em 1971, pela Perspectiva. Na recente edição revista e ampliada da obra, sanaram-se problemas da anterior: a linguagem está mais apurada, graças à revisão técnica; e foram acrescentados os três ensaios que haviam sido suprimidos na primeira edição, sem nenhuma justificativa ao leitor, restituindo assim a integridade de A Escritura e a Diferença [trad. Maria Beatriz Nizza da Silva, Pedro Leite Lopes e Pérola de Carvalho, Perspectiva, 448 págs., R$ 91].</div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
A segunda tradução brasileira de Derrida, pela mesma editora, foi a de um livro que marcou época: Gramatologia [Renato Janine Ribeiro e Miriam Chnaiderman, Perspectiva, 400 págs., R$ 60]. Publicado na França em 1967, saiu aqui pela primeira vez em 1973, antes, portanto, da edição norte-americana (de 1976), com tradução de Gayatri Spivak.</div>
<span style="text-align: justify;"><br /></span>
<span style="text-align: justify;">Felizmente, segue em catálogo essa tradução, que é boa -sobretudo se considerarmos que, naquele momento, ainda não se tinha muito conhecimento desse vasto universo, que chegaria aos 80 volumes publicados.</span><br />
<br />
<div style="text-align: justify;">
O Glossário de Derrida (Francisco Alves, 1976, esgotado), escrito sob supervisão de Silviano Santiago, com seus alunos da PUC-Rio, marcou os primeiros comentários à obra do pensador entre nós.</div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
Atualmente, contamos com alguns muito bons leitores de Derrida, especialmente nos departamentos de filosofia e letras, em instituições como a UFRJ, a UnB e a Unicamp, que formam grupos de pesquisa e disseminam a palavra do outro. Não se trata de nenhum movimento desconstrucionista à americana, mas de leituras que visam a enriquecer o pensamento no país, dotando-o de mais instrumentos reflexivos.</div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
Procurei fazer isso num ensaio sobre Antropofagia e Desconstrução, publicado no volume organizado por João Cezar de Castro Rocha, Antropofagia Hoje? (É Realizações, 2011), em que proponho deslocar a pulsão devoradora oswaldiana por um comer junto. Em vez de devorar o outro, como ato de violência real ou simbólica, caberia acolhê-lo incondicionalmente no banquete cultural. Tal como outros pensadores, Derrida tem muito a contribuir para o debate de temas nacionais, num contexto planetário.</div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
Estamos no depois de Derrida, momento de reflexão sobre o legado. Não há em geral, portanto, submissão intelectual nas traduções e leituras que se fazem no Brasil e em outros países, pois o que se busca é efetivamente ampliar a compreensão desse decisivo capítulo da história do pensamento, desdobrando-o.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b>
<b>EVANDO NASCIMENTO, 54, ensaísta e escritor, é autor de Derrida e a Literatura (3ª ed., pela É Realizações, no prelo).</b></div>
<div>
<br /></div>
Pró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-205942312916252074.post-52198178095578723292014-10-27T13:14:00.000-07:002014-10-27T13:14:03.267-07:00Sonhos complacentes<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhPZ6mdvmOXthFMdWDYOvjI2S_ErDunU3FNkZNy21Gl-m2zfPyph2TPnaszWzkJolGH1375syN9sQwf37Xy8_kvfkg8Oo0L2T_lXQhroNMJLER5c23DXK03qKAPl6oPhFMssAr6EbL2YkvM/s1600/pedras-cristais-chakras-energia-terapia-cura-z.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhPZ6mdvmOXthFMdWDYOvjI2S_ErDunU3FNkZNy21Gl-m2zfPyph2TPnaszWzkJolGH1375syN9sQwf37Xy8_kvfkg8Oo0L2T_lXQhroNMJLER5c23DXK03qKAPl6oPhFMssAr6EbL2YkvM/s1600/pedras-cristais-chakras-energia-terapia-cura-z.jpg" height="271" width="400" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Por Luiz Felipe Pondé</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Da Ilustrada</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Não sou um daqueles céticos que acham que religião é coisa de gente boba. Apesar de ter aprendido já no jardim da infância a crítica que os três cavaleiros do ateísmo contemporâneo fizeram à religião, Marx, Nietzsche e Freud, e de já tê-la assimilado ao café da manhã, estudo o bastante da produção filosófica de algumas religiões pra saber que nem tudo nelas é bobagem.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Portanto, não sou aquele tipo de ateu chato que ridiculamente mede a inteligência de uma pessoa por sua crença na ciência.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
