quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

O repóter apegado e outras histórias...


Do apego

“O repórter apegado é uma figura digna de pena dentro do ambiente da redação. A vontade das pessoas é dizer para ele: ‘tá se achando artista? Vai virar escritor’, numa fúria digna daqueles usuários de transporte público que se irritam quando alguém reclama do calor ou da falta de espaço. ‘Quer ventinho? Vai de táxi.’ A tréplica mais evidente é que, bem, eu até iria, mas me faltam certas condições.
O repórter apegado briga por vírgulas e chora porque a ordem de uma frase foi alterada de forma pouco lisonjeira. Alguns tremem quando um parágrafo inteiro é amputado (o que acontece simplesmente o tempo todo). Quando um amigo elogia seu artigo, o repórter apegado faz questão de ressaltar exatamente que frases e estruturas foram alteradas em relação ao original. O amigo geralmente se arrepende do elogio e vai buscar uma coxinha. Uma vez, soube de um repórter apegado que abordou uma senhora lendo o jornal no metrô para esclarecê-la sobre a injustiça de certas alterações sintáticas. A moça disse que só estava lendo o horóscopo na página ao lado e mudou de lugar. Em seus sonhos mais audaciosos, o repórter apegado invade a redação logo após o fechamento e encomenda trocas para a gráfica: altera linhas finas, muda todo o direcionamento da matéria.
O comportamento certamente é mais comum em jovens, mas não sei dizer se com o tempo as pessoas ficam mais cínicas, mais evoluídas ou apenas tentam outra profissão. Talvez fiquem cínicas, evoluídas e virem editoras.”

Extraído do blog Já Matei por Menos, de Juliana Cunha

Perfeccionismo

“Se eu almejar uma vida ideal, terei que me basear em vidas alheias, pois o ideal é fruto de uma racionalização coletiva e consagrada, enquanto que se eu me contentar com uma vida possível, volto a assumir algum controle sobre os royalties das minhas decisões. O que não impede que ela seja ótima, a mais adequada para o fôlego que tenho, a mais realizável dentro de minhas ambições, a menos sofrida, já que regulada pelo autoconhecimento que adquiri até aqui. Tenho como manejar uma vida possível de um jeito que jamais teria de manejar uma vida perfeita, até porque vida perfeita não é deste mundo, e o sobrenatural é matéria que não domino.”

Trecho da crônica A Melhor Vida Possível, de Martha Medeiros

A dor dos bichos dói menos que a nossa?

“Todos os argumentos para provar a superioridade do homem não podem quebrar essa dura realidade: no sofrimento, os animais são iguais a nós.”

Do filósofo australiano Peter Singer

Revelações

“Homem e mulher na cama.
- Foi bom?
- Foi.
- Muito bom ou só bom?
- Francamente, eu…
- Está bem. Me dá uma nota. De zero a dez, que nota você me dá?
- Sete.
- Sete?!
- Você quer que eu minta, Haroldo? Estou sendo franca. Você me pediu uma…
- Peraí. Que foi que você disse?
- Eu disse que estava sendo franca.
- Não, antes. Você disse ‘Você quer que eu minta, Haroldo’.
- É.
- O meu nome não é Haroldo!
- Não é?
- Grande. Você me confundiu com outro.
- Se você não é o Haroldo, então quem é?
- E eu vou dizer? Com nota sete, eu vou dizer quem eu sou?”

Trecho de Pelo Haroldo!, crônica de Luis Fernando Verissimo


No tempo da inocência

“Quando eu era pequena, não entendia por que o governo mandava todo mundo usar camisinha. Apareciam uns artistas na tevê repetindo a recomendação federal muito sérios, como se fosse uma questão de vida ou morte, e nunca explicavam ao certo o que havia de errado com o restante do guarda-roupa. E mais: qual o tamanho máximo do referido item da indumentária, em proporção ao torso do indivíduo? Qual a diferença entre camisinha, camiseta e camisola? Eu realmente imaginava cidadãos em trajes muito apertados, cumprindo seus deveres cívicos, e olhava desconfiada para os que andavam por aí com roupas folgadas. Um pouco mais tarde, encontrei umas edições velhas da revista Capricho e fui me instruir. Àquela altura, as crianças da rua já circulavam informações mais precisas sobre a origem dos bebês (sem repolhos ou cegonhas nessa equação), mas pairava uma certa dúvida sobre o verdadeiro significado de sexo oral: seria só ficar falando sacanagem ao telefone? Teria algo a ver com dentistas?”

Trecho da crônica Anfíbios Fazem, de Vanessa Barbara 
Boba?

“Encontrei uma garota. Meio bobinha. (…) Ela falou um monte de besteiras. Mas uma coisa me chamou atenção, ela não estava defendendo nada, sustentando nenhuma opinião, ou acusando alguém – ela apenas estava lá, como uma árvore ou um gato. E eu  me senti absurdamente abstrato do lado dela.”

Trecho da peça Depois da Queda, de Arthur Miller


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*Excertos retirados do blog do jornalista Armando Antenore.

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