segunda-feira, 8 de julho de 2013

A indiferença filosófica em Giorgio Agamben


Por William Watkin*
Da Revista Cult

Se o século passado pertenceu aos filósofos da diferença, então o atual deve ser entregue aos provedores da indiferença filosófica, dentre os quais um nome um se destaca: Giorgio Agamben. O que é a indiferença filosófica? A definição padrão do termo no dicionário, que significa não se importar de modo algum, encontra eco na primeira época da indiferença filosófica, estendendo-se do Estoicismo ao ataque de Kant ao indiferentismo filosófico nas páginas de abertura da primeira Crítica. Trata-se da inabilidade de tomar uma decisão filosófica única, sempre verdadeira, em favor de uma posição ou ação em detrimento de outra. O indiferentismo ocorre especialmente quando, como é sempre o caso segundo Agamben, as duas posições em relação às quais o sujeito não se importa ocupam, de um lado, o único, comum, fundador, unificado, e de outro o múltiplo, próprio, atualizado, vário. Assim, em certo sentido, desde os gregos, a filosofia tem sido uma disputa acerca da prevalência da indiferença: não podemos eleger entre a filosofia da unidade e aquela da multiplicidade. E o pensamento moderno funda-se no desenvolvimento da filosofia crítica de Kant que buscou resolver a indiferença entre as filosofias do Um (idealismo) e aquelas do Muitos (Empirismo). O segundo sentido filosófico da indiferença, primeiro desenvolvido por Hegel, é a pura diferença em si ou diferença abstrata independente de quaisquer qualidades mantidas pelas duas identidades sendo diferenciadas. Representa-se o conceito mais precisamente pela notação formal A≠ B. O que A e B são na realidade, que qualidades possuem, é indiferente, não importa. Na diferença indiferente tudo que importa é que existe a diferença, A≠ B, como a base do fato de que existe uma identidade A=A porque A≠ B. Trata-se da fórmula fundadora da dialética hegeliana e de todas as filosofias da diferença que surgirão, pois desenvolve uma forma pré-identitária de diferença: diferença abstrata sem relação com as qualidades.

1. A Indiferença de Agamben

Pode-se argumentar que a filosofia moderna nasce dos ataques kantianos ao indiferentismo e ao desenvolvimento hegeliano da pura diferença em si. Isso posto, pode-se qualificar a indiferença agambeniana como uma terceira ordem de indiferença filosófica. Seu sistema filosófico é tornar aparente e então declarar indiferentes todas as estruturas de oposição diferencial que subjazem na raiz, assim ele crê, de toda principal assinatura conceitual ou estrutura discursiva do Ocidente. Desse modo, sua filosofia pode ser qualificada como uma espécie de crítica metafísica que sustenta que todos os conceitos abstratos são apenas quase-transcendentais, no que se apresentam como historicamente contingentes, não logicamente necessários. Assim, Agambem participa, de bom grado, de uma tradição que inclui Nietzsche, Heidegger, Deleuze e Derrida, pensadores aos quais ele frequentemente se associa. Aquilo em que ele difere de todos os autores citados é o fato de que ele não é, de modo algum, um filósofo da diferença, qualquer que seja o modo como nós tomemos o significado desse termo no interior da tradição à qual eu acabei de aludir. É razoável afirmar que todos os seus predecessores, de algum modo, colocam em xeque estruturas filosóficas da identidade consistente por intermédio da valorização da diferença. O argumento central daqueles pensadores, desde Nietzsche, é: a diferença precede a identidade e assim, por definição, está permanentemente corroendo a identidade, sendo a identidade sempre definida como fundacional.

Agamben não pode subscrever esse argumento. Como pensador, ele está dolorosamente consciente de que a diferença é sempre parte de um acoplamento identidade-diferença, de modo que, embora concorde com seus grandes predecessores com o fato de que a identidade depende da diferença, ele transcende ou transgride a lei de nossa era atual na medida em que insiste no fato de que a diferença está tão implicada no sistema metafísico quanto a identidade. Se, ele argumenta, as estruturas identitárias são historicamente contingentes, não logicamente necessárias, assim também são as estruturas de diferenciação, de onde se pode posteriormente concluir que estão em cumplicidade com a metafísica, não sendo, pois, um meio de superá-la. Antes de minar a identidade com a diferença, portanto, Agamben revela que identidade e diferença, elas próprias, não são termos necessários, mas contingências históricas, que, de fato, formam uma unidade singular no interior de nossa tradição, que chamamos identidade-diferença, e com base nestas observações pode-se suspender sua história de oposição, tornando-as mutuamente indiferentes. Com isso, queremos dizer: suspender sua apresentação como formando uma unidade singular de diferença oposicional, em luta: um e muitos, soberania e governo, zoe e bios e assim por diante, sem reconstitui-las, pois, como uma unidade.

