quinta-feira, 5 de junho de 2014

Metamorfose contemporânea


Por Gabriela Soutello
Da Revista Cult

Alguém certamente teria caluniado Franz Kafka – caso ele ainda fosse vivo –, pois uma manhã ele foi acusado sem ter feito mal algum. A estrutura da modernidade sobre a qual escrevia o autor há cerca de cem anos acabou por se refletir em páginas atuais, no mundo contemporâneo, em um estado de presença provavelmente parecido com o realista do século XX – tanto menos ou mais absurdo. A sentença a ser cumprida por Kafka, 90 anos após sua morte, é a de continuar sendo lido como o anunciante do novo século.

Ao lado de Marcel Proust e James Joyce, Franz Kafka foi um dos maiores autores realistas do século passado. Imagético, expressionista e neurótico, escreveu efervescentes obras em um alemão límpido e protocolar diante da atmosfera pré-fascista que se estabelecia na Europa. Não havia espaço para discutir direitos humanos e a liberdade era, ao mesmo tempo que essencial e requisitada, frágil. Kafka nos mostra a partir de seus personagens, quase sempre subalternos a engrenagens autoritárias cujas ordens não conseguem compreender, uma realidade mecânica na qual prevalecem o automatismo raso, o medo e a perda de identidade. Humilhado e anônimo, resta ao heroi kafkiano o esforço de compactuar com esse universo onde viver é como arrastar-se sobre um pesadelo. A tentativa, no entanto, resulta na ilusão: frustrados e inadaptáveis, os personagens são incapazes de entrar em compromisso.

Diferentemente de Joyce, Kafka explora o panorama desse mundo intranquilo por meio do simbólico. Por isso, é comum encontrar em suas obras imagens que não dizem, mas que querem dizer, e forram na narrativa uma atmosfera  enigmática. Para Modesto Carone, escritor bastante influenciado por Kafka, de quem traduziu todas as obras de ficção para a editora Brasiliense – com exceção das duas primeiras, as quais ele considera “pré-kafkianas”-, a postura do narrador se dá por uma técnica admirável: “É um narrador que não sabe como nem por que motivo as coisas acontecem, e ele obriga o leitor a também não entender o sentido daquilo”.

Legado onipresente
Ainda que os fatos narrados por Kafka sejam oníricos, o autor os expõe de maneira óbvia, dada sua própria linguagem burocrática. É por isso que, em A Metamorfose (1915), ser uma barata acaba não parecendo tão monstruoso assim. Carone explica: “Kafka é um paradigma da literatura moderna porque retrata aquilo que todos nós conhecemos: a nossa própria alienação, o deslocamento do homem no mundo contemporâneo”. Marcelo Backes, escritor e também tradutor das obras do autor, mas para a LP&M pocket, afirma que Kafka percebe esse estado universal de alienação e o descreve com suposto descaso em seu diário: “A Alemanha declarou guerra à Rússia. À tarde, escola de natação”. Para o tradutor, “a indiferença parece extrema, mas a compreensão do mundo, ainda assim, é a maior imaginável”.

“Ele tem uma escrita límpida e inteligível que se encaminha para o que é inteiramente obscuro, indevassável”, afirma Carone. O tradutor reitera a prosa kafkiana, repleta de advérbios, como “seca, mas carregada de sentido e de uma intensidade excepcional”. Backes, por sua vez, considera Kafka “um desses escritores que concedem seus olhos para que possamos ver melhor inclusive dentro de nós mesmos, entendendo a alma aqui dentro e o mundo lá fora, em processos de perturbação”.

Uma trágica história (familiar)
Nascido em Praga no ano de 1883, no império Austro-Húngaro, atual República Tcheca, Franz Kafka tinha dificuldade de se relacionar e costumava sentir-se à parte do mundo. Formou-se em direito porque seu pai não permitiu que cursasse filosofia, e trabalhou como funcionário público em uma companhia de seguros por anos, até se demitir quando contraiu tuberculose. Com o repertório concebido a partir da advocacia, Kafka era um assíduo observador de (in)justiças, fossem elas nos tribunais ou em qualquer relação não horizontal, como era dentro de sua própria casa.