E qual é essa crítica dos cavaleiros do ateísmo contemporâneo? De modo sintético, seria a seguinte: depois de Marx, se você é religioso, você é um alienado explorado por picaretas espirituais. Não podemos não concordar em grande parte com o que o velho barbudo diz sobre isso.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Depois de Nietzsche, se você é religioso, você é um covarde ressentido que não aceita a falta de sentido da vida e o abandono cósmico. Não podemos não concordar em grande parte com o que o filósofo do martelo diz sobre isso.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Depois de Freud, se você é religioso, você é um adulto bobo que não conseguiu lidar com os fatos de que seu pai não é o pica das galáxias e sua mãe não te ama incondicionalmente, daí Deus ser esses pais ideais. Não podemos não concordar em grande parte com o que o sábio de Viena diz sobre isso.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Preocupo-me aqui, especificamente, com um fenômeno que chamaria, carinhosamente, de masturbação espiritual, e que se caracteriza por um enorme narcisismo a serviço de uma falsa busca espiritual do tipo: o universo conspira a meu favor e Deus trabalha pra minha felicidade. A masturbação, aqui, representa exatamente o fato de que a masturbação é uma relação entre você e você. Na busca espiritual narcísica não existe qualquer transcendência, só a imanência entediante de um eu mesmo deslumbrado consigo mesmo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Quando você ouvir falar, num jantar inteligente, que alguém acha todo mundo lindo, que os jovens hoje são mais inteligentes e abertos à espiritualidade (quando nem conseguem criar vínculos mais duradouros com nada) e nada no relato dessa busca espiritual trair uma certa percepção de desespero, uma crise de fé em si mesmo, uma angústia moral, um horror qualquer, você está assistindo a uma sessão de masturbação espiritual.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Outro dia, conversando sobre isso com minha mulher, que faz doutorado sobre o psicanalista inglês D. W. Winnicott e o sofisticado sociólogo alemão Norbert Elias, ela me leu esse maravilhoso trecho de um livro de Elias, A Solidão dos Moribundos, da editora Zahar. Leia comigo:</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Hoje, com o imenso acúmulo de experiência, não podemos mais deixar de nos perguntar se esses sonhos complacentes não têm, a longo prazo, consequências bem mais indesejáveis e perigosas para o seres humanos em sua vida comunal que o conhecimento bruto e sem retoques.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Elias, neste período, discute em que medida o aumento da imaginação, como fruto da evolução, não teria vindo em socorro da incômoda e crescente consciência da finitude e da morte, nossos fantasmas humanos, demasiado humanos. A questão, dita de outra forma, seria: não estamos ficando mais bobos à medida que somos mais complacentes com as bobagens em que acreditamos? Alguns exemplos de bobagens: energias do universo, criança cristal, geração índigo, pedras energéticas, xamãs da Vila Madalena.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Ouso responder que sim. Essa moçada é, na verdade, gente sem compromisso com nada e complacente com suas manias egóicas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Passam a vida buscando a si mesmos assim como quem vai a Orlando brincar de ser criança (nada contra Orlando, tudo contra a punheta espiritual).</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Morrendo de medo da responsabilidade pela vida, diante do horror ao silêncio de um universo indiferente (Nietzsche), agoniados com a castração dos pais (Freud), preferindo gastar dinheiro com gurus inócuos (Marx), essa turma faz mais mal ao mundo do que quem diz diretamente na sua cara: o que você acredita é uma bobagem!</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Mas, de repente, paro e penso: não estarei eu caindo na velha arrogância cética? Não deve a filosofia nos ensinar a humildade diante da dor?</div>
<br />Pró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-205942312916252074.post-55120411069986614682014-10-20T11:27:00.001-07:002014-10-20T11:27:47.696-07:00Cro-Magnon no Shopping<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://locallocale.files.wordpress.com/2010/12/cromagpapa.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="http://locallocale.files.wordpress.com/2010/12/cromagpapa.jpg" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Por Luiz Felipe Pondé</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Da Ilustrada</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Somos uma espécie pré-histórica que passeia no shopping. Explico: somos adaptados a um cenário de uns 50 mil anos atrás. Shopping, aqui, significa a vida moderna. Logo: uma espécie que está na pré-história desfila pelos shoppings hoje achando que a pré-história saiu dela.