Para Agamben, a completa presença autoidêntica, isso que ele chama o comum, é uma entidade discursiva, não um estado real. Aliás, no que diz respeito à diferença, isso que ele chama de o próprio, é a mesma coisa. Além disso, os conceitos não são mais tomados como conceitos-identitários, estruturas ideacionais possuidoras de consistência comum em torno de um conjunto consensual de referentes que pode ser mantido sob a mesma esfera conceitual, mas conceitos-identitários-diferenciais que têm um momento histórico de ascensão, no qual se observa sua atividade, um modo de distribuir sua ação para controlar grandes e estáveis formações discursivas no correr dos tempos, tais como linguagem, tal como poder, tal como vida, e um quase inexorável momento de indiferença, no qual as claras distinções dos sistemas ou entram em colapso ou podem ser agressivamente demonstradas como sendo vulneráveis contingências. O método para traçar esses momentos com o intento de suspender os construtos identidade-diferença, que ele chama assinaturas, é uma metodologia geral a que Agamben dá o nome de arqueologia filosófica.

2. Arqueologia Filosófica

O método altamente contestado de Agamben, que consiste em traçar as origens de conceitos de larga escala (assinaturas) de volta ao momento em que eles inicialmente se tornaram operacionais como modos de um discurso de legitimação e organização, é devedor, em grande medida, da concepção foucaultiana  de inteligibilidade discursiva. Através da inteligibilidade, ou o que Agamben também chama de comunicabilidade, não é o que é dito que é significativo, mas que dizer isso e aquilo seja permitido pelas sanções do poder e por nossa cumplicidade com essas sanções. Isso posto, esses momentos de ascensão, como Agamben os qualifica, não são origens fundadas em dados históricos no sentido usual, mas, inspirados pelo tempo-agora de Benjamin, eles de fato desvelam tanto sobre nós, como contemporâneos, como sobre as origens históricas. Assim, todo momento contemporâneo é fundado em uma origem ou arche, embora toda arche seja construída por nosso discurso contemporâneo como a origem fundante.

O passado, argumenta Agamben, não apenas vive no presente, mas o presente é um construto constante do passado. Dessa forma o tempo é marcado por um duplo anacronismo essencial, das coisas passadas sendo projetadas para o presente e do presente como um construto do passado.

O objetivo de Agamben é revelar esse paradoxo histórico na base de conceitos de larga escala tais como poder, ser, secularização, linguagem e assim por diante, de forma a demonstrar sua impraticabilidade lógica. Em toda a sua obra, persiste uma economia única, para onde quer que ele olhe.  O passado, ou o comum temporal, está fundado no presente ou no próprio temporal, embora o presente funde o passado através de suas tentativas de acesso às origens. Portanto, tome-se qualquer conceito-assinatura de larga escala e esse se revelará o paradoxo entre um passado fundado, mesmo criado, pelo presente, e um presente fundado pelo passado, permitindo assim a suspensão – ou a indiferenciação – de uma nítida separação entre as origens e os exemplos atuais, subsequentemente libertando o sujeito do controle discursivo da dita assinatura.

Como para Agamben tudo é, ostensivamente, discursivo, essa forma de crítica radical revela-se, potencialmente, uma poderosa ferramenta política para a mudança, uma vez que o poder é uma das assinaturas de maior prevalência que há no Ocidente, e também uma das mais suscetíveis ao paradoxo da lógica da fundação fundada por isso que ela presume fundar. Tornar indiferente a oposição entre origem (o fundamento comum de tudo) e o presente (a atualização própria de nosso fundamento comum) por intermédio da arqueologia filosófica mata o poder das assinaturas de sancionar e, portanto, controlar o que pensamos, o que dizemos e, também, o que fazemos. Falhemos em tornar indiferentes tais assinaturas e qualquer atitude política que se tome ainda terá lugar no interior dos confins sancionados da inteligibilidade discursiva, especialmente o ato político essencial da era moderna: diferença revolucionária.

3. Vida

Para concluir, permita-nos considerar a talvez mais controversa e importante assinatura para Agamben, a Vida, submetendo-a à arqueologia filosófica, e assim tornando-a  inoperante como um modo de inteligibilidade para nós, fazendo com que  as duas partes da economia oposicional do termo se tornem indiferentes entre si.