Seu pai foi um dos maiores – se não o maior – exemplos diretos de autoridade, atingindo sua obra e certamente sua vida. Hermann Kafka é descrito pelo filho como egoísta e exigente e, segundo Modesto Carone, a relação dos dois sempre foi conflitante. “Isso lhe serviu para mostrar que o homem autoritário dos nossos tempos pode resultar em um líder fascista”, afirma o tradutor. “Ele viveu essa repressão dentro de casa, mas o particular tornou-se universal: Hoje o autoritarismo continua presente, em plena luz do dia”. Essa conturbada relação com o pai pode ser observada na maioria das obras do autor, entre elas O Veredicto (1912), O Processo (1925), O Castelo (1926) e Carta ao Pai, escrita em 1919, onde o escritor descreve essa convivência em intensa exposição. É Sigmund Freud quem diz que adoraria ter curado Kafka da relação obsessiva de amor e ódio que ele exercia com o pai.

Tímido, confuso e crítico, o autor chegou a se relacionar com algumas mulheres e inclusive a noivar, mas, a cada vez que se sentia cobrado, se afastava. Sua vida foi um infortúnio de frustrações frente a um mundo administrativo, e era na literatura que ele se depositava, explorando a existência. “Kafka sempre viveu sozinho, fechado dentro de si”, afirma Backes. Enquanto vivo, sua obra foi pouco descoberta, já que a maioria de seus clássicos acabou sendo publicada somente após sua morte, por Max Brod, escritor, jornalista e amigo próximo do autor, a quem ele teria pedido que queimasse todos os seus manuscritos.

“Era uma exclusão total”, adverte Carone. Certa vez, em uma carta enviada à escritora Milena Jesenska, com quem se relacionou, Kafka escreve: “Creio realmente estar perdido para a convivência com os seres humanos”. O autor também dizia que tudo o que não fosse literatura o aborrecia. Esse sentimento de exclusão, quando refletido em sua obra, como afirma Carone, reitera a atualidade do autor: “é uma experiência muito humana e muito moderna. Todos nós parecemos estar aqui sem saber bem por quê”.

“Kafka é feito um homem que esquia no cascalho, para provar com cambalhotas e arranhões àqueles que pretendem que o cascalho é neve, que não se trata, realmente, de outra coisa senão cascalho”, diz o jornalista e filósofo alemão Günther Anders, que classifica o autor como um “artista da neurose contemporânea”. Marcelo Backes acredita que a exposição de Anders “define com precisão o realismo doloroso da arte literária de Kafka, que tem um forte índice de invocação interior, inclusive no mal-estar que desperta em nós”. Para Modesto Carone, o fato de Kafka não nos dar soluções, mas levantar problemas é uma importante característica literária do escritor. “E há mais”, ele ressalta: “talvez Kafka seja o último dos escritores que nos faça sofrer. Porque todos nós sofremos com o destino de Gregor Samsa em A Metamorfose. Afinal, aquele inseto existiu ou não?”.

Kafka morreu em 3 de junho de 1924. Se, para Clarice Lispector, em A paixão segundo GH (1964), comer a massa branca e viva de uma barata era necessário para o encontro consigo mesma, para Kafka a transformação metafórica no grotesco é também um passo para o próprio conhecimento ontológico: sentindo o incômodo de um corpo estranho de inseto e a inadequação em um mundo de desumanos, Gregor Samsa incorpora a metáfora e é, ele mesmo, a barata. Carone afirma que “o centro de irradiação dos conteúdos de verdade de sua obra surge a partir da existência humana, e não da fixação cósmica”. Para ele, Kafka é um grande realista do nosso mundo, que transcende os séculos para continuar sendo interpretado. O próprio Carone assume que ainda hoje se surpreende com os livros de Kafka. “Sua obra é como uma folha de aço, fina e flexível, capaz de romper a parede que nos separa da verdade. E é por isso que nós continuamos falando dele hoje”, diz.

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