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Desde que comecei a ler sobre a pré-história, minha vida mudou. Afirmação dramática para uma segunda-feira, claro. A pré-história arruinou em mim a ilusão de que o mundo tenha começado na queda da Bastilha, como pensam os inteligentinhos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Eu sinto a cada instante que a pré-história nos espreita pela fresta da porta. Não o Messias, como dizem alguns místicos judeus, mas a pré-história. Somos uma espécie pré-histórica que passeia no shopping.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Mas devo dizer que, para mim, isso não é uma humilhação. Pelo contrário, nutro grande reverência por nossos ancestrais. Julgo-os mais sérios, mais sólidos e com muito mais noção da realidade.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Nós somos uns mimadinhos exigindo direitos. Às vezes, suspeito fortemente que ficamos um pouco retardados. A consciência pré-histórica em nós é um dado de realidade profundo e que age em nós silenciosamente.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Por isso, é uma espécie de inconsciente evolucionário que garante que não fiquemos tão idiotas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
As mulheres, por exemplo, na pré-história, eram um poço de prontidão selvagem pra vida, com sua coragem, determinação e fôlego de parir bebês sem gineco, sem eutonista, sem doula, sem astrólogo... Sei, antes que algum inteligentinho apaixonado por iPhones grite, que a vida era muito mais dura. Por isso mesmo, menos boba.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Umas das consequências de ver o mundo com os olhos da pré-história é se assumir como alguém influenciado pelo darwinismo, que julgo muito superior ao marxismo como análise de mundo. E isso não significa defender o darwinismo social como inteligentinhos, na sua pressa típica de mentes lentas, assumem.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Significa reconhecer em nós um Cro-Magnon que é obrigado a cada dia viver num mundo de luxo estranho a nossas origens: não somos um animal do luxo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Significa reconhecer que ainda que desfilemos marcas chiques e sonhemos com direitos que garantam a vida, sabemos, no fundo de nossos cérebros neolíticos, que a vida, no fundo, é atrair parceiros pra reprodução, impressionar amigos com nossas realizações e gerar e cuidar da prole.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Tememos a precariedade, que, aos poucos, queremos acreditar que já foi resolvida. Hobbes estava certo, mas não só em política.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Evoluímos num ambiente de alto risco e que exigia de nós muita consciência prática. Vivemos hoje num ambiente alucinante de criações luxuosas que nos fazem acreditar que a vida seja uma criação social que construímos ao sabor de nosso desejo. Em resumo: levamos muito a sério o parque temático que construímos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Segundo o que nos diz Geoffrey Miller, psicólogo evolucionista, em seu divertido (indicação da minha filha) Spent - Sex, Evolution, and Consumer Behavior, Penguin Books, 2010, o darwinismo é um parceiro mais capacitado a entender a razão de viver como vivemos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O autor imagina uma hipotética conversa entre um de nós (que viaja no tempo) e os Cro-Magnon e tenta convencê-los que nossa sofisticada época seria melhor do que a deles. Ao final, os Cro-Magnon chegam à conclusão de que nosso mundo é estragado por coisas desnecessárias e que complicam o foco da vida: segurança, reprodução, cuidado com a prole.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Para Miller, compramos feito loucos porque queremos emitir sinais que mostrem aos nossos parceiros de bando nossa capacidade de conquistar o mundo. Neste sentido, materialismo não seria um bom termo pra descrever nosso mundo porque o que adquirimos com essa parafernália não é a matéria em si dos objetos, mas sim o poder de impressionar os outros com nossa capacidade de adquiri-los.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Estes sinais seriam fitness indicators (indicadores de adaptação), ou seja, sinais de que somos capazes de reproduzir, gerar e cuidar. Há um inconsciente evolucionário agindo em nós e estamos apenas começando a entendê-lo. Acho que deveríamos estudar mais a pré-história e menos os anos 60.<br /><br /></div>
<div>
<br /></div>
Pró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-205942312916252074.post-65932314309434398642014-10-15T12:25:00.000-07:002014-10-15T12:25:02.782-07:00Bergman e autoficção em "Depois do Ensaio"<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgSyNG_uvih9TK3bEAT-nxksgfVNsKKJlbzurGCOC_i2KALmskhwryWEkQoDsqaLxnO8pNtqKT1EX3OCrIK8bmdfgJ2jRGKzJGMQYDT9r0vqI1mjbpdTKcozpdydzJ_fLG9a05rCYuie6DL/s1600/bergman.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgSyNG_uvih9TK3bEAT-nxksgfVNsKKJlbzurGCOC_i2KALmskhwryWEkQoDsqaLxnO8pNtqKT1EX3OCrIK8bmdfgJ2jRGKzJGMQYDT9r0vqI1mjbpdTKcozpdydzJ_fLG9a05rCYuie6DL/s1600/bergman.jpg" height="287" width="400" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Por Amir Labaki</b></div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
