Por Marcelo Coelho
Da Ilustrada
O senhor acha, perguntaram a Stravinsky na década
de 1960, que sua música é agora mais compreendida do que na época
da “Sagração da Primavera”? Como se sabe, a estreia do balé,
em 1913, produziu um dos maiores escândalos da história da música.
Não, “não compreendem melhor agora”,
respondeu Stravinsky. Simplesmente “os escândalos passaram de
moda”, enquanto a música continuava difícil.
Ou melhor, acrescentou. Não é que o público
tivesse de “compreender melhor” a sua música. Mas tinha, isso
sim, “de ouvir melhor”.
E quanto ao futuro?, perguntou o repórter
polonês. O público vai acabar compreendendo? Ninguém sabe o que é
o futuro, respondeu Stravinsky, decerto cansado diante de perguntas a
que deve ter respondido com muita frequência.
Em qualquer peça de música clássica, e não
apenas no caso de Stravinsky, o problema da incompreensão existe.
Podemos gostar de Mozart e Beethoven, mas quem, num concerto, está
“entendendo” tudo o que se passa?
Sem contar as músicas que, de tanto sucesso,
tornaram-se quase impossíveis de acolher com inteligência.
A Quinta Sinfonia de Beethoven, por exemplo. O
“tã-tã-tã-taaam” transformou-se num rótulo de si mesmo, é
algo que quase não se ouve mais: apenas se reconhece.
Talvez tenha sido por isso que, no começo do
século 20, a arte moderna tenha se voltado tantas vezes para o
“primitivo”, para o “selvagem” —e a estreia da “Sagração
da Primavera”, que completou cem anos na semana passada, ficou como
um dos maiores exemplos dessa atração pela “barbárie”.
É que a “civilização”, num sentido muito
particular, tornara-se um impedimento para a arte. Quem ouve muito
uma música já não a escuta mais. A “selvageria”, portanto,
pretendeu apenas raspar a pátina, o verniz, a cera do ouvido de uma
plateia civilizada demais —e Paris, onde o balé estreou, era o
lugar ideal para isso.
Esse processo de superexposição a determinadas
obras de arte explica, também, a importância dos intérpretes em
música clássica. O grande intérprete consegue fazer com que uma
obra já muito conhecida seja descoberta como novidade.
Na música barroca, por exemplo, tudo foi
reinventado a partir dos anos 1960, quando começou a pesquisa pelos
instrumentos originais e por uma nova fidelidade às partituras de
época.
O resultado paradoxal dessa maneira de interpretar
os barrocos (sem verniz, com mais secura e menos calda de caramelo)
foi que Vivaldi e Haendel se tornaram… quase stravinskianos também.
O futuro, sobre o qual indagava o repórter na entrevista com
Stravinsky, chegaria impondo uma revolução sobre o passado.
O próprio Stravinsky se encarregou disso. Depois
da fase “russa” e “bárbara” dos balés com Diaghilev,
reescreveu partituras de Pergolesi (1710-1736), e entrou numa fase
“neoclássica”. O curioso é que uma obra como seu concerto para
violino, por exemplo, apesar de muito menos barulhento e dissonante
do que a “Sagração”, no fundo é ainda mais difícil de ouvir.
Não se traduz em ideias como “violência
primitiva”, “poder telúrico”, “ritmo primal” que nos
ajudam a apreciar a “Sagração”.
Talvez seja uma obra de menor qualidade mesmo. Em
todo caso, o desenvolvimento posterior de Stravinsky não foi, como
dizem, uma “regressão”, uma desistência de qualquer missão
revolucionária que o mestre desempenhara no começo do século.
Ao longo de sua vida, assumindo diferentes
“estilos”, Stravinsky foi se tornando mais reconhecível por quem
ele era, enquanto compositor individual, e menos como um mero
“médium” da crise estética modernista.
Modos de deslocar o ritmo, um gosto cítrico na
instrumentação, a recusa das técnicas de transição, a “montagem”
mais que o desenvolvimento, aparecem em peças menos escandalosas,
mais “civilizadas”, tanto quanto nas escarpas, cavernas e
fogueiras da “Sagração”.
Compositores e intérpretes posteriores se
tornaram “stravinskianos” em alguns momentos, sem que o termo se
reduzisse a ser sinônimo de “modernistas”. Foi um longo caminho
até que Stravinsky se tornasse, afinal, apenas Stravinsky, e não o
equivalente de uma força anônima, a encarnada na “Sagração”.
O compositor sobreviveu ao próprio mito —o que
não deixa de ser um ganho da civilização. Vitórias desse tipo são
raras; vale a pena comemorar.
Mais
Conheça um pouco de Stravinsky aqui http://www.youtube.com/watch?v=lWotpIy0uTg.
Nenhum comentário:
Postar um comentário