segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

"Detesto super-heróis", diz o quadrinista Alan Moore

O quadrinista Alan Moore, autor de HQs como "V de Vingança" e "Watchmen"

Por Stuart kelly
Do Guardian
Tradução de Clara Allain

Há um grau de arrogância, uma repentina interrupção da ostentação, quando Alan Moore adentra o escritório um tanto quanto estéril da livraria Waterstones onde concordou em falar comigo.

A barba projetada, os dedos cheios de anéis, a bengala que dá a impressão de que pode ser usada a qualquer instante como vara de condão ou cassetete: Moore parece um irmão desregrado de Hagrid ou um primo indecoroso de Gandalf.

Sua gargalhada seria capaz de derrubar edifícios, embora eu duvide que o homem que reinventou a HQ de super-heróis desejaria esse tipo de poder. Ele está aqui para promover "Fashion Beast", projeto que é incomum até mesmo para sua carreira excepcionalmente idiossincrática.

Idealizado inicialmente pelo lendário mestre punk Malcolm McLaren (1946-2010), "Fashion Beast" foi pensado para ser um filme. Hoje, 28 anos depois, é um livro de quadrinhos.

A história acompanha o relacionamento entre um estilista recluso, Celestine, um aprendiz dele, Jonni Tare, e a modelo favorita dos dois, Doll. Como poderíamos esperar do autor de "V de Vingança", "Watchmen", "A Liga Extraordinária" e "Lost Girls", o livro combina humor satírico e denúncia furiosa, radicalismo político e ambiguidade sexual. O que talvez seja o mais estranho de tudo é que Moore mal consegue se lembrar de tê-lo escrito.

Digo a Moore que é um prazer estar falando com ele sobre um filme não realizado que foi convertido em HQ, ao invés de uma HQ transposta para o cinema. Moore já comentou abertamente, no passado, o desdém que sente pela segunda variedade.

Ele solta seu meio-termo característico entre grunhido e gargalhada e responde: "Foi muito mais agradável no meu ponto de vista, sem dúvida. Meu problema principal com filmes é que não gosto do processo de adaptação, e não gosto especialmente do jeito moderno de fazer adaptações de livros de quadrinhos, em que, essencialmente, os personagens centrais são simples franquias que podem ser reaproveitadas interminavelmente sem qualquer objetivo aparente. Na maioria dos casos, as HQs originais eram muito superiores aos filmes. Neste caso, tudo começou como o primeiro roteiro de filme que já fiz, ou minha primeira tentativa de criar um roteiro de filme. Fiquei satisfeito com o resultado, e acho que Malcolm, também, mas, por circunstâncias alheias a ele e a mim, o filme nunca chegou a ser feito. Ele passou a existir de certo modo num interior esdrúxulo de minha memória".

"Provavelmente nunca seria feito", ele prossegue, "mas, quando meu editor disse que tinha conseguido encontrar uma cópia do roteiro e sugeriu convencer o excelente roteirista Anthony Johnson a fazer a adaptação... eu não sabia se funcionaria, mas me pareceu muito prático, porque eu não teria mão de obra nenhuma. Foi isso o que me atraiu no projeto. Mas então, quando o material começou a chegar, era muito incomum. Para começar, a adaptação foi realmente tranquila. E quando comecei a ver o que Facundo Percio tinha feito com a arte, foi uma experiência fantástica, porque eu já tinha esquecido completamente tudo que tinha alguma relação com 'Fashion Beast'. Foi como ler algo escrito por outra pessoa. Fiquei bem impressionado comigo mesmo. Gostei de verdade". Ele sorri, satisfeito.

Para uma história concebida em 1985, "Fashion Beast" se antecipa a obras posteriores de Alan Moore e dá a impressão estranha de ter sido escrita com conhecimento prévio do que ia ocorrer no mundo nos anos seguintes.

"1985? Não diga!" Moore fala com seu vozeirão, reagindo com olhar de espanto. "Foi há tanto tempo assim? Não me lembrava que tinha sido em 1985, mas tinha admitido que provavelmente era do final dos anos 1980 e tinha ficado surpreso, porque já estão presentes muitas das questões políticas que seriam aprofundadas em outros trabalhos -a política sexual, com certeza. Há também alguns precursores ao meu pensamento mágico; estamos falando da moda como uma atividade quase xamânica. Me surpreendeu muito descobrir que eu já estava pensando nessas coisas naquela época."

Malcolm, diz Moore, estava promovendo o filme como "um cruzamento entre 'A Bela e a Fera' e a vida de Christian Dior. Ele tinha alguns outros elementos também, um pouco como 'Chinatown' e um pouco como 'Flashdance', que me seduziu completamente. Acho que ele esperava que eu contribuísse profundidade política e política sexual a essa mistura".