<b>Da Ilustríssima</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
RESUMO Crítico analisa peça de Ingmar Bergman (1918-2007) dentro do quadro de seus escritos autobiográficos. Depois do Ensaio, cujo protagonista é um homem de teatro, não só põe em cena a admiração do cineasta sueco por August Strindberg (1849-1912) como recria aspectos da trajetória do diretor de Persona.</div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
*</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
No universo cinematográfico de Ingmar Bergman (1918-2007), com frequência artistas ocupam o lugar de personagens principais. Muitos são os que protagonizam dramas sobre o tumulto da existência, os conflitos das relações amorosas, o medo da morte, a membrana permeável que separa vida e sonho, as batalhas do mundo interior.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O recurso povoa toda a obra de Bergman, desde os instrumentistas de um de seus primeiros filmes, Música na Noite (1948), passando pelo pintor de A Hora do Lobo (1968), pelo trio de atores de O Rito (1969) ou por cineastas como em O Último Suspiro (1995).</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Alguns deles até portam o mesmo sobrenome, Vogler, como o mago hipnotizador de O Rosto (1958), a atriz em crise em Persona (1966) e o diretor de teatro de Depois do Ensaio (1984) -neste último, de prenome Henrik, há contudo uma dimensão inédita.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
É interessante examinar Depois do Ensaio dentro dos ciclos autobiográficos a que Bergman se dedicou a partir dos anos 1980.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O primeiro teve início com Fanny e Alexander (1982), prosseguindo com o documentário de curta-metragem O Rosto de Karin (1983) e conclui em Depois do Ensaio. Oito anos mais tarde, começaria a vir a público o segundo ciclo, apenas escrito por Bergman, mas dirigido por cineastas próximos a ele. São essencialmente as versões fílmicas da história de seus pais, na trilogia formada por As Melhores Intenções (Bille August, 1991), Crianças de Domingo (Daniel Bergman, 1992) e Confissões Privadas (Liv Ullmann, 1996).</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O casal central, sob o disfarce Henrik/Anna no primeiro e terceiro filmes, e sob seus nomes reais Erik/Karin no segundo, claramente espelha os pais verdadeiros de Bergman. As Melhores Intenções trata da turbulenta corte que formou o par. Crianças de Domingo mergulha na relação tumultuada entre o severo pai pastor e seu inquieto filho. Por fim, Confissões Privadas especula sobre a vida torturada da mãe de Bergman, complementando em ficção seu desaparecimento [...] nas imagens coletivas da família, que o próprio cineasta sueco já revelara em O Rosto de Karin, realizado unicamente a partir do álbum fotográfico doméstico.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Não surpreende que, entre os dois ciclos, Bergman tenha canalizado energia para seus dois principais volumes autobiográficos: Lanterna Mágica [trad. Marion Xavier, Cosac Naify, 320 págs., R$ 87,50], escrito por ele mesmo em 1987, e Imagens [trad. Alexandre Pastor, Martins, 448 págs., R$ 72,24], de 1992, editado a partir de entrevistas com ele feitas pelo crítico Lasse Bergström entre 1988 e 1990.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O episódio catalisador desse momento é evidente: o trauma advindo de seu autoexílio na Alemanha (1976-84), após uma agressiva interpelação pelas autoridades suecas, em pleno Dramaten, o Teatro Real sueco, a respeito de pretensas pendências fiscais.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Bergman disparou o processo autoanalítico naquele período em que, plenamente inocentado das acusações, se dividia entre Alemanha e Suécia. O primeiro resultado é seu épico sobre o maravilhamento na infância, entre lanternas mágicas e teatro de marionetes: Fanny e Alexander. Ele recordou em Imagens como o concebeu, no outono de 1978, quando, diz, tudo em sua vida era miséria e trevas. O roteiro do filme seria escrito na primavera seguinte, em seu primeiro retorno à casa na ilha de Fårö.