sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Visita a Jean-Paul Sartre


*Por Rubem Braga

Os estudantes do velho Centro Acadêmico Cândido de Oliveira, do Rio, querem levar uma peça de Sartre, Morts sans sépulture, sem pagar os direitos. O pedido vem às mãos de Roberto Assumpção, secretário da embaixada, que lida com as coisas culturais. Ele escreve a Sartre e recebe logo a resposta, marcando rendez-vous: meio-dia e meia, no apartamento do escritor. Vou também, como penetra.

Paulo Silveira me contou que o velho Anatole France dizia isso: “Se Deus acabasse com o mundo, mas deixasse a rua Bonaparte, ele ainda se conformava.” É na verdade muito sábia e gentil essa pequena rua que nasce na beira do Sena e vem atravessar o boulevard junto à igreja de Saint-German-des-Prés, para morrer logo depois de Saint-Sulpice, junto às árvores do Luxemburgo. Ainda hoje é bem doce bobear pela sua calçada estreita, entre pequenas livrarias e casas de antiguidade; e o miúdo comércio vulgar que ali se entremeia apenas lhe dá mais graça e vida: não é raro ver a moça, que desceu de sua mansarda para comprar um longo pão, se deter, sonhadora, diante de uma gravura ou de um bibelô antigo.

Sartre mora na esquina da rue de l’Abbaye, num quarto andar aonde se ascende por uma escada meio escura, em caracol. Esse solteirão de 45 anos vive com sua mãe, e tem um apartamento bem-arranjado. Eu melhoraria de estilo se escrevesse, como ele, nesse pequeno escritório cheio de livros, com duas janelas dando para o largo: à esquerda, a torre da igreja, à direita, o Deux Magots. Quem entra na rua aqui encontra, na segunda casa depois da sua, o hotel em que Auguste Comte concebeu seus três Estados; um pouco mais adiante, a casa onde nasceu Manet.

À primeira vista, o dono da casa lembra Portinari; um Portinari que fosse mais forte e mais rústico. Esse parisiense que deriva da Borgonha e da Alsácia tem alguma coisa do camponês do Norte. É vermelho, tem a pele grosseira e os cabelos cor de palha suja. Os pedaços de costeleta que passam sob os ganchos dos óculos já embranqueceram. É impossível saber se está falando com Roberto Assumpção ou comigo, pois cada olho verde fixa um de nós, formando um ângulo de 45 graus; mas parece que o esquerdo, que fixa o diplomata, é que está com a razão.

É um homem baixo, retaco, e certamente feio. Mas quando começa a mover-se e a falar a gente compreende o seu poder de atração. Está vestido com um grosso terno de casimira cinza-escura, com colete e jaquetão, que certamente lhe permite sair sem mais agasalhos; reparo em sua gravata vermelha e em seu bom e sólido sapato de couro de porco. Simpatizo com a sua larga mesa de trabalho. É um grande e desordenado fumante; ali estão três ou quatro maços de cigarros franceses, de duas marcas diferentes, mas ambos fortes, e ainda dois pacotes de caporal para cachimbo, e também essa grande caixa de fósforos, de mil palitos, usada pelas cozinheiras, e muito mais eficiente que qualquer isqueiro.

Estava escrevendo quando nos recebeu; explica-me que está acabando seu estudo sobre Jean Genet. Tem em sua frente uma edição de luxo de Notre-Dame-des-Fleurs. Automaticamente reparo nos dois livros que tem sobre a mesa: um é de Platão, outro de Mallarmé.

É claro que tem prazer em que os estudantes levem sua peça; faz questão de escrever a eles uma carta, dando licença e agradecendo. Roberto lhe fala sobre o interesse que sua obra desperta no Brasil. Já tem notícia disso, e teve um convite de São Paulo para visitar nosso país. “Este ano foi impossível, mas vou dar um jeito de ir no ano que vem.” Conta que o adido cultural francês em São Paulo lhe prometeu mandar a tradução do ensaio de um escritor brasileiro para publicar na Les Temps Modernes, a sua revista. Não se lembra do nome do escritor.

Faz perguntas sobre nosso país. Diz que tem boa impressão dele pelo que lhe contaram Camus, Barrault e outros amigos. Um povo que tem caráter próprio, e muita efervescência intelectual. Não tem o ar de dizer gentilezas e parece exprimir uma curiosidade sincera. Digo-lhe que, na linguagem do Rio, “existencialismo” tem um sentido não muito austero e lembra mais Chiquita Bacana do que Søren Kierkegaard. Ri: não é apenas no Brasil, é no mundo; isso começou aqui no quartier e — nota — os adversários fingem levar a sério essa legenda de “imoralismo” da doutrina.

— Outro dia, uns rapazes de Lyon resolveram formar um círculo para estudar e debater o existencialismo. Recebi uma carta de um deles. Conta que foi procurado por umas pequenas que queriam saber quando é que iam começar as sessões de jazz…

— É verdade que está escrevendo um Tratado de Moral?

Sim, tem um monte de notas para esse Tratado, mas só aparecerá dentro de alguns anos. É um trabalho imenso; e ele, no momento, além daquele longo estudo sobre Genet, acaba um romance do ciclo Les Chemins de la liberté e uma nova peça de teatro. O Tratado — calcula — deverá dar umas seiscentas páginas… Olho, sem querer, aquelas folhas que estão sobre a mesa, e que ele enchia com sua letra clara e harmoniosa, e (pobre escritor de coisinhas) não posso deixar de ter admiração por esse trabalhador que fala com tranquilidade de alguns milhares dessas folhas que pretende encher. Pergunto se Genet ainda continua ladrão.

— Ah, não, ele se aburguesa… Agora está com mania de Mallarmé, parece querer imitá-lo. Confessou-me que quando era malandro e ladrão profissional sua vida era um desespero; agora é um aborrecimento.

— Mas não rouba mais nada, nem para se lembrar daquele tempo?

Sartre ri:

— Bem, ele agora tenta lograr os editores. Vende o mesmo livro a duas casas diferentes, promete a uma terceira, saca adiantadamente…

E começa a contar surpreendentes coisas sobre os amores de Genet. Fala sem maldade, com a ternura viril de um pai falando de um filho traquinas; fica de pé, ri, fuma um de meus Gauloises.

— Outro dia vi Genet em Cannes. Ele mora com a família de um amigo pescador, e gosta de passear com as crianças. Foi apresentado a várias estrelas de cinema e teatro no Cariton e fez questão absoluta de que todas elas pegassem ao colo um dos meninos. Valia a pena ver a cara daquela gente esnobe.

Volta a conversar e combinar coisas com Roberto Assumpção. Devemos ir embora, mas, a essa altura, sinto que já posso abrir o jogo. Confesso-lhe que além de minhas altas funções diplomáticas (Roberto me apresentou como se fosse alguém da embaixada) escrevo alguma coisa sobre literatura francesa para o Brasil. Sei que ele não gosta de dar entrevistas, mas se pudesse…

— Procure-me quando quiser!

Não deixarei de fazê-lo.

* Texto publicado no Correio da Manhã, em 20 de novembro de 1950 e que integra o livro "Retratos Parisienses" - uma compilação de textos escritos pelo cronista durante sua estada em Paris, em 1950. Se estivesse vivo, Rubem Braga (1913-90) teria completado cem anos no dia 12 de janeiro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário