terça-feira, 17 de setembro de 2013

Viva a sociedade alternativa


Por Fábio Fujita
Da Revista Trópico

O japonês Isamu Yuba era um jovem de 19 anos cheio de ideias na cabeça. Queria conhecer o mundo. Certo dia, no início do século XX, topou com um cartaz que falava sobre boas oportunidades no outro lado do globo: “Vá para a terra prometida, livre e sagrada da América do Sul”.

Parecia um sinal. Ainda sob o impacto das ideias de Rousseau, que conhecera com a leitura de “Emilio”, e também da crise financeira pela qual passava sua família, o rapaz se convenceu: iria tentar a sorte naquele eldorado desconhecido, o Brasil.

Inspirado pelo avô, Saizaburu Yuba, Isamu já tinha bem planejado o que faria quando se estabelecesse com os pais, os irmãos e a avó no interior paulista: construir uma comunidade agrícola onde não existisse propriedade privada nem circulação de dinheiro. O avô já tentara fazer isso no próprio Japão, sem sucesso.

O neto, no entanto, seria mais bem-sucedido. Chegou ao Brasil em 1926 e, em 1935, adquiriu 40 alqueires de terra, na cidade de Guaraçaí, formando uma numerosa comunidade com 300 imigrantes japoneses.

Duas décadas depois, o grupo se dividiu, e a turma que acompanhou Isamu, com cerca de 100 pessoas, instalou-se na zona rural de Mirandópolis. Ali, ele deu continuidade às premissas de sociedade igualitária que já testara em Guaraçaí e que perdurariam até os dias de hoje: abolir a propriedade privada, cultivar a terra, amar as artes e orar.

Lucille Kanzawa nasceu em Mirandópolis em 1963 e conviveu com a comunidade durante a infância e juventude. Seu pai, médico, era amigo de Isamu Yuba e prestava atendimento gratuito aos moradores do lugar.

Saiu do Brasil aos 17 anos para morar no Alasca, depois viveu na Europa, até parar num kibutz em Israel. Posteriormente, formou-se em tradução. Sua paixão pelas viagens a levou a se tornar comissária de bordo. Descobriu a fotografia e a usou para registrar suas origens no livro “Yuba”, que está sendo lançado pela editora Terra Virgem. São 66 imagens que revelam o cotidiano da comunidade, entre os trabalhos na lavoura e a sublimação pela arte.

Por suas fotos de Yuba, Lucille já venceu o Prêmio Porto Seguro como artista-revelação e ganhou exposições na Caixa Cultural e na Pinacoteca de São Paulo. Na sede da editora Terra Virgem, no bairro de Pinheiros, na capital paulista, Lucille falou à Trópico.

*

Se você fosse para buscar uma imagem de suas lembranças da comunidade Yuba, qual é a mais antiga?

Lucille Kanzawa: É a do barracão. Porque sempre foi um ritual na minha família passar o Natal lá. Ao longo do ano, a comunidade está sempre ensaiando –música, teatro, dança, todo tipo de arte. Aí, no dia 25 de dezembro, eles oferecem um jantar especial, só para alguns convidados. É engraçado porque, desde criança, eles servem o mesmo cardápio: um franguinho de leite, bem crocante, udon (sopa japonesa), seguindo a mesma receita dos antepassados.

Então, a primeira lembrança é a desse barracão, instalado na terra batida, que ao longo do ano serve de abrigo para o maquinário agrícola. No Natal, e no dia 30 também, esse barracão se transforma em teatro. Natal para mim sempre foi em Yuba. Até hoje passo o Natal lá. Só não passei nos quatro anos e meio que morei fora do Brasil.


Quando você percebeu que o sistema de vida ali de Yuba era diferente da vida que tinha na cidade?

 Eu sou de Mirandópolis, que é uma cidade pequena, com cerca de 25 mil habitantes. E a comunidade fica nas Alianças, zona rural, a mais ou menos 20 km da cidade. Desde criança eu sabia que era um universo totalmente diferente do meu.

Meu pai sempre queria que eu e meus irmãos morássemos um tempo lá, onde só se fala japonês. Era uma forma de aprendermos japonês e assimilarmos os valores do fundador, as ideias de simplicidade, igualdade, liberdade. E eu nunca quis. Primeiro, porque eu tinha pavor a bichos (risos). Ao mesmo tempo, meu pai era muito intelectualizado, e me educou dessas duas formas: querendo que eu fosse morar em Yuba e, ao mesmo tempo, que fosse viver fora do Brasil.