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Ecos de Ibsen (11 montagens), Shakespeare (10) e sobretudo Strindberg (30), seus dramaturgos de cabeceira, não poderiam faltar. A obra que classificou como seu testamento cinematográfico encerra-se com a avó lendo para o garoto Alexander/Ingmar um trecho de O Sonho (1902) de Strindberg: Tudo pode acontecer, tudo é possível e provável. O tempo e o espaço não existem. Sobre um ligeiro fundo de realidade, a imaginação tece sua teia e cria novos desenhos, novos destinos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>FAST FORWARD</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Parece natural, assim, que Bergman tenha se proposto um fast forward em sua própria trajetória escrevendo, naquele mesmo impulso, um texto sobre sua vida no teatro -para os palcos, TV ou cinema, pouco lhe importava. É compreensível também que esse texto, Depois do Ensaio, parta de onde Fanny e Alexander parou: O Sonho, de August Strindberg (1849-1912).</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A peça do dramaturgo sueco fascina tanto Bergman quanto seu alter ego Henrik Vogler. O personagem tem a mesma idade que tinha Bergman enquanto o concebia, em 1980, 62 anos, e levou O Sonho aos palcos cinco vezes -o próprio Bergman o fez em quatro ocasiões (o único outro texto que pôs em cena com igual frequência foi A Sonata Fantasma, também de autoria de Strindberg, de 1907).</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Meu primeiro contato com Strindberg foi quando tinha 12 anos, recordou ele em março de 1990, em entrevista ao cineasta francês Olivier Assayas e ao crítico e diretor sueco Stig Björkman, recolhida em Conversation avec Bergman (Cahiers du Cinéma, 2004).</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Foi uma enorme experiência (...) Eu não quero fazer comparações, mas Strindberg era meu Deus, e sua vitalidade, sua raiva, eu as sentia dentro de mim. Sua dissertação de formatura, vale lembrar, também girava em torno do universo do autor e, em Estocolmo, viveu num apartamento no mesmo prédio habitado anteriormente pelo dramaturgo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A primeira montagem bergmaniana de O Sonho, em 1963, teve a forma de teleteatro. A segunda, de 1970, era mais experimental, com o texto tendo sido reduzido para um espetáculo ininterrupto de hora e meia. Nela, a protagonista, Agnes, filha do deus hindu Indra, era interpretada por duas atrizes. Em 1977, a terceira montagem representou a estreia teatral alemã de Bergman durante o autoexílio em Munique. Por fim, de volta ao Dramaten de Estocolmo, ele realizou em 1986 sua última versão, de duas horas e meia, recebida com reservas.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
É curioso ressaltar como uma das intervenções principais propostas por Bergman em suas duas últimas montagens de O Sonho repete-se na versão para a TV de Depois do Ensaio: a introdução da peça como uma possível experiência onírica. Em suas encenações finais do texto de Strindberg, é o Poeta que a apresenta; no telefilme de 1984, acrescentando um preâmbulo inexistente no texto original, é Vogler que anuncia ter dormido um pouco (aliás, como o Estudante na primeira cena de A Sonata Fantasma) e que, com isso, alguma coisa mudou.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Embora O Sonho, fragmentado entre 14 personagens principais, seja a referência mais explícita ao universo de Strindberg em Depois do Ensaio, em seu texto Bergman recorre, na verdade, a uma estrutura similar ao ciclo mais tardio (1907-08) de peças de câmara do dramaturgo sueco (Tempestade, A Casa Queimada, A Sonata Fantasma, O Pelicano e A Luva Preta).</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Destas, vale frisar, ele encenou, no decorrer de sua carreira, a segunda, a terceira e a quarta. Se a aparição de Rakel no palco remete aos espectros de A Sonata Fantasma e A Casa Queimada -ecos prováveis de Hamlet de Shakespeare, paixão compartilhada pelos dois artistas suecos-, a unicidade de cenário irmana Depois do Ensaio e O Pelicano.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>RAÍZES</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Depois do Ensaio é uma autoficção com firmes raízes biográficas. Basta ler Lanterna Mágica para constatar a dimensão dessa âncora memorialística. Em dois parágrafos, logo na abertura do quarto capítulo, encontramos, com pequenas alterações, dois dos monólogos mais intrinsecamente testemunhais de Vogler sobre sua vida no teatro: o de sua primeira lembrança da coxia e aquele em que trata de seu método baseado em autodisciplina, limpeza, luz e tranquilidade.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