Para nós, Vida é um termo que explica nossa existência biológica. Além disso, ele também explica o caso específico da vida humana, uma forma privilegiada de vida animal. Finalmente, também resulta em momentos nos quais o privilégio da vida humana é removido de um ser humano e ele é reduzido a ser tratado como um mero animal, uma situação que Agamben chama de vida nua. A obra de Agamben mais amplamente lida, Homo Sacer, apresenta as origens dessa situação e suas implicações para o mundo atual.

Não há, de fato, uma coisa como a Vida. Ela é um construto discursivo permitido pelas estruturas de poder para sancionar diferentes formas de comportamento e com a qual temos estado em cumplicidade por séculos. É, portanto, uma assinatura inteligível, não uma coisa como tal. Como ela surgiu? O momento de ascensão dessa assinatura para Agamben é a primeira instância registrada da vida nua em um sistema judiciário ocidental, a figura do homo sacer no antigo ordenamento jurídico romano. Como o homo sacer foi sancionado, quando sua lógica (um cidadão no interior da lei que pode ser morto, e tal não ser julgado assassinato, assim colocando-o à margem da lei) é ilógica? Agamben nota que os gregos não tinham uma única palavra para vida, mas ao menos dois termos, que pertenciam ao que entendemos por vida. Zoe era a vida privada e animal. Bios era a vida política, específica, pública. Em algum momento, um termo único, Vida, foi paulatinamente sendo empregado em relação a uma vida humana composta de duas partes: a biológica e a social. Dos dois, Zoe era o comum, o fundacional, afinal de contas, sem a vida biológica, o que somos?  E Bios, a especificidade social de como vivemos, é o reino no qual a vida humana é distinguida da vida animal, ou mesmo da vida escrava ou feminina, para os gregos e romanos. Assim, é Bios que funda Zoe ao dizer que Zoe é apenas uma instância local da vida, a animal.

Nesse ponto, as coisas tornam-se confusas. Que Vida veio primeiro? A vida biológica ou a vida humana, enquanto distinta da vida animal e assim protegida pela e sujeita à, digamos, lei? O homo sacer se torna possível precisamente nesse ponto. A Vida Nua se assemelha a um retorno à Zoe ou vida animal. Este homem pode ser morto como um bicho. Contudo, para que a vida nua se torne nua, os direitos do cidadão devem ser retirados dele. Isso mostra claramente que a animalidade é um conceito criado pelo humano, e a vida nua é apresentada como um retorno a um estado de natureza: Zoe.

A vida nua exibe então os seguintes fatos da Vida. A Vida é um construto discursivo. Ela depende da ideia de que ela é a-discursiva, ou seja, que os animais existem antes dos humanos. Portanto, de fato, o Bios, a vida política, constrói a Zoe, a vida  animal, como origem de toda a vida apenas para legitimar a si própria. Essa economia impossível (como um fundamento pode ser fundado depois daquilo que ele fundou, como o comum pode ser um construto do próprio?) é revelada nesses momentos nos quais a distinção clara entre comum e próprio em uma assinatura torna-se indiferente. O Homo Sacer é a primeira instância registrada, dessa relevância, para a Vida. Um cidadão retorna para um estado de animalidade somente se, primeiro, ele é um cidadão. A vida nua é a vida desnudada. Ela deve ser vestida antes que possa ser despida.

A arqueologia filosófica se ocupa, aqui, com uma questão contemporânea, a questão da vida humana. Ela traça a origem do emprego do termo controlador para sancionar certas formas de comportamento, aqui, a assinatura Vida. Ela revela que a assinatura sempre se bifurcará em uma estrutura de comunalidade que vem primeiro e funda, e em uma de atualidade própria, casos específicos subsequentes que ocorrem devido a uma fundação comum . Ela encontra então casos-limite, zonas de indistinção, nas quais a clara diferenciação no interior da assinatura é não clara, indiferenciada. Ela então se foca nesses casos-limite, nessas zonas de indistinção para demonstrar que a assinatura em questão não é universal e necessária, mas historicamente construída. Ela revela a primeira instância na qual a economia da assinatura torna-se confusa, é indiferenciada. Ela então humildemente sugere que se a lógica da assinatura Vida é ilógica (e pode ser mostrado que a assinatura Vida ela mesma pode ser traçada historicamente até um primeiro momento específico), então não precisamos da assinatura Vida.

Graças à indiferença, podemos revelar historicamente os meios pelos quais podemos viver sem a Vida. Essa me parece ser a mensagem geral da obra de Agamben.

*Professor de literatura e filosofia contemporânea na Brunel University, West London.  É autor de Agamben and Indifference: A Critical Overview (Rowman and Littlefield International, 2013)

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