segunda-feira, 2 de junho de 2014

Jogos e joias na obra de Chico Buarque


Da Ilustríssima
Por Carlos Rennò


RESUMO Ao longo de sua carreira como compositor-letrista, Chico Buarque fez uso constante do recurso poético da aliteração, tanto em seus sambas de conteúdo social quanto nas canções sensuais. Mas seus jogos de palavras vão além, e se assemelham ora a dribles do futebol-arte, ora a canções de trovadores da Idade Média.


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Chico Buarque sempre foi um grande cultor das aliterações. Desde o início do seu longo percurso de compositor-letrista fora de série, ele se notabilizou pela mestria no emprego delas, como comprova um de seus primeiros sambas de conteúdo social e grande expressão, Pedro Pedreiro (1965).

A luxuriosa Não Existe Pecado ao Sul do Equador, parceria com Ruy Guerra de um pouco mais tarde (1972), clássico que integra outra vertente importante da obra de Chico, a das canções sensuais, ricas em sugestões sexuais, também é balizada por palavras aliterantes.

Embora com o tempo as aliterações tenham se tornado menos frequentes em sua obra, nem por isso Chico deixou de praticá-las com assiduidade. Na verdade, economizou esteticamente o seu uso.

Assim, por exemplo, Iracema Voou (1998) apresenta, sobre a suavidade das frases melódicas, duas passagens assinaladas respectivamente por delicados eles (levemente entremeados de pês) e chs. Ambos muito apropriados para colaborar para a transmissão do sentimento de ternura, investida de alguma ironia, para com a personagem do título: Leva roupa de lã/ E anda lépida/ [...] Lava chão numa casa de chá.



Desde que o linguista e crítico Roman Jakobson, ao lado de outros nomes do formalismo russo, se dedicou sistematicamente ao estudo dos efeitos sonoros na poesia, as aliterações e outros jogos de palavras e sons se constituem como recursos definidores da especificidade da linguagem poética.

Se isso vale para toda poesia, é ainda mais válido quando se trata da melopeia, a modalidade em que a seleção vocabular se orienta pela propriedade musical dos termos, em que eventos sonoros como paronomásias, rimas inclusas, desempenham papel fundamental.

Normalmente, no entanto, tem-se uma concepção bastante limitada da qualidade estética das aliterações. Para a maioria, elas são indistintamente vistas tão só como uma proliferação ornamental de fonemas com sons idênticos ou parecidos. Na obra de Chico, porém, há uma abundância de demonstrações do emprego artístico superior desse procedimento.

As aliterações podem vir com anagramas, como em A Rita (1965): [Levou seu retrato,] seu trapo, seu prato. Ou na citada Iracema Voou (de um período em que as aliterações, como as rimas, já se rarefaziam e se refinavam): Não domina o idioma inglês (imperfeito, sim, mas bom).



Ou então se constituir de palavras de um mesmo campo semântico, estabelecendo o que poderia ser visto como aliterações de som e de sentido. Veja-se este verso, de Mambembe (1972): Mendigo, malandro, moleque, mulambo, bem ou mal. Ou estes, de Ana de Amsterdam (1972/3): Sou Ana do dique e das docas; Da cama, da cana, [...] bacana (sacana). De Jorge Maravilha (1974), [Ela gosta do tango, do dengo,] do mengo domingo.... Ou, de Feijoada Completa (1977), este: Uca, açúcar, cumbuca de gelo, limão. Perfeitos, não?

Mas o grau de complexidade e originalidade na aplicação desse recurso não fica por aí, havendo ocasiões em que os sons dos trechos aliterantes chegam a remeter ao significado deles, promovendo um isomorfismo de especial valor.



O povaréu sonâmbulo/ Ambulando/ Que nem muamba/ Nas ondas do mar: nessa passagem de Carioca (de 1998) podemos ver (tendo como referência as latas de maconha que tinham sido descobertas boiando nas águas do Rio, os versos, além do mais, são de uma força imagética a toda prova) as pessoas, de manhãzinha, a perambular ante nossos olhos ainda não plenamente despertos.