As obsessões dramatúrgicas de Bergman pontuam o texto, em alguns casos como piscadelas irônicas. Molière era um de seus autores prediletos, e seu Tartufo, encenado durante o período em Munique, em 1979, foi severamente criticado. Nunca tive sucesso com 'Tartufo', desabafa Vogler frente à ideia da veterana atriz Rakel de retomarem a antiga parceria produzindo uma montagem.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A dimensão autobiográfica se expressa ainda pela assumida inspiração em Erland Josephson (1923-2012) e Lena Olin para a criação de Henrik e Anna.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Mais de meio século de amizade e parceria marcavam a história de Erland e Ingmar. A colaboração entre eles nasceu na juventude, em palcos do interior da Suécia, e estendeu-se para as telas, com Erland assumindo o papel de seu alter ego a partir de Cenas de um Casamento (1973).</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A biografia de Lena Olin é uma fonte subterrânea para a criação, por Bergman e por ela mesma, do papel de Anna, filha de Rakel. Seu pai, o ator e diretor de teatro Stig Olin (1920-2008), foi uma espécie de Erland Josephson do princípio da carreira cinematográfica do jovem Bergman, defendendo papéis variados, não raramente como protagonista, em Tortura do Desejo (1944), Crise (1946), Porto (1948), Prisão (1949), Rumo à Alegria (1950) e Juventude (1951). Já a mãe de Lena, Britta Holmberg (1921-2004), atriz como Rakel, estrelou Prisão com o marido, sob a direção de Bergman.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
O diretor sueco foi, por sua vez, um dos principais incentivadores para que Lena Olin abraçasse a carreira de atriz. Dois anos após trabalharem em Depois do Ensaio, Lena interpretou uma das Agnes da montagem final de O Sonho por ele.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Apesar da estreita parceria anterior com Bergman, nos palcos e no cinema, Ingrid Thulin (1926-2004) não foi a inspiração para a veterana Rakel. Escrevi esse papel como um monumento ao amor de Gertrud Fridh, confessou o diretor a Assayas e Björkman. Fridh (1921-84) e Bergman colaboraram em 21 projetos, entre teatro e cinema. Em 1964, sob a direção dele, a Hedda Gabler de Fridh se tornou o modelo ainda a ser superado nos palcos suecos. É impossível explicar o que acontecia com aquela garota quando entrava em cena, disse ele, na mesma entrevista.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Thulin aceitou fazer Rakel apenas quatro semanas antes do início das filmagens. Bergman elogiou seu desempenho e disse que ela conseguiu coisas muito boas, mas não pôde distanciar-se de seu papel. Pudera: em 1963, quando Bergman pela primeira vez montou O Sonho, foi ela quem deu vida a Agnes.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
*</div>
<div style="text-align: justify;">
<b><br /></b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>EM CARTAZ</b> Depois do Ensaio está em cartaz no Oi Futuro Flamengo, no Rio. A montagem, com texto traduzido por Amir Labaki e Humberto Saccomandi, dirigida por Mônica Guimarães e protagonizado por Leopoldo Pacheco, Denise Weinberg e Sophia Reis, deve chegar a São Paulo no ano que vem. No próximo sábado (18), Através de um Espelho, adaptação teatral do filme homônimo de Bergman, estreia no Tucarena, na capital paulista, em encenação a cargo de Ulysses Cruz, com Gabriela Duarte no papel da protagonista Karin. Ambas as temporadas vão até 30/11.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>AMIR LABAKI, 51, cineasta, crítico de cinema e fundador do festival É Tudo Verdade, é autor da peça Lenya, que estreou em São Paulo em 2008. É colunista do Valor Econômico.</b></div>
Pró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-205942312916252074.post-47337582156807291422014-09-29T11:45:00.001-07:002014-09-29T11:45:14.519-07:00Brigitte Bardot aos 80 anos: sempre ousada, franca e controversa<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgn_9cKws691oCx6z5dSxQomqlucbrhZ6h97dfpNKTueyVVWHg203XBM2WxRZ708tNJRWllOx6q4RbRgA9YTdgzcpAyiNx8mq92dzbgdzmmD10ZuS79j7jUxwTEQoHdzDlVihaA9HTYXxCM/s1600/Brigitte-Bardot_3014861b.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgn_9cKws691oCx6z5dSxQomqlucbrhZ6h97dfpNKTueyVVWHg203XBM2WxRZ708tNJRWllOx6q4RbRgA9YTdgzcpAyiNx8mq92dzbgdzmmD10ZuS79j7jUxwTEQoHdzDlVihaA9HTYXxCM/s1600/Brigitte-Bardot_3014861b.jpg" height="248" width="400" /></a></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Por Agnès Poirier<br />Do Observer</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>Tradução de Paulo Migliacci</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A mulher que a revista "Paris-Match" descreveu como "imoral da cabeça aos pés" em 1958 completa 80 anos hoje. A "mulher mais bonita do mundo" pode ter optado por abandonar a carreira em 1973, no pico de sua fama e beleza, para dedicar a vida aos animais, mas Brigitte Bardot nunca deixou de ser uma figura controversa.