quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Os trilhos que dão samba

Cena do filme 'A general', de Buster Keaton

Por Guilherme Bryan
Da Revista da Cultura


Dezenas de pessoas saem correndo desesperadas da sala de um café, com medo de ser atropeladas por um vagão de trem que parece vir na direção delas. Durante muitos anos, assim foi descrita a primeira exibição pública do filme A chegada do trem na estação, realizado pelos irmãos franceses Louis e Auguste Lumière, e marco inaugural, em 1896, da arte cinematográfica. Verdade ou lenda, o fato é que esse meio de transporte esteve muito presente nos filmes realizados na primeira metade do século 20 e nunca mais deixou as telas. Tanto que está previsto chegar aos cinemas no início deste mês o longa-metragem Trem noturno para Lisboa, dirigido por Bille August, a respeito de um professor suíço de grego e latim que pega um comboio para terras lusitanas a fim de investigar a resistência dos portugueses ao regime militar.

Já o faroeste, como gênero cinematográfico, também se valeu das ferrovias. Afinal, muitas cidades dos Estados Unidos, assim como de outros países, incluindo o Brasil, nasceram em torno das estações de trem. É o que pode ser visto em O homem que matou o facínora, dirigido por John Ford em 1962. E, quando esse gênero foi adaptado à cinematografia italiana, ganhando a alcunha de western spaghetti, a construção da ferrovia foi tema do clássico Era uma vez no oeste (1968), de Sergio Leone.

“Era um transporte ultramoderno, símbolo de uma nova tecnologia que mudava o mundo. Nos faroestes, seu uso tem a ver com a época em que as redes de ferrovias estavam sendo implantadas e ampliadas”, explica a crítica de cinema Neusa Barbosa, do portal CineWeb. Ainda nos primórdios da sétima arte, foi realizada a comédia A general, dirigida e estrelada por Buster Keaton, em 1926, a respeito de um jovem que é apaixonado por sua locomotiva e pela namorada. Há também um dos primeiros filmes de aventura, O grande assalto ao trem, realizado por Edwin S. Porter, em 1903.

O trem começou a ser desenvolvido por volta da segunda metade do século 17, quando o jesuíta belga Ferdinand Verbiest criou, na chinesa Pequim, uma máquina autopropulsora a vapor. A ideia foi aprimorada no século seguinte por um militar francês, mas foi apenas em 1804 que o engenheiro inglês Richard Trevithick apresentou uma locomotiva a vapor capaz de puxar dez toneladas de carga, além de 70 passageiros. A velocidade era irrisória para os dias de hoje: apenas 8 km por hora, mas considerada muito rápida na época. Portanto, não foi à toa que, em 2011, ao homenagear outro pioneiro francês da sétima arte, Georges Méliès, em A invenção de Hugo Cabret, Martin Scorsese ambientou a narrativa na estação ferroviária de Montparnasse, na Paris de 1931.

“No gênero poético, há O ilusionista, do Jos Stelling, e Trens estreitamente vigiados, do Jirí Menzel, que trazem vivências emotivas ligadas à ferrovia. Nos filmes de Yasujiro Ozu, como Era uma vez em Tóquio, é muito comum haver alguém chegando ou partindo de trem. Como esquecer Pacto sinistro, do Hitchcock, baseado em história da Patricia Highsmith, um clássico absoluto do suspense? Trem da vida, do Radu Mihaileanu, por sua vez, é um drama de guerra excelente. Trem-mistério, do Jim Jarmusch, e Viagem a Darjeeling, do Wes Anderson, tornam os trens ambientes exóticos, lugares de passagem onde tudo pode acontecer”, destaca Neusa.

O BRASIL DENTRO DOS VAGÕES
Pelo menos um clássico do cinema brasileiro também foi rodado sobre trilhos. Trata-se de O assalto ao trem pagador, dirigido por Roberto Farias em 1962. “Os trens tiveram uma expansão no Brasil que depois foi interrompida. Talvez isso tenha prejudicado que entrassem mais no imaginário de quem faz cinema”, assegura a crítica. Em 1998, Walter Salles Jr. ambientou um filme na famosa estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro, e deu o nome dela à produção, que foi indicada ao Oscar de melhor filme estrangeiro.