E o que dizer das linhas de Morena de Angola (1980)? Quase toda ela chiante, a letra, literalmente, efetivamente, chocalha do começo ao fim, tal e qual a musa sensual e militante que ela canta e que leva o chocalho amarrado na canela, deixando o poeta indeciso se ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela.


RIMA

Chico trata a palavra cantada como o craque de futebol trata a bola; com o mesmo carinho, a mesma classe. E nesse tratamento explora as imensas possibilidades sonoro-criativas da nossa língua, o português brasileiro.

Um artífice da palavra do quilate de Chico Buarque não apresentaria uma concepção comum de rima. Nesse sentido, alguns exemplos são bastante ilustrativos, constituindo pequenas joias a descobrir em sua obra.

Observe-se o que sucede na já referida Iracema Voou, canção que refletiu a onda da mudança de brasileiros, na segunda metade da década de 90, para o exterior, mais precisamente para os Estados Unidos. Muito a propósito, Chico escolheu para a sua imigrante o nome, anagrama de América, da personagem do romance romântico de José de Alencar.

A letra, toda ela composta com rimas imediatamente identificáveis, finaliza, contudo, com uma que, a princípio, se hesitaria em classificar como tal: Me liga a cobrar/ - É Iracema da América. Porém, no plano da canção, da palavra cuja razão de ser é ser cantada e ouvida, os vocábulos rimam porque o final da frase musical sobre o qual se justapõe o termo América impõe uma acentuação não só sobre a antepenúltima sílaba do topônimo, mé, mas também sobre a última, ca. Na prática, o que se canta é Américá.

Tal tipo de rima, entre oxítona e paroxítona, não é usual em canções em português, mas em inglês é -tanto em letras de música quanto em poemas. Não é interessante que, numa canção popular tematizando a vida que uma cearense está levando na maior nação do mundo em que se fala o inglês, a última rima, e justamente a última, seja de uma espécie incomum no nosso idioma e comum em canções e poemas daquele?

Vejamos agora uma outra canção do repertório de Chico, relacionada com outro território e a outra língua: Cuba; o espanhol.

Loa ao país da revolução conduzida por Fidel Castro pelo ideal de justiça social que inspirava, Maravilha (1977), baseada em rimas completas, consoantes, apresenta excepcionalmente no final uma rima toante, incompleta: primavera/ terra. Ou seja, fecha com uma rima típica da poesia em língua espanhola, encontrável em centenas de canções cubanas, em que a toante é rima convencional, muito antes que no nosso português; antes de João Cabral, das letras do tropicalismo (Capinan, Caetano) e do rock dos anos 80.

(Um detalhe a mais: em espanhol, as palavras primavera e tierra formam uma rima consoante, como as demais da letra.)

TROVADOR

Esquemas rímicos como os adotados por Chico em Paratodos (1993) e A Rosa (1979) fazem pensar em poemas trovadorescos, da Idade Média (os quais, aliás, eram todos cantados, razão pela qual recebiam o nome de canções). Nenhum exemplo, no entanto, se compara, em sofisticação, ao sistema empregado em O Futebol (1989). A singularidade dessa canção, até onde sei não tem, pela radicalidade da aplicação, paralelo no campo das letras de música popular, só encontrando referência, de novo, na erudição dos trovadores medievais.



Sem contar o quarteto final, que faz as vezes de coda, a canção se divide em três estrofes de 14 versos, nas quais os 8 primeiros têm rimas cruzadas (ABABCDCD) e os 6 seguintes parecem não rimar.

De fato, metade destes não rimam dentro da estrofe, mas sim entre uma e outra, na mesma posição (o som do final do nono verso de uma estrofe ecoando no final do novo verso das estrofes seguintes, e por aí vai). Tais rimas, chamadas separadas ou isoladas, para as quais se exige uma perícia maior, foram postas em prática pioneiramente por Arnaut Daniel, poeta provençal que Dante Alighieri considerou o melhor dos trovadores.