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Algumas histórias bastam para explicar. Na noite de 7 de dezembro de 1967, Paris aguardava com a respiração suspensa: Charles de Gaulle e Brigitte Bardot estavam por se encontrar pela primeira vez. "Le général" havia convidado a estrela de cinema a visitá-lo no palácio do Eliseu. E, em uma violação chocante do protocolo do palácio, que na época proibia que mulheres usassem calças como traje noturno, Bardot chegou vestida de hussardo da era napoleônica. Com galardões dourados e mais de uma dúzia de fileiras de botões reluzentes sobre o busto, ela trazia os longos cabelos loiros soltos por sobre os ombros, e os olhos maquiados com forte delineador preto. O mordomo chefe do palácio deve ter suado frio quando a viu subindo as escadas naqueles trajes. A estrela e o general se encontraram nos degraus. Foi ela que falou primeiro: "Bonjour, mon général", disse Bardot, um tanto tímida. De Gaulle, fingindo inspecionar o dólmã que ela vestia, respondeu: "De fato! Madame!" "Panache" é o termo que descreve bem a atitude que os dois exibiram abundantemente ao longo de suas vidas, ainda que de modos e em circunstâncias muito diferentes.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Ao contrário das outras deusas das telas de sua era, como Gina Lollobrigida e Sophia Loren (que completou 80 anos no último dia 20), Bardot não era uma garota de classe operária. Vinha de uma família muito burguesa, de católicos muito devotos, que vivia em um apartamento de sete quartos no elegante 16º arrondissement de Paris, não distante da Torre Eiffel. Tendo estudado balé por três anos, a partir dos 13, no Conservatoire de Paris (sua colega de curso, Leslie Caron, seria mais tarde selecionada por Gene Kelly para estrelar com ele a obra-prima do Technicolor "Um Americano em Paris"), Bardot desenvolveu a postura e o caminhar elegante que não demorariam a fascinar o mundo.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Em 8 de março de 1950, aos 15 anos, Bardot apareceu na capa da revista "Elle", e o eixo do planeta se deslocou. Lá estava o epítome da graça e estilo. Ela era recatada, católica, repleta de curvas mas com um corpo forte e musculoso; uma forma de atleta construída por meio de sessões intensas de entrechats. Bardot usava vestidos de algodão sem forros elaborados ou estruturas restritivas, e biquínis estampados de cores fortes. Com Françoise Sagan, que escreveu o best seller "Bom Dia, Tristeza", aos 17 anos, ela compartilhava de um sorriso provocante, um olhar inteligente e dos verões descalços de Saint Tropez. Eram as brilhantes meninas prodígio da França. Depois da "aposentadoria" prematura de Bardot como atriz, Sagan escreveu um livro sobre ela, em 1975: a um só tempo celebração e despedida. "Bardot não se desculpava por seu absoluto triunfo, em um momento no qual tantos outros se desculpavam por suas meias-vitórias".</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
A inocente "jeune fille" cresceu e, em poucos anos, se tornou símbolo sexual. Em 1957, aos 23 anos, fez história cinematográfica com "E Deus Criou a Mulher", o seminal filme de seu marido Roger Vadim, no qual sua explosiva sensualidade é graciosa como de hábito, sem jamais resvalar para a crueza. Em uma cena famosa, ela dança como se estivesse em transe, descalça, a pele reluzente de suor, os cabelos soltos, desarranjados. Suas coxas, de bailarina, são bronzeadas, fortes, musculosas. Ela está tão longe da imagem ordeira e construída das estrelas de Hollywood naquela era que, quando o filme foi lançado nos Estados Unidos, causou indignação em escala continental. Ver aquelas gotas de suor enlouquecia os homens norte-americanos. Os dirigentes de cinemas que ousaram exibir o filme terminaram processados, e ele foi proibido em alguns Estados; artigos nos jornais denunciavam a depravação daquilo tudo. Como resultado, "E Deus Criou a Mulher" se tornou sucesso ainda maior de bilheteria e o controvérsia ajudou a promovê-lo ainda mais na Europa.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Os defensores da moralidade pediam que Bardot fosse proibida, como se ela fosse alguma forma de droga ilegal. O apelo de Bardot, de fato, é diferente de qualquer outro. Tendo por base sua grande beleza, uma combinação de sensualidade voraz e grande estilo, ela também fascinou pelo menos duas gerações por conta de seu estilo de vida. Pois Bardot se comportava exatamente como um homem, em sua vida pessoal. Não respeitava restrições; não se sentia compelida a seguir convenções. Não queria ser esposa e mãe. Tentou as duas coisas, casou-se quatro vezes e teve um filho, mas decidiu que não havia sido feita para aquilo. Não é que Bardot estivesse se rebelando contra alguma coisa; estava só sendo quem era. Nos anos 50, 15 anos antes da voga revolucionária de 1968, comportamento como o dela era tanto fonte de escândalo quanto de aspiração secreta para muitas mulheres. Em um estudo sobre Bardot publicado em 1959, aquela outra mulher francesa que vivia sua vida desrespeitando convenções, Simone de Beauvoir, reconheceu a "absoluta liberdade" de Bardot. Seu estilo de vida, para muitos admiradores, era como que um manifesto filosófico.