sexta-feira, 19 de abril de 2013

Deus não gosta de meninos que choram

O cardeal Keith O'Brien, que renunciou ao posto de arcebispo de Edimburgo após admitir comportamento sexual "impróprio"

Por Catherine Deveney
Tradução de Paulo Migliacci 
Do Observer


Treze de março de 2013. O mundo está esperando. As telas dos televisores mostram imagens de cardeais obtidas nos dias anteriores. Vestidos de branco e vermelho, eles passam em procissão pela guarda do Vaticano e ingressam na magnífica Capela Sistina para o conclave papal.

Cada imagem, dos assoalhos de mármore polido e tetos dourados aos inestimáveis afrescos que decoram as paredes, conta uma história de riqueza, fausto e poder. Do lado de fora, na praça diante da catedral de São Pedro, multidões celebram um homem cujo nome ainda nem conhecem. Mas há outra trilha sonora.

Um dia antes, *Pat McEwan, 62, da Escócia, havia me contado como foi estuprado por um padre, aos oito anos. Sua voz se sobrepõe às multidões e corais. "Corri para casa, me sacudindo como um cachorro. Estava de calças curtas, e a porcaria corria pela minha perna. Minha mãe e minha tia tiveram de me limpar".

 A justaposição dessas duas imagens, a da instituição que representa 1,2 bilhão de católicos e a da criança vítima de abuso, conta a história de uma Igreja com dois rostos: o público e o privado. No mês passado, a Igreja foi arremessada a uma crise quando o "Observer" revelou que três padres e um ex-padre haviam prestado queixa ao núncio papal sobre o cardeal Keith O'Brien, arcebispo de St. Andrews e Edimburgo.

O cardeal, que condenava os homossexuais publicamente por sua degeneração, foi acusado pelos sacerdotes de tentar se aproveitar sexualmente de alguns de seus subordinados, durante muitos anos. Mas a história jamais foi um incidente relativo a um homem apenas. Não se referia a uma fraqueza pessoal. Keith O'Brien era apenas o sintoma de uma doença maior: a de uma instituição que opta pelo acobertamento como postura básica para ocultar escândalos morais, sexuais e financeiros.

Não era um caso de pedofilia, mas de abuso de poder --um homem em posição de autoridade agindo de maneira inapropriada com relação a jovens seminaristas e padres que lhe eram subordinados. Ficou claro que uma relação sexual plena estava envolvida. Mas ainda assim houve tentativas de empregar a ambiguidade moral para justificar seu comportamento. Primeiro vieram as negativas. O cardeal "contestou" as alegações. Um dia depois que elas foram publicadas, ele renunciou. Na semana seguinte, divulgou uma declaração na qual admitia que sua conduta sexual havia sido imprópria, "como padre, bispo e cardeal". Muita gente ignorou o que isso revelava sobre as dimensões e a duração de seus desvios de comportamento: ele foi nomeado cardeal em 2003.

A seguir, vieram os esforços de obscurecimento, com a Igreja alegando que não conhecia a substância das alegações, apesar de ter sido notificada por escrito sobre elas antes da publicação. Depois, a ira e a minimização dos delitos o cardeal havia sido destruído por "meros deslizes em momentos de bebedeira", 30 anos atrás. Ele por certo havia se confessado e recebido absolvição. Mas o mais revelador foi a tentativa de desviar a atenção para a motivação dos queixosos, e de culpar os acusadores em lugar do acusado. Esse é um padrão que se tornou familiar nos casos de abuso da Igreja ao longo dos anos.

As histórias que você lerá a seguir aconteceram do final dos anos 50 até o presente, ou seja, envolvem mais de 50 anos. A sociedade mudou radicalmente ao longo do período, da moralidade preto e branco, cortiços e caixeiros viajantes dos anos 50 para a geração das telas planas, iPhones e vidas frenéticas de 2013. E no entanto, ao longo de todas essas décadas e apesar de todas essas mudanças, o comportamento da Igreja Católica para com as vítimas de abuso mudou notavelmente pouco.

Dois conceitos são essenciais para compreender o comportamento da Igreja. O primeiro é o de "escandalizar os fiéis". Tradicionalmente, a hierarquia sempre acreditou que o maior pecado seria abalar a fé da congregação católica. Protegê-la significava esconder os escândalos. E quando o ponto de vista moral adotado é esse, tudo passa. É possível encobrir desvios de comportamento sexual e ao mesmo tempo exigir moralidade sexual dos fiéis.

