quarta-feira, 22 de maio de 2013

Uma nova biografia de Karl Marx, o vitoriano



Por Mario Sergio Conti
Da Revista Piauí

Desde a sua morte, há 130 anos, os estudos sobre Karl Marx tiveram um crescimento vigoroso. Como se procurava nos seus escritos o cerne crítico e revolucionário – apreender o mundo para superá-lo –, tais estudos atualizaram o marxismo. Psicanálise, estética, filosofia, história e, é claro, política – não houve disciplina que não fosse subvertida pelo materialismo dialético (expressão, aliás, que o próprio Marx nunca escreveu).

Do outro lado, do lado daqueles para quem o mundo e a vida não deveriam ser transformados, Marx significava subversão. Logo, o que ele fora, pensara e fizera devia ser negado. O Capital? Obra ideológica, com nenhum rigor científico dos verdadeiros economistas. O Manifesto Comunista? Receita direta para os horrores do stalinismo.

Em 1989, a situação mudou. Mais com festa que com lamúria, o comunismo tombou com a queda do Muro de Berlim. Dois anos depois, a desagregação da União Soviética marcou o fim das disputas entre os dois lados. O mundo de Marx estava morto. Inclusive no seu aspecto materialista mais comezinho: o Instituto de Marxismo–Leninismo, com sedes em Moscou e Berlim Oriental, encarregado de publicar a edição crítica das suas obras completas, deixou de existir.

Nem por isso jogou-se a pá de cal sobre o cadáver do comunista. Com o impulso do chanceler alemão Helmut Kohl, conservador insuspeito mas historiador de formação, a edição das obras completas prosseguiu. Ela é conduzida por um comitê de acadêmicos de várias nacionalidades. É um trabalho de vulto e meritório que, no entanto, bota as ideias de Marx no seu devido lugar: num museu de coisas muito mortas.

Lançada há pouco nos Estados Unidos, uma biografia feita pelo americano Jonathan Sperber é produto desse contexto histórico. Seu subtítulo diz tudo: Uma Vida do Século XIX. Não se trata de encarar Marx como personagem do mundo contemporâneo, mas de vê-lo como um produto da era vitoriana. Assim sendo, Sperber, que é historiador na Universidade do Missouri, dá maior importância ao indivíduo Marx que às suas ideias.

Karl Marx é fascinante mesmo assim. A biografia se beneficia de um sem-número de trabalhos – publicados em teses universitárias e revistas acadêmicas de circulação irrisória – que orbitam a edição das obras completas. Não existe neles a pressão subjacente aos livros das correntes políticas que se apresentavam como depositárias do marxismo, e tampouco a agressão oportunista dos detratores do filósofo alemão. Aprende-se muita coisa com a biografia. E, como o próprio Marx disse, saber é sempre superior a não saber.

Sperber dirime anacronismos. É absurdo afirmar, ele sustenta, que Marx era antissemita. A afirmação é feita à luz do extermínio dos judeus na Segunda Guerra Mundial e da criação de Israel. Quando fala da “extinção” dos judeus, no entanto, Marx está defendendo sua liberação: que eles tenham os mesmos direitos republicanos de qualquer cidadão, e acrescenta que eles só serão totalmente livres quando desaparecer a própria noção de minorias sociais.

O mesmo vale para o empenho de Marx, pater familias exemplar, em dar uma educação burguesa às filhas, que aprenderam línguas e piano enquanto viviam em cortiços londrinos. Considerá-lo um machista que se preocupava com as roupas e a virgindade das filhas é usar lentes de hoje e turvar o passado. Na verdade, Marx pelejava pela autonomia das filhas enquanto se havia com dívidas crônicas, o que não tinha nada de submissão aos costumes vigentes.

É com nuances, por fim, que Sperber conta como Marx teve um filho ilegítimo com a empregada da família, Helene Demuth, em 1851. As primeiras evidências do caso só se tornaram públicas mais de cem anos depois: Marx engravidou a moça e Engels assumiu a paternidade para evitar que Jenny – née baronesa Westphalen – se divorciasse de Marx. O menino, Frederick Demuth, foi criado por pais adotivos, tinha os traços e a tez escura do pai (cujo apelido era “Mouro”) e sabia de quem era filho. Dos sete filhos de Jenny e Marx, quatro morreram na infância, outra na idade adulta, e as duas que sobreviveram ao casal vieram a se suicidar. Só Frederick viveu pacata e anonimamente até a velhice. Morreu em 1929.

Em 2008, no auge da crise financeira que balançou o globo, The Times, o jornal megaconservador de Londres, publicou uma longa reportagem sobre Marx cujo título gritava “He’s back!”. Estava de volta aquilo que certa vez o papa Bento XVI chamou de “a grande habilidade analítica” de Marx.

Já a biografia de Sperber é mais atual quando investiga dois outros aspectos de Marx. Primeiro, quando fala da sua atividade jornalística. Além de ter sido editor de publicações alemãs, Marx durante anos analisou a situação política europeia para o New York Daily Tribune, o maior jornal americano de então.

Como editor, dinamizou revistas e fez com que tivessem repercussão e aumentassem a tiragem. Como correspondente, estava sempre em cima dos fatos, investigando-os a fundo. As publicações não eram suas nem espelhavam o que de fato pensava. Mas isso importava menos que a possibilidade de dizer algo, mesmo que truncado e limitado, sobre política, economia e filosofia.

O segundo aspecto, o mais importante, diz respeito ao que Marx viveu durante as revoluções europeias de 1848 (um processo com inúmeros pontos de contato com a Primavera Árabe) e a Comuna de Paris, em 1871. Ao se contemplar o que Marx fez na época, Sperber parece referir-se diretamente ao presente: a dispersão dos revolucionários, o poder crescente das forças da ordem e a desorientação geral.

Em meio ao caos econômico e à reação política, vigiado de perto pela polícia e com imensas dificuldades materiais, Marx segue o seu caminho, o do estudo engajado. O vento contrário da derrota movia o moinho do pensamento e da ação. O que fez com que, segundo Sperber, tivesse “uma vida repleta de emoções apaixonadas, intensas e defendidas com convicção forte, com enormes aspirações e reveses igualmente grandes, com adversidade e luta”. 


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