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Marie-Dominique Lelièvre, autora de numerosas biografias, diz que dos muitos astros a que voltou sua atenção, de Yves Saint-Laurent a Coco Chanel, passando por Serge Gainsbourg e François Sagan, Bardot tinha a mais complexa personalidade, e usava sua celebridade como uma cortina de fumaça. "Ela foi a primeira mulher a ter sua liberdade sexual publicamente exibida", disse Lelièvre. "Antes de Bardot, uma mulher que trocasse de amante pelo menor capricho era chamada de vagabunda, de 'salope'. Depois de Bardot, ela simplesmente passou a ser vista como 'libérée'. Ao contrário das atrizes de Hollywood, que respeitavam as regras, Bardot ditava as suas. Atraía mulheres que queriam ser como ela, e homens que simplesmente a queriam". John Lennon, completamente encantado por Bardot, tinha um pôster gigantesco com uma foto dela no teto de seu quarto. Gainsbourg compôs uma canção para ela chamada "Initials BB", depois que eles romperam em 1968, na qual ele canta: "Até o alto das coxas sobem suas botas, e é como cálice para sua beleza; ela usa só um perfume de Guerlain nos cabelos".</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Hoje, Bardot continua a ser ícone. "Kate Moss e Amy Winehouse devem muito a ela", explica Lelièvre. E Bardot sempre foi um ícone controverso. Ao contrário de Faye Dunaway, Loren e Catherine Deneuve, e de quase todas as demais beldades cinematográficas de sua estatura, Bardot jamais recorreu a cirurgias cosméticas. "Ela nunca evitou o olhar cruel do espelho. Suporta o envelhecimento com classe", diz Lelièvre. Mesmo assim, nem tudo vai bem na terra de Bardot. Depois de viver por décadas como reclusa em suas duas propriedades em Saint Tropez, incapaz de sair sem ser incomodada por fãs e paparazzi, ela desenvolveu, diz sua biógrafa, "uma visão de mundo bastante distorcida", e se concentra apenas em sua fundação para a proteção e bem estar dos animais. Oposta ao que vê como crueldade inerente ao processo halal de abate de animais, ela fez comentários antimuçulmanos pelos quais foi condenada nos tribunais franceses e forçada a pagar multas salgadas. Entre 1997 e 2008, ela encarou os juízes franceses em cinco ocasiões, sob acusações de "incitar o ódio racial". Na última delas, foi multada em 15 mil euros. Bardot foi condenada por declarar que "estou cheia de viver sob o controle dessa população [a comunidade muçulmana] que está nos destruindo, destruindo nosso país e impondo seus atos". Ela estava se referindo ao fato de que o método ritual muçulmano não inclui anestesiar os carneiros antes do abate. "Os animais são sua vida, e sendo a mulher espontânea que é, ela não consegue guardar suas opiniões para si. Não compreende que, por ser Bardot, suas palavras portam certo peso. De diversas maneiras, ela continua a ser uma criança irrefletida e egocêntrica", diz Lelièvre.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
E há também a questão de seu aparente flerte com a Frente Nacional. Mas, de acordo com Lelièvre, a dimensão de sua simpatia pela extrema direita pode estar sendo superestimada. "O marido de Brigitte Bardot é amigo de Jean-Marie Le Pen, mas nem ele e nem ela são membros do partido. Bardot não é racista e nem ativista de extrema direita". De fato, diz Lelièvre, qualquer tentativa de classificá-la é fútil: "Bardot é Bardot, e desafia definições".</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<b>O currículo de Brigitte Bardot</b></div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Nascida em 28 de setembro de 1934; seu pai, Louis, era engenheiro. Ela estudou balé no Conservatório de Paris e começou a trabalhar como modelo aos 14 anos.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Carreira: Lançada à fama em 1956 depois de aparecer se retorcendo na praia em "E Deus Criou a Mulher", um filme que se tornou cult, ela estrelou 47 filmes. Aposentou-se em 1973, "cansada" da fama e desejosa de dedicar sua vida aos animais.</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Família: Casou-se com o cineasta Roger Vadim aos 18 anos, e se divorciou cinco anos mais tarde. Depois, se casou com o ator Jacques Charrier, com quem teve seu único filho, Nicolas. Mais tarde, se casou com o milionário alemão Gunter Sachs. Em 1992, se casou com Bernard d'Ormale, ex-assessor da Frente Nacional, o partido francês de extrema direita. Em 2012, apoiou a líder da Frente Nacional, Marine Le Pen, na eleição presidencial francesa.</div>
<br />
<br />
<br />Pró-Reitoria de Arte e Cultura da UEPBhttp://www.blogger.com/profile/13871097462370565865noreply@blogger.com0