quarta-feira, 31 de julho de 2013

O filósofo e a justiça

  Sandel em seu universo, a sala de aula


Por Marcos Coronato
Da Revista Época


O bilionário fundador da Microsoft, Bill Gates, ganha dinheiro tão rapidamente que pode fazer mau negócio se parar para pegar uma nota de US$ 100 que encontre no chão. Numa sociedade com desigualdade crescente como a americana, é justo que Gates ganhe tanto assim? Não seria bom para todos cobrar dele mais impostos, a fim de melhorar a situação dos pobres? Mas transferir para outros o dinheiro que Gates ganha legalmente não equivaleria a obrigá-lo a trabalhar de graça, algo que a sociedade decidiu há muito tempo acabar, ao abolir a escravidão? Se as perguntas despertam em você a vontade de argumentar, aqui vai uma dica: não há resposta certa.

Dissecar dilemas morais e éticos como esse, sem nenhuma preocupação em definir o lado certo e o errado, é um dos programas de verão mais disputados por estudantes da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, desde 2004. À frente da classe, com a mão firme de um cirurgião revelando camadas e mais camadas de cada questão proposta, está Michael Sandel, filósofo, escritor, palestrante, fenômeno de popularidade e – seu papel mais importante – professor que consegue níveis impressionantes de atenção e participação dos alunos.

O curso ministrado por Sandel foi o primeiro da história a ser publicado em vídeo integralmente por Harvard na internet, há três anos. Apelidado de Justice, ou Justiça (seu nome é Razão moral 22), ganhou um site próprio, e as 12 aulas ministradas em 2005 foram reproduzidas no YouTube. A primeira delas, que questiona se um assassinato pode ou não ser moral a depender de seus fins, foi clicada mais de 3,7 milhões de vezes. Se todos os visitantes virtuais a assistem, isso significa que a aula de filosofia chega a um público equivalente a 100 turmas diárias de 40 pessoas.

Ao publicar os vídeos, Harvard apenas reagiu a uma demanda sem precedentes. Desde o início dos anos 2000, havia regularmente mais de 1.000 alunos interessados pelo curso de Sandel, numa universidade em que um quinto desse total já significaria uma procura bem grande. Em 2007, Sandel bateu o recorde de Harvard, com 1.115 estudantes matriculados numa disciplina. O curso dura de setembro a janeiro e, ano após ano, a universidade se vê obrigada a reservar para ele seu maior auditório, o Sanders Theater, anteriormente aberto só para grandes eventos e discursos de personalidades, como o ex-premiê soviético Mikhail Gorbachev ou o primeiro-ministro britânico Winston Churchill (1874-1965). Para 2011 e 2012, a universidade limi-tou a 1.000 o número de matriculados.

As aulas deixaram o professor famoso e se desdobraram em eventos pagos e lotados – Sandel excursionou por Japão, Coreia do Sul e China, onde foi considerado “a mais influente personalidade estrangeira” de 2010 pela edição local da revista Newsweek. Por duas vezes, em 2005 e 2010, ele foi uma das estrelas do TED. Neste mês, dará uma palestra paga na Igreja de Todos os Santos, em Los Angeles, com capacidade para 600 pessoas. O tema será “O limite moral dos mercados”. Em agosto, virá ao Brasil, a convite da consultoria Amana Key, para falar a empresários, executivos, funcionários públicos (com ingresso pago) e estudantes universitários (convidados). “Eu o ouvi em Boston por uma hora. Fiquei impressionado com o jeito de ele tratar de dilemas cheios de áreas cinzentas, que exigem capacidade de julgamento muito refinada”, afirma o consultor Oscar Motomura, responsável pela vinda de Sandel ao Brasil.

O que torna uma aula de filosofia tão atraente para tanta gente? Sandel vem aperfeiçoando o método há quase três décadas. Em 1980, aos 27 anos, pouco antes de se tornar doutor por Oxford, começou a ministrar seu curso de filosofia moral em Harvard. Aos 32, recebeu um prêmio dado anualmente por um comitê de alunos e professores da universidade a três mestres que demonstrem “excelência na capacidade de ensino e preocupação pelos estudantes”. Nos anos 1990, o curso ganhou o formato atual e o apelido que o tornou célebre, Justiça.

Sandel não tem um carisma especial, não faz muitas piadas nem usa recursos tecnológicos para chamar a atenção. Em vez disso, conduz uma aula bem preparada e ensaiada, com uma linha de raciocínio bem clara. Convida os alunos a participar, individualmente ou em grupo, o tempo todo, no melhor espírito socrático. Inclui as contribuições e dúvidas deles no debate e continua a se aprofundar nos dilemas morais e éticos que propõe. Em momentos-chave das aulas, para lidar com situações específicas, traz ao palco o pensamento de gigantes como o grego Aristóteles, o alemão Immanuel Kant ou o americano John Rawls, de maneira simples mas não simplória. Como resultado, cada aula oferece uma gratificante jornada intelectual.

Embora o mais importante nas aulas sejam as questões, é natural que os alunos e os espectadores anseiem por respostas. Sandel não as fornece facilmente. O curso Justice e o livro que dele nasceu, Justiça: o que é fazer a coisa certa (2011, Civilização Brasileira, R$ 39,90), deixam as respostas em segundo plano e se concentram nas virtudes do debate e da reflexão. O grande objetivo de Sandel é exortar cada cidadão – aluno ou internauta – a usar a filosofia como ferramenta para enfrentar seus dilemas e dúvidas, em vez de fugir deles, e assim tomar decisões melhores no dia a dia.

O curso todo se desenrola entre duas grandes arenas de pensamento. De um lado, a importância e a fragilidade da liberdade individual, a identidade do cidadão, os direitos fundamentais da pessoa, a força da livre-iniciativa empresarial. Do outro, os direitos difusos, o bem-estar coletivo, a identidade do grupo e os propósitos comuns a uma sociedade. Quem acompanha o curso percebe um vislumbre de qual seria a resposta de Sandel aos problemas que apresenta – a simpatia do professor pende para o segundo conjunto de valores.

Em seu livro mais recente, What money can’t buy (O que o dinheiro não pode comprar, ainda sem título em português, a ser lançado em agosto no Brasil pela Editora Civilização Brasileira), Sandel faz um alerta sobre o que considera excessos na aceitação dos interesses egoístas e na transformação do mundo em mercadoria. Ele se opõe a ideias como as propagadas por seu colega em Harvard, o economista Roland Fryer, que vê benefícios em recompensar com dinheiro a criança que tira notas especialmente boas na escola, ou as do ganhador do Nobel de Economia Gary Becker, que já imaginou a possibilidade de países ricos pagarem a países pobres para admitirem refugiados em seu lugar.

Os alertas de Sandel encontram ressonância no sentimento de grande parte da população, especialmente num momento em que os Estados Unidos mal se recuperam de uma crise nascida no sistema financeiro. A identidade com uma certa indignação das classes média e baixa contribui para tornar o pensamento de Sandel mais difundido, mas certamente não mais original nem provocativo. Se brilha menos como pensador, Sandel faz história como um espetacular profissional de ensino – e essa contribuição é mais que se poderia exigir de qualquer filósofo.

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