Ele também sempre me falava do kibutz. Dizia: “Já que você não quer morar em Yuba, quem sabe você vai morar no kibutz e entende como é esse sistema de vida comunitária”. Foi o que acabei fazendo. Se era para conhecer um lugar assim, que fosse em Israel.


Diógenes Moura, curador da Pinacoteca de São Paulo, escreve no livro que Yuba é “um povo que está inserido num mundo contemporâneo, mas que vive fora do caos”. Os yubenses têm essa ideia de que o mundo fora da comunidade é caótico?

Kanzawa: Têm. Uma vez a Katsue, filha do fundador, veio para cá e fomos fazer um programa com amigos. Fomos ao shopping Morumbi. Eu percebi que, em dado momento, ela estava agoniada. Dizia: “Lucille, eu preciso de uma árvore, preciso abraçar uma árvore”.

Percebi que estava incomodada demais. A geração dela (Katsue é sexagenária) talvez não se sinta tão bem fora da comunidade. Já os jovens, adoram vir para São Paulo, ir em baladas, frequentar a vida noturna. Então, depende da geração.


Os jovens falam português?

Falam. Muita coisa mudou desde a morte do fundador. Apesar de carismático, ele era uma pessoa muito rígida. Proibia as pessoas de falarem português. Entre eles, só falam em “nihon-gô” (japonês). Com a gente, claro, falam em português, mas você percebe que não têm tanta fluência.

As crianças só aprendem o português quando começam a frequentar a escola (aos seis anos). Na minha época, era muito difícil conversar com alguém de lá. Era uma ou outra pessoa que falava português.


Quantas pessoas vivem na comunidade?

Kanzawa: Hoje são 60 pessoas. No livro, é dito que são 61, mas recentemente uma delas faleceu. A comunidade já chegou a ter 300 pessoas. Foi o auge, logo depois da Segunda Guerra Mundial. Funcionários do governo foram lá e ficaram intrigados: “Por que tem tantos japoneses juntos?”.

Eles chegaram a implantar um projeto agrícola, com 220 mil aves, que foi considerado a maior granja da América Latina. Chegou a ser manchete na revista “O Cruzeiro”. Isamu Yuba se tornou amigo de Assis Chateaubriand, de Getúlio Vargas. Era muito conhecido e carismático, fazia amizade muito fácil com os poderosos.


O editor Xavier Bartaburu, que escreve o texto que acompanha o ensaio fotográfico, sugere que o modelo de vida idealizado por Isamu Yuba foi influenciado pelas ideias de Rousseau e Tolstói. Também já vi especialistas em cultura japonesa especulando influências marxistas em relação ao sistema que foi implantado ali. Você acredita que a comunidade tenha mesmo uma aura iluminista/socialista?

Acho que sim. Isamu Yuba era mesmo fã de Tolstói. Tanto que, quando um forasteiro chegou lá, ficou meio perdido, e Isamu Yuba falou assim: “Se você quiser entender nosso estilo de vida, nossa filosofia, leia Tolstoi”. E aí deu a ele os livros do escritor.

Antes de vir para o Brasil, desde muito jovem, Isamu Yuba já tinha esse ideal de construir uma comunidade igualitária. De Rousseau, concordava que o homem, por natureza, é bom, e que deveria voltar às coisas simples da vida, viver na simplicidade. Então a gente vê essa influência, sim. A gente evita falar em ideologia do comunismo, porque o termo às vezes é pejorativo, mas ele queria construir uma sociedade assim: igualitária.


No seu texto, você diz que Isamu Yuba foi um sonhador. Mas ele também foi um empreendedor porque, se não o fosse, a comunidade não teria resistido por tantos anos. Como era a liderança dele? Ele personificava a figura patriarcal típica da cultura japonesa?

Sim. Acho que, depois da morte de Isamu Yuba, a comunidade passou a perder várias pessoas. Ele era sonhador, só que colocou os seus objetivos em prática. Era também muito persuasivo. Ouvi muitas histórias de pessoas que estavam decididas a ir embora e desistiram _sem falar naquelas que partiram e depois voltaram.

Resolveram ficar, depois de conversar com ele, tamanho o poder de persuasão que ele tinha. Era muito energético também. As pessoas tinham o maior respeito por ele. Acho que numa sociedade assim, ou em qualquer sociedade, tem que ter esse tipo de liderança.


Ele conseguiu persuadir até o pai dele. Trouxe toda a família do Japão, não foi?

Exatamente. Imagina, ele tinha só 19 anos quando conseguiu convencer toda a família a vir para o Brasil. E as nossas histórias meio que se entrelaçam, a minha, a dele e a do meu pai. Isamu Yuba também gostava de viajar. Queria ser capitão da marinha para conhecer o mundo.