A pouca presença dos trens também é facilmente notada na literatura brasileira. Mas podem ser citados dois marcantes poemas: Trem de ferro, de Manuel Bandeira (“Voa, fumaça / Corre, cerca / Ai seu foguista / Bota fogo / Na fornalha / Que eu preciso / Muita força / Muita força / Muita força”) e O maior trem do mundo, de Carlos Drummond de Andrade (“O maior trem do mundo / Puxado por cinco locomotivas a óleo diesel / Engatadas, geminadas, desembestadas / Leva meu tempo, minha infância, minha vida”).

Já na literatura internacional, o trem sempre esteve muito presente, desde as aventuras futuristas do francês Júlio Verne até as histórias do bruxinho Harry Potter, escritas pela britânica J. K. Rowling, passando pelos romances policiais de Agatha Christie (Assassinato no Expresso do Oriente) e Graham Greene (Expresso do Oriente).

A estudiosa Laís da Costa Velho publicou, na década de 1980, o livro Pequena antologia do trem: a ferrovia na literatura brasileira, no qual reúne contos, crônicas e poemas de 50 autores brasileiros em que são mencionados os trens. “O problema é que o trem, que era poesia, aos poucos, foi acabando e sendo substituído pelo carro, o que levou a literatura a também deixar de retratá-lo”, analisa. Entre os autores presentes na obra estão o artista plástico Di Cavalcanti, o crítico literário e ensaísta Agripino Grieco, e o dramaturgo e poeta Aníbal Machado.

O poeta brasileiro Ferreira Gullar era tão encantado com a música do maestro Heitor Villa-Lobos, Trenzinho do caipira, parte integrante das Bachianas brasileiras nº2, que, em 1976, tratou de criar-lhe uma letra, publicada no livro Poema sujo: “Lá vai o trem com o menino / Lá vai a vida a rodar / Lá vai ciranda e destino / Cidade noite a girar”. O trem também representava um símbolo de modernidade, como é possível perceber na tela EFCB (Estação de Ferro Central do Brasil), da artista plástica Tarsila do Amaral.

Desde então, o cancioneiro popular sempre foi recheado de lindas canções a respeito do trem. O “rei do rock brasileiro”, Raul Seixas, compôs Trem das sete e Gonzaguinha abusou da sensualidade das Frenéticas em A felicidade bate à sua porta: “O Trem da Alegria saiu agora. / Partiu nesse instante / da Rádio Nacional, / a gare principal da Central. / Carregado de ioiôs e colares, cocares / miçangas e tangas e sambas para o nosso Carnaval”.

Caetano Veloso é o compositor de pelo menos duas canções com trens – Trem das cores e Naquela estação, parceria com João Donato e Ronaldo Bastos (“Você entrou no trem / E eu na estação / Vendo um céu fugir / Também não dava mais para tentar / Lhe convencer a não partir”). Bastos também é o autor de outros dois clássicos: O trem azul, gravada por Lô, e Seguindo no trem azul, sucesso com o grupo Roupa Nova.

Quando, no início dos anos 2000, a TV Globo realizou uma enquete a respeito de qual canção melhor representava a cidade de São Paulo, a vencedora foi Trem das onze, composta por Adoniran Barbosa em 1964: “Não posso ficar nem mais um minuto com você / Sinto muito amor, mas não pode ser / Moro em Jaçanã, / Se eu perder esse trem / Que sai agora às onze horas / Só amanhã de manhã”. Mais de 40 anos depois, em 2005, o compositor baiano Tom Zé resolveu homenagear o paulista de Valinhos em A volta do trem das onze (8,5 milhões de Km): “De ferro e bronze / O trem das onze / Voltará, / Em Jaçanã bem de manhã / Apitará / Comemoraremos Mato Grosso, eu e Joca / Com Iracema e Arnesto na maloca”.

“Sempre gostei de imitar Adoniran, tal já fizera em Augusta, Angélica e Consolação em 1973”, nos conta Tom Zé. “Às vezes, as coisas acontecem de cabeça pra baixo, creio que foi a rima ‘de ferro e bronze’ para ‘trem das onze’ que puxou o vagão. Achei ‘bronze’ um símbolo de força sonora. Adoniran era uma barra de aço. Delicadeza pura. Qualquer trem pode voar nos trilhos de sua imaginação.”

