sexta-feira, 31 de maio de 2013

Esteticamente correto

Rafael Spreguelburd (Leonardo) em cena de O Homem ao Lado


Por Marcia Tiburi
Da Revista Cult


A pobreza da experiência cultural contemporânea agrega dois grupos pseudopolíticos: os “politicamente corretos”, que Nietzsche, no século 19, chamaria de “sacerdotes da moral”, e seus críticos, sempre autoelogiados como “politicamente incorretos”, que seriam hoje “sacerdotes do imoral”, servos daquela moral, só que sob o disfarce da inversão. O “sadismozinho” diário dos antipolíticos politicamente incorretos esconde o desejo de uma crueldade socialmente inviável. A maldadezinha do cotidiano faz mal às suas vítimas, mas é autorizada ao agente, desde que ele saiba manter as aparências de que tem toda a razão e não é tão mau assim.

A manutenção das aparências como verdadeira força que mantém as condições da dominação é o que chamaremos pela expressão “esteticamente correto”.  Enceguecidos pela cultura do espetáculo, não vemos justamente o “evidente”.  O velho parecendo novo, o mau parecendo bom, o sujo parecendo limpo, o feio parecendo belo. A correção estética é a expressão da racionalidade técnica da dominação. Exemplos abundam, dos modos de vestir às academias de ginástica.

O esteticamente correto foi bem apresentado, por exemplo, em um filme chamado O homem ao lado (Gastón Duprat e Mariano Cohn, 2009). Tal como na vida, o personagem principal do filme é um respeitado designer internacional que mora na única casa desenhada por Le Corbusier em todas as Américas. A casa é impecável e dentro dela se desenvolve uma vida moralmente bem comportada, o que se vê no modo como ele e a esposa tratam a faxineira com respeito atencioso. Dos móveis aos objetos domésticos, da roupa que vestem à música que ouvem, tudo está esteticamente correto. O designer tem uma vida tão correta que chega a ser professor universitário, o que vem coroar o personagem com a aura do intelectual que é também, digamos, “epistemologicamente correto”.

Tudo se passa na mais simples normalidade, até que um vizinho bronco resolve abrir um buraco em uma parede contígua à casa para servir de janela. O caráter ilegal de seu ato se relaciona intimamente ao caráter “esteticamente incorreto” da ação. E dele mesmo. Este antagonista tem um “estilo” visual fora do padrão culto expresso também em seu senso de humor, em seu jeito de ser e falar. Os regimes de comportamento ético e estético de cada personagem expressam-se em tensão. O desenvolvimento da trama nos legará um desfecho estarrecedor, pois que esperamos de quem tem estilo que tenha uma prática que combine com ele.  O filme mostra que julgamos pelas aparências e quase sempre nos enganamos redondamente, não porque as aparências enganem, mas porque não olhamos com cuidado.

Escravidão voluntária estética

Dizer que toda ética tem sua estética pode ser traduzido por “toda moral tem o seu gosto”. O velho padrão do gosto sobrevive hoje, por exemplo, na ditadura do fashion, em que “fazer tipo” é a lei.

A beleza e o bom gosto definem o padrão do “esteticamente correto” enquanto medida a partir da qual tudo é relativo no mundo da aparência. E como a esfera da aparência é decisiva em uma sociedade espetacular, aquela em que as relações são mediadas por imagens, o poder se exerce ali silenciosamente definindo quem é bonito e quem não é. A ditadura da beleza se impõe em nosso mundo sobre quem é constantemente reduzido a seu corpo, é o caso de mulheres de todas as idades. Por isso, o homem branco e rico, pode ser barrigudo, careca e velho (para brincar com um estereótipo). Ninguém ousa taxá-lo de feio, pois sua feiura não está em jogo: ele está na origem da lei que rege o gosto como padrão onde encaixar os outros.  A preferência por inserir-se no gosto em vez de questioná-lo explica a voluntária escravidão estética desses tempos. Política de verdade não é realmente algo que esteja em questão. 


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