Na verdade, essa história começa com o avô dele, que era chefe de aldeia, e já sonhava em construir um lugar onde tudo fosse dividido, o lucro fosse revertido para o bem de toda a comunidade e não houvesse disputa. Ele já conhecia a história do avô e, por ser um idealista, quis colocá-la em prática. Mas viu que o Japão não era o lugar para isso.


Isamu Yuba morreu em 1976 e, segundo o Xavier Bartaburu, a comunidade quase se extinguiu, por causa da dificuldade de achar um novo líder. O que mudou lá desde a época em que você conviveu com eles, na infância?

Kanzawa: Percebo muita diferença. Eles são pessoas muito puras, generosas demais. Mas dependem muito de ajuda externa. Eles plantam, cultivam os vegetais. E tudo o que fazem é muito gostoso. Fazem missô (massa de soja), geleia, vários produtos.

Eles acabavam dando (o excedente), nunca pensavam em comercializar. Isamu Yuba sempre falava que dinheiro era “kitanai” (coisa suja), o grande mal da humanidade. Então eles faziam de tudo para não dar muito valor ao dinheiro, evitavam ao máximo usá-lo ou vender os produtos.

Depois, com essas crises todas, viram que não dava para viver longe do capitalismo. Acabaram se rendendo, perceberam que precisam de dinheiro para sobreviver. Não dá para viver só do que plantam, do que produzem e da arte. É muito utópico.


Como nasceu o seu livro?

Os editores da revista “Terra” (extinta) começaram a me pedir matérias de lugares onde eu já tinha ido. Conversando com (os editores) Xavier Bartaburu e Valdemir Cunha, falei: “Olha, acho que não tem nada a ver com a revista, mas já ouviram falar de uma comunidade chamada Yuba?”.

A matéria sobre a Yuba foi publicada em dezembro de 2004, e no ano seguinte eu mandei o ensaio para o Prêmio Porto Seguro. Ganhei o prêmio como fotógrafa-revelação, e eu nem era fotógrafa profissional. Minha formação não é em fotografia. Depois que ganhei o prêmio, comecei a ser muito assediada por jornalistas; dois cineastas me procuraram querendo fazer documentário.


No livro, uma frase atribuída a Isamu Yuba diz que “a terra não mente, o lavrador não consegue amar a terra sem ter, ao mesmo tempo, a pureza do verdadeiro artista”. Na concepção do “yubense”, a arte é entendida justamente como a recompensa do trabalho na lavoura?

O que sustenta mesmo a comunidade é essa dedicação às artes. Eles sempre falam que é como se fossem uma grande família. Então, existem conflitos, divergências, como em qualquer família. Mas dizem que, quando estão no palco, todas as divergências desaparecem. Entram em perfeita harmonia.

Isamu Yuba sempre falava que trabalhar na lavoura também é um meio de arte. Masakatsu, que é um dos forasteiros que se integrou, falou que a princípio teve certa resistência para trabalhar na lavoura. Achava que era um trabalho muito braçal, primitivo. Estava mais preocupado em aprimorar a técnica do violão. E Isamu Yuba dizia: “Para você ser um lavrador, precisa ser artista, e vice-versa”.

Masakatsu falou que só entendeu o significado de arte quando começou a ver o arroz crescendo. Entendeu a essência e a filosofia de Yuba. O trabalho na lavoura é duro, braçal, mas eu sempre vi uma delicadeza, tanto nos homens quanto nas mulheres. Aparece já no modo de se vestir das mulheres: de botas brancas, com lenços na cabeça. Deixa a impressão de que estão encenando. É algo muito teatral, porque fazem tudo com amor e delicadeza.


Você conheceu algum outro lugar parecido com a comunidade Yuba?

Sim, quando fui morar no kibutz, em Israel, em 1989. Quando cheguei, pensei: “Isso aqui é Yuba”. O kibutz onde morei em Israel era considerado o segundo mais rico do mundo. Tinha toda uma infraestrutura, era muito moderno. Mas a filosofia era a mesma: um por todos e todos por um.

A filosofia deles é essa: de cada um, de acordo com sua capacidade; para cada um, de acordo com sua necessidade. Ou seja, ninguém nunca tem mais nem menos. E você oferece aquilo que é capaz de oferecer.

Por exemplo: me colocaram para trabalhar numa fábrica de papelão. Eu odiei. Falei: “Não gosto desse trabalho”. Preferi trabalhar na lavoura, era mais gostoso, ao ar livre. Ninguém lá faz nada por obrigação.



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