Com relação a esse meio de transporte, o cantor e compositor lembra: “Na minha infância, até 1940, viajávamos de trem. Andei muito no trem de Juazeiro, indo para Salvador. As rodovias eram estradas de barro, muito raras e, quando havia, eram intransitáveis. Aqui, o lobby automobilístico foi tão forte que destruiu os trens. Somos um país invadido e subjugado. O crime econômico e ecológico da destruição das ferrovias prova isso”.

UM PAÍS SEM TRENS
Muito trilho já passou e foi abandonado desde que o Barão de Mauá mandou construir a primeira ferrovia brasileira, que unia a Baía de Guanabara a Raiz da Serra, em Petrópolis, no Rio de Janeiro, a uma distância de 14 quilômetros – sua inauguração aconteceu em 30 de abril de 1854.

Acredita-se que, em 1916, havia mais de 15 mil quilômetros de linha-férrea no Brasil, sendo a principal a Central do Brasil, a única verdadeiramente nacional, que ligava os estados de Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Merece destaque a estrada de ferro que ligava Santos a Jundiaí, responsável por escoar praticamente toda a produção do café no interior do estado paulista para o mercado internacional.

“No final dos anos 1950, a União recebeu diversos sistemas ferroviários ao final do prazo de validade de antigas concessões ferroviárias de empresas privadas. Essas, há anos, não faziam os investimentos necessários para modernização de suas linhas, que foram devolvidas ao estado sucateadas ou perto disso. Os recursos necessários para sua modernização eram muito elevados”, conta Ayrton Camargo e Silva, assessor técnico da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP). A fim de buscar ações rápidas para diminuir o custo operacional, em 30 de setembro de 1957, foi criada a Rede Ferroviária Nacional, que unia as 42 ferrovias existentes, criando um sistema regional com 18 estradas de ferro, em um total de 25 mil quilômetros, com ligação para Bolívia, Argentina e Uruguai.

“Assim, as ações operacionais focaram na troca da tração de vapor por diesel, e houve a extinção de centenas de percursos operados por trens de passageiros”, garante Camargo e Silva. A partir de 1996, a malha ferroviária foi toda concedida à iniciativa privada para operação exclusiva de trens de carga. Restam apenas duas linhas que operam também trens de passageiros, que são o trecho Belo Horizonte-Vitória, da Estrada de Ferro Vitória-Minas; e São Luís-Carajás, da Estrada de Ferro Carajás. A Estrada de Ferro Campos do Jordão, pertencente ao governo do Estado de São Paulo, opera trens e bondes turísticos entre Pindamonhangaba e Campos do Jordão. Há também ferrovias que operam trens de passageiros em regiões metropolitanas, como as de São Paulo e Rio de Janeiro.

“As ligações ferroviárias exigem pesados investimentos para que seu traçado seja compatível com um alto desempenho operacional”, explica o especialista, que garante que o sistema ferroviário é mais eficiente do ponto de vista energético, muito mais seguro e menos agressivo ao meio ambiente. Mas acrescenta: “Mesmo assim, essas externalidades positivas nunca entram na equação econômica dos sistemas. Com isso, os investimentos tendem a recair exclusivamente para os operadores, que os repassam às tarifas, e aí a conta não fecha”.

Uma das iniciativas mais recentes a favor da revitalização da malha ferroviária brasileira foi o Expresso Turístico, inaugurado em 2009 pela Secretaria de Estado de São Paulo dos Transportes Metropolitanos e pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). “A ideia era implantar um trem turístico, com um serviço baseado nos trens de longo percurso, nas linhas operadas pela CPTM, unindo a capital a destinos com interesse turístico, numa programação de um dia de duração. Escolhemos, então, Jundiaí, Mogi das Cruzes e Paranapiacaba. O sucesso do projeto foi enorme e, até hoje, a fila de espera é de, no mínimo, três meses para a data da viagem com lugares disponíveis”, comemora Camargo e Silva.

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