"Foi Malcolm quem sugeriu que os personagens principais fossem um rapaz que parece uma garota que parece um rapaz, e vice-versa. O estranho é que em 1985, na realidade, ninguém enxergava o mundo da moda sob essa ótica. De lá para cá, a moda e o fascismo se aproximaram: temos John Galliano fazendo seus comerciais do Terceiro Reich, temos Alexander McQueen se matando, temos Versace e aquele perseguidor horrível e violento que o matou. Desde que 'Fashion Beast' foi escrito, quase tudo o que descreve já virou realidade, com a exceção do inverno nuclear, mas acho que estamos trabalhando para isso. A sociedade real em que a história aconteceu é muito mais semelhante à sociedade que temos hoje que com a cultura do jeito como era em 1985."

Malcolm já foi descrito como estilista situacionista [referência ao situacionismo, movimento europeu de crítica social, política e cultural].

Perguntei o que Moore pensa do movimento. Trocamos slogans por alguns minutos ("é proibido proibir", "seja racional: exija o impossível", "uma doença mental se espalhou pelo planeta: a banalização"), e Moore soltou o verbo. "Eu sou muitas coisas", ele diz. "Sinto muita empatia com a posição situacionista. O situacionismo é uma das raízes da psicogeografia."

"Gosto de Jacques Derrida, acho ele engraçado. Gosto de filosofia que vem acompanhada de alguns trocadilhos e piadas. Sei que isso ofende outros filósofos; pensam que Derrida não leva as coisas a sério, mas a verdade é que ele inventa alguns trocadilhos fantásticos. Por que não deveríamos nos divertir um pouco enquanto tratamos das questões mais profundas da mente? Os situacionistas... gosto do estilo deles, gosto de sua atitude, gosto do 'abaixo da rua, a praia'; gosto do fato que o situacionismo foi, basicamente, uma visão mais intelectual e mais artística dos princípios anarquistas. Malcolm era situacionista: na última vez em que conversamos, ele estava tentando fazer música com algumas pessoas a partir de chips de Game Boy. Soava como possível porcaria, mas eu gostava do espírito dele aplicado a tudo. Malcolm era fogoso, era subversivo, e acho que falava a sério."

Seria um equívoco subestimar Alan Moore. Sim, ele pode ter escrito "O Monstro do Pântano", mas o fez enquanto lia filosofia europeia. "Fashion Beast" é sobre influências edipianas -quem pode habitar e subverter a voz do mestre?

Vários escritores reconhecem Moore como influência chave: Neil Gaiman me disse que Moore tornou possível uma geração inteira. "Fashion Beast" é sobre aprendizes e mestres, pupilos e professores. O que Moore pensa sobre isso?

"Não costumo ler muito. Se as pessoas tiram certas inspirações ou talvez se interessam por uma de minhas ideias, não tenho problema com isso, mas é importante que façam disso a voz delas, e não minha voz ou um eco de minha voz. Se ser influenciado por minha obra faz parte de um processo que as conduz a desenvolver suas próprias vozes, fico feliz. Grant Morrison [quadrinista escocês] já admitiu não apenas basear algumas de suas narrativas em meu estilo ou meu trabalho, mas também ganhar fama por me criticar sempre que aparece uma oportunidade para isso. Eu o ignoro."

Quando menciono que Geoff Johns escreveu uma série inteira de "Lanterna Verde" baseada em seu conto "Tygers", Moore se irrita.

"Veja bem", diz ele, "não li nenhuma HQ de super-heróis desde que terminei 'Watchmen'. Detesto super-heróis. Acho que são abominações. Eles não significam o que significavam no passado. Originalmente, estavam nas mãos de escritores que expandiam ativamente a imaginação de seu público, na faixa dos 9 aos 13 anos. Era o que eles deviam fazer, e o faziam muitíssimo bem. Hoje em dia, as HQs de super-heróis acham que seu público não tem entre 9 e 13 anos -as histórias não têm nada a ver com essa idade. É um público composto principalmente de pessoas de 30, 40, 50 e 60 anos, geralmente homens. Alguém criou o termo 'graphic novel'. Esses leitores aderiram ao termo; simplesmente queriam algo que validasse seu apego contínuo a 'Lanterna Verde' ou 'Homem Aranha', sem que eles parecessem de alguma maneira ser emocionalmente subnormais. Essa é uma parte importante do público viciado em super-heróis, viciado no mainstream. Não acho que o super-herói represente algo bom. Acho um sinal meio alarmante o fato de termos plateias de adultos que vão ver os filmes 'Os Vingadores' e se deleitam com conceitos e personagens criados para agradar a garotos de 12 anos na década de 1950."

Tendo visto HQs convertidos em filmes e roteiros de filmes convertidos em HQs, Moore está mais preocupado com sua obra de ficção "Jerusalém".

"Estou trabalhando sobre o último capítulo oficial, que estou fazendo um pouco ao estilo de Dos Passos. Deve estar concluído até o final do ano ou perto disso. Não sei se mais alguém vai gostar."

Digo que chama a minha atenção o fato de o estilo dele, e o de gente como Iain Sinclair e Michael Moorcock, ter virado central na cultura literária. Moore solta um suspiro, fazendo as paredes tremer: "Será que sim? Oh, não, nós viramos o mainstream!".


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