segunda-feira, 9 de junho de 2014

Dolores nunca sai de moda



Por Danilo Casaletti
Fotos Diler e Divulgação
Da Revista da Cultura

35 canções compostas e pelo menos dez clássicos eternizados na história da música popular brasileira. A noite do meu bem, Solidão, Se é por falta de adeus, Castigo, Ternura antiga, Por causa de você, Estrada do sol... Assim pode ser resumida a breve carreira da cantora e compositora Dolores Duran, que morreu em 1959, com apenas 29 anos de idade.

Nascida no centro do Rio de Janeiro e criada no subúrbio da cidade, Dolores – que na verdade se chamava Adiléia Silva da Rocha – começou a cantar e atuar no teatro ainda menina. Enfrentou o exigente Ary Barroso e foi aprovada em seu programa de calouros na Rádio Tupi. Autodidata, cantava perfeitamente em alemão, espanhol, esperanto, francês, inglês e italiano, o que lhe garantiu passe livre para os palcos das melhores boates do Rio de Janeiro da década de 1950.

Mulher à frente de seu tempo, não só pela maneira como se manifestava em suas letras, mas também no comportamento, Dolores ignorava os problemas no coração adquiridos depois de uma febre reumática, aos 8 anos de idade. Fumava três maços de cigarro por dia e adorava virar a noite bebendo e batendo papo com os amigos. Depois de uma noitada dessas, chegou em casa às sete da manhã de 24 de outubro de 1959. Brincou um pouco com a filha adotiva Maria Fernanda e, antes de se deitar, recomendou para a empregada: “Não me acorde, estou cansada. Quero dormir até morrer”. Foi o que aconteceu. Dolores morreu dormindo, vítima de um infarto fulminante.

Ao longo dos anos, suas canções foram revisitadas por diversos nomes da música brasileira. Por causa de você, um de seus maiores sucessos, parceria com Tom Jobim, foi vertida para o inglês e gravada por Frank Sinatra com o título de Don’t Ever Go Away. A obra de uma das primeiras letristas da música brasileira, que antecipou a bossa nova, jamais caiu no esquecimento, ao contrário de alguns de seus contemporâneos. Em todas as décadas após a sua morte, pelo menos um tributo lhe foi prestado. É a compositora mulher mais gravada no Brasil, superando Rita Lee.

Nina Becker – ex-Orquestra Imperial – é a mais nova a se aventurar pelo repertório da compositora. No recém-lançado Minha Dolores, a cantora enfileira 14 canções compostas ou gravadas por Dolores ao longo de sua pequena carreira. O trabalho destoa dos tributos prestados por outros artistas e deixa de fora os grandes sucessos, valorizando o lado menos conhecido de Dolores. “Não queria fazer um songbook. Cantei as canções que mais gostava de ouvir na voz dela”, diz a cantora, que assina a direção musical do projeto. Entre as preferidas de Nina estão Tradição, Estatuto de boate e Carioca 1954. Da safra mais famosa, entraram apenas Solidão e Estrada do sol, que será distribuída como faixa bônus no iTunes.

Nina optou pelo acompanhamento de apenas dois músicos: Lucas Porto (violão 7 cordas) e Luís Barcelos (bandolim). “Queria trazer para o disco o clima do samba e do choro. Eles preencheram as melodias. Parece que estou cantando com uma orquestra”, diz.

A relação de Nina com Dolores é antiga. Vem desde a sua infância, quando, por influência do padrasto, o maestro Roberto Gnatalli, começou a ouvir as cantoras da era pré-bossa nova, como Aracy de Almeida, Dalva de Oliveira e Elizeth Cardoso. “Muita gente acha o samba-canção cafona. Eu adoro”, diz Nina, de 39 anos, que há tempos canta uma ou outra canção de Dolores em seus shows, e que faz questão de amenizar o peso que dão à obra da compositora. “Mesmo na tristeza, Dolores tinha senso de humor. ‘Ai, a solidão vai acabar comigo’. Tem algo de não se levar muito a sério, não é?”, diz.

Fossa não, poesia!

O jornalista e pesquisador Rodrigo Faour também enxerga Dolores muito além das letras de suas canções e das esfumaçadas boates de Copacabana dos anos 1950. Autor da biografia Dolores Duran – A noite e as canções de uma mulher fascinante, Faour, ao entrevistar dezenas de amigos e companheiros de trabalho da cantora e compositora, tomou contato com a personalidade da artista. “Era alegre, de bem com a vida, contava piadas. Não era uma coitadinha”, diz, reforçando o desejo de uma amiga muito próxima de Dolores, a também cantora Marisa Gata Mansa (1938-2003), que certa vez declarou: “Temos que parar de defini-la como ‘a imperatriz da tristeza’. Ela era uma poeta sensível”.