É óbvio que a percepção dessas rimas, pela distância em que se acham seus termos um do outro, não se faz normalmente de uma primeira ouvida, nem sequer de uma primeira lida, no papel. Mesmo assim não é fácil fazer a descoberta de um detalhe a mais que o artista parece ter deixado, caprichosamente, para o final.

Do 9º ao 14º verso, três finais de versos rimam com outros interestroficamente; as exceções ficam por conta do 10º (sempre concluído com um nega na função de vocativo), do 12º (que termina sempre com um gol) e do 14º. Entre este e o 10º, no entanto, estabelece-se uma rima, de mais difícil detecção -mais exatamente entre a última palavra do verso 14 e, quase ocultamente, a penúltima do verso 10 (que vem sempre seguida do termo nega).

Na primeira estrofe esse par é formado por pinacoteca, [nega] e seca. Na segunda, entre minha [nega] e linha. Na terceira, contudo, nos defrontamos, nos mesmos pontos, com as palavras capenga, [nega] e ginga, o que, de cara, pode causar um estranhamento. Afinal, numa letra inteiramente feita de rimas perfeitas, uma imperfeita no final soaria como uma peça com defeito numa máquina poética que até então se mostrou sem falha.

Mas aí é que está: dando-se entre ginga e capenga, a própria rima afirma-se e se assume, na sua concretude e materialidade mesma, capenga, manca, defeituosa. O que a justifica plenamente, em termos estéticos. Um nome para isso -usado, aliás, na cobertura futebolística- é preciosismo.

Só que esta constitui apenas uma entre várias outras firulas poéticas que, para tirar efeito igual/ ao jogador,/ qual/ compositor (Qual, verso monossilábico rimado: mais um drible!), Chico faz nessa letra. E todas elas justificadas, por se tratar afinal de uma canção sobre o futebol brasileiro, mitologicamente considerado o futebol-arte, o futebol-poesia, como Pasolini o classificou.

Outra mais? Palavra-chave no texto -assim como no próprio esporte (como a canção vem nos revelar), em que a bola é sempre passada de um jogador para o outro-, para aparece, seja como preposição, seja como antepositivo de verbo ou substantivo (parafusar, paralela, parábola, paralisando), 13 vezes nas 3 estrofes, mais 8 vezes na coda (Para Mané para Didi para Mané...) e uma na dedicatória (Para Mané, Didi, Pagão, Pelé e Canhoteiro, o ataque dos sonhos de Chico): ou seja, 22 vezes na soma, o mesmo número total de jogadores de uma partida...

O nível do desempenho técnico, bem como o grau de criatividade e fantasia poéticas exibidas em O Futebol, estende-se ainda à seleção e organização das peças vocabulares que se juntam na letra.

Trata-se de um apanhado de termos e expressões provenientes da semântica do jogo, da crônica esportiva inclusive: estufar o filó, Rei (Pelé), efeito, firula, pintura, folha seca, joão (como Garrincha chamava seus marcadores), lateral, finta, contrapé, avançar, corredor, homem-gol, rasgando, costurando, linha, chapéu, gerais (que não existem mais nos estádios, agora arenas em cujas arquibancadas mal se veem pretos e não se veem pobres), catimba, ginga...

Nota
Este texto é uma versão adaptada para a Ilustríssima de ensaio inédito sobre Chico Buarque. O texto original estará em O Voo das Palavras Cantadas (Dash, R$ 42, 320 págs.), coletânea em que Carlos Rennó reúne artigos sobre canção. O livro será lançado em São Paulo no dia 11, às 19h, na Livraria Cultura do shopping Iguatemi.


CARLOS RENNÓ, 58, letrista e jornalista, é autor de versões brasileiras de canções de Cole Porter, como Façamos (Vamos Amar), gravada por Chico Buarque e Elza Soares, e do livro Cole Porter - Canções, Versões (Pauliceia).

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