A atriz Soraya Ravenle protagonizou, em 1999, o musical Dolores, que ficou um ano e três meses em cartaz no Rio de Janeiro e em São Paulo, e concorda que a imagem que fazem da compositora é errada. Para compor a personagem, ela mesma foi entrevistar amigos e parceiros de Dolores, como a cantora e atriz Julie Joy (1930-2011) e o compositor Billy Blanco (1924-2011). “Descobri que ela era uma pessoa leve, imitava tipos para os amigos”, diz. “Dolores tinha consciência de seus problemas, mas não fazia deles um fardo para a vida”, completa Soraya.

Se a música de Dolores falava de amores rompidos, abandono e solidão, é porque a época pedia, mas isso não definia exatamente o seu estado de espírito. “O Tito Madi compôs o clássico Chove lá fora com um sol de meio-dia na rua”, conta Faour, fazendo uma comparação com um compositor contemporâneo de Dolores, cujo maior sucesso de carreira traz os versos “A noite está tão fria/Chove lá fora/E essa saudade enjoada/Não vai embora/Queria compreender por que partiste/Queria que soubesses como estou triste”.

Era isso que os boêmios procuravam nas noites cariocas, entre uma tragada e outra de cigarro e, claro, uma boa dose de whisky. E, embora à época ainda houvesse preconceito com esse tipo de ambiente, eram os mesmos sambas-canção ouvidos nas boates que eram admirados nos ditos lares de família, em um tempo no qual os casais gostavam de dançar juntinhos, mesmo que fosse na sala de casa.

Dolores soube muito bem explorar esse universo. Na sua pequena discografia – foram apenas quatro discos oficiais de carreira, além de alguns compactos – há os LPs Dolores canta para você dançar (volumes 1 e 2), lançados em 1957 e 1958, respectivamente, nos quais interpreta músicas de compositores brasileiros como Noel Rosa, Billy Blanco e David Nasser, além de sucessos internacionais, entre eles o italiano Volare (Nel blu dipinto di blu) e o americano An Affair To Remember, tema do filme Tarde demais para esquecer (1957). Foi no primeiro volume de Dolores canta para você dançar que ela gravou pela primeira vez uma composição sua, Por causa de você, feita em parceria com Tom Jobim.

A obra completa de Dolores foi lançada por Faour na caixa Os anos dourados de Dolores Duran, produzida em 2010. O produto, segundo o biógrafo da artista, surpreendeu pela procura, sobretudo por ter sido lançado em uma época na qual as venda de CDs já cumpriam uma trajetória de queda e por não se tratar de grande mídia. Nos três primeiros meses após o lançamento, 1.500 unidades foram vendidas. “Até a gravadora ficou surpresa. Tudo o que faço sobre Dolores tem boa procura. Ela é muito querida”, diz.

Faour prepara mais um lançamento sobre a artista: CD e DVD gravados ao vivo com convidados interpretando a obra da compositora, entre eles o músico João Donato, que foi noivo de Dolores, e Ângela Maria, para quem a amiga chegou a prometer a canção A noite de meu bem. A previsão é de que esteja no mercado no segundo semestre deste ano.

Homenagem para superar o trauma

O primeiro grande tributo à obra de Dolores foi lançado em 1960, um ano após a sua morte. Denise Duran, sua irmã mais nova e cantora bissexta, juntou-se a Marisa Gata Mansa em Canções e saudades de Dolores. O disco trazia faixas como Tome continha de você, Noite de paz e Não me culpe. Uma raridade da música brasileira, jamais reeditada em CD ou digitalmente.

O disco, durante muitos anos, ficou ‘proibido’ de tocar na casa de Denise. Assim como qualquer outro de Dolores. Era difícil para ela conviver com a falta da irmã. Vez ou outra, o marido de Denise, o músico Dave Gordon, insistia para ouvir alguma faixa.

A superação veio em 2005, quando a filha de Denise, a cantora Izzy Gordon, recebeu um convite para gravar seu primeiro CD. A proposta era fazer um tributo a Dolores. Foi preciso pesquisar repertório e tomar intimidade com as canções. Izzy, claro, sabia sobre a obra e a importância da tia, que não chegou a conhecer, mas contou com a ajuda da mãe, que, inclusive, concordou em acompanhá-la na faixa Pela rua. O álbum, chamado Aos mestres com carinho: Homenagem a Dolores Duran, recebeu uma pré-indicação ao Grammy Latino. “Já cantava havia muitos anos, mas essa foi minha estreia em disco. Foi uma felicidade. Deu-me boa sorte na carreira”, diz Izzy, que, depois desse trabalho, já lançou outros dois e cantou para Bono e Paul McCartney.

Com isso, Denise passou, aos poucos, a se reaproximar mais não só das músicas, como também da história de Dolores. Além de dar depoimentos para a biografia escrita por Rodrigo Faour, leu todo o texto antes da publicação, colaborou com o máximo de informações que tinha e, em 2010, participou de um disco tributo concebido pelo produtor Thiago Marques Luiz, no qual interpretou Minha toada.

Amigos, discípulos e novas leituras

A lista de artistas que interpretaram Dolores Duran ao longo dos anos é enorme: Nora Ney, Ângela Maria, Nelson Gonçalves, Elizeth Cardoso, Maysa, Elis Regina, Clara Nunes, Carlos Lyra, Gal Costa, Nara Leão, Maria Bethânia, Alcione, Sylvia Telles, Marina Lima, Milton Nascimento, Roberto Carlos, Leny Andrade, Leila Pinheiro, Simone, Zizi Possi, Fafá de Belém, Paulinho Moska, Vanessa da Mata e Fernanda Takai, só para citar alguns nomes.

Pouco tempo depois da morte da compositora, Lúcio Alves (1927-1993) começou a gravar uma homenagem para a amiga de noites cariocas. Em 1960, lançou A noite do meu bem, já reeditado em CD, no qual cantava acompanhado por uma turma de ouro da música brasileira, como o violonista Baden Powell (1937-2000), que havia sido namorado de Dolores, e o pianista Luís Carlos Vinhas (1940-2001).

Em 1969, o pianista Ribamar (1919-1987), parceiro de palco de Dolores e coautor dos clássicos Pela rua, Quem sou eu?, Ideias erradas e Ternura antiga, esta última póstuma, também prestou a sua homenagem. No mesmo ano, a cantora paulistana Isaura Garcia (1923-1993) fez a inusitada junção de Dolores e Martinho da Vila, este em início de carreira, em um mesmo disco. Fazendo jus à alcunha de ‘a personalíssima’, Isaurinha alternou faixas como o samba Casa de bamba, de Martinho, com a sofrida Solidão, de Dolores.

As canções dela também foram parar no teatro. Em 1970, a peça Brasileiro profissão esperança, com o ator Ítalo Rossi (1931-2011) e a cantora Maria Bethânia, tinha como base as criações da compositora e de Antônio Maria (1921-1994). Quatro anos depois, Clara Nunes e Paulo Gracindo remontaram o espetáculo com grande sucesso, o que valeu um registro em disco. Na década de 1990, mais uma versão, dessa vez com Bibi Ferreira e Gracindo Jr. como protagonistas, e mais um álbum, que acaba de ser relançado.

Em 1994, foi a vez de Nana Caymmi lançar seu olhar para as composições de Dolores. Batizado de A noite do meu bem – As canções de Dolores Duran, o álbum é um dos grandes sucessos da carreira da cantora carioca. Com o repertório bem parecido ao dos demais tributos, o trabalho se destaca pela emocionada interpretação de Nana e pelos arranjos de Dori Caymmi em algumas faixas, além da participação de Tom Jobim ao piano em Por causa de você, uma de suas três parcerias com a artista.

A obra de Dolores, apesar de ter sido feita antes da bossa nova, o grande marco da modernização da música popular brasileira, não envelheceu. Já recebeu ares pop, como o registro feito por Marina Lima, em 1979, que abriu seu primeiro disco de carreira, Simples como fogo, com uma versão de Solidão. Uma espécie de aviso: uma nova compositora mulher na música brasileira que, assim como Dolores, não teria medo ou receio de julgamentos ao expor seus sentimentos. Luiza Possi fez algo parecido com a mesma música em 2013, no CD Sobre o amor e o tempo, seu mais recente trabalho.

“Posso falar em nome da minha mãe, da minha família: ficamos muito contentes cada vez que um artista da nova geração grava Dolores. É sinal de que a obra dela está viva e que permanecerá assim por muito tempo”, diz Izzy Gordon.

Mas por que as canções de Dolores continuam a despertar sentimentos mais de meio século após a sua morte? “Ela era direta. Tinha uma maneira muito coloquial de passar suas mensagens. E, apesar de compor sambas-canção, fez tudo com muita leveza. Mesmo as pessoas gravando sempre as mesmas canções, não enjoa”, analisa Rodrigo Faour. “Talvez possamos compará-la com Rita Lee, mas esta trouxe, além do coloquialismo, o humor. Já Dolores não teve tempo de desenvolvê-lo em suas letras”, completa.

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