É possível ocultar corrupção financeira das pessoas que doam dinheiro às suas igrejas. É possível silenciar as vítimas de abuso e proteger os praticantes. A culpa por sacrificar indivíduos é atenuada pela ideia de que algo maior e mais significativo está sendo protegido --a instituição.

O segundo conceito é o de "clericalismo", usado para descrever o senso de privilégio dos sacerdotes, sua exigência de deferência e seu aparente respeito às regras e regulamentos em público, enquanto no foro privado se comportam de maneira que sugere que as regras não se aplicam às suas pessoas. (O'Brien é um exemplo clássico disso.) O Vaticano é um Estado independente. A Santa Sé é uma entidade soberana reconhecida pela lei internacional e governada pelo Papa. A Nunciatura opera representações equivalentes a embaixadas em diferentes países do planeta. A Igreja é governada por leis próprias: a Lei Canônica. Tudo isso contribuiu para o conceito de que a igreja pode conduzir seus assuntos sem interferência ou escrutínio externo. A igreja exige voz na sociedade mas se recusa a prestar contas plenamente a ela.

Nas semanas posteriores à renúncia de O'Brien, diversas reuniões de padres foram realizadas na sua diocese. Uma delas foi presidida pelo arcebispo Philip Tartaglia, de Glasgow, substituto interino do cardeal, e por Stephen Robson, bispo assistente de O'Brien. Alguns dos padres desejavam enviar mensagens de apoio ao cardeal, e que ele fosse encorajado a se radicar na Escócia em sua aposentadoria. Compaixão por um pecador? Ou acobertamento clerical? Alguns dos participantes não só estavam informados sobre o comportamento do cardeal mas haviam sido sujeitos a ele.

"A estrutura do poder clerical não só protege sacerdotes sexualmente ativos mas é montada de forma a permitir que levem vidas duplas", diz Richard Sipe, ex-padre e psicoterapeuta norte-americano que dedicou anos a pesquisar questões de celibato e abuso. "A corrupção vem de cima. Os superiores, reitores e bispos têm vidas sexuais ativas e se protegem mutuamente. Uma espécie de santa chantagem".

Será que estamos falando da maior crise para a Igreja Católica desde a Reforma, perguntei ao professor Tom Devine, um dos mais conhecidos historiadores escoceses? Mas um cardeal não é a crise. Milhares de crianças vítimas de abusos em todo o mundo, e uma instituição que as silencia: essa é a crise real.

A igreja argumenta que tem normas de proteção a crianças em vigor na Escócia desde 1999. Você pode julgar por si mesmo sua eficiência ao ler as histórias abaixo. Os eventos se estenderam até as semanas recentes, com a renúncia de Keith O'Brien como pano de fundo. Martin Luther King, o ativista norte-americano dos direitos humanos, certa vez disse que "chega um momento em que silenciar é trair". Na Igreja Católica, esse momento passou há muito.

Falando publicamente pela primeira vez, Pat McEwan diz ter caído vítima de uma quadrilha de padres pedófilos. O principal responsável pelos abusos contra ele, o padre de sua paróquia, encorajava Pat a visitá-lo e depois parecia cair em transe. Quando Pat o sacudia, ele dizia que "eu estava falando com Jesus e ele quer saber se você deseja ir para o céu", o padre dizia, e acrescentava: "Você ama sua mãe?" O menino respondia que sim. "Você ama seu pai". De novo a resposta afirmativa. "Você me ama? Porque esse é nosso segredinho, e você não pode contar para sua mãe e pai ou queimará no inferno".

Isso aconteceu nos anos 50. Os padres das paróquias eram convidados de honra nas casas dos católicos. O padre incluiu a mãe de Pat, muito devota, em uma visita à Gruta de Carfin; ela deixou Pat aos cuidados de um padre amigo do titular da paróquia. Tão logo ela partiu, o padre disse: "Quero que você faça comigo o que faz para o padre de sua paróquia", conta McEwan. Em seguida, o padre o estuprou. Mais tarde, tentou acalmar o choro do menino antes que sua mãe voltasse. "Deus não gosta de meninos que choram. Seja um soldado de Cristo".

Os abusos sofridos na infância continuam a se fazer sentir depois que ela termina. São acontecimentos que influenciam todas as escolhas adultas, relacionamentos, a vida profissional e a saúde. As vítimas sofrem de alcoolismo, questões de saúde mental e distúrbio por estresse pós-traumático. Não é incomum que as vítimas masculinas terminem na prisão. Cameron Fyfe é um advogado escocês que já trabalhou em mais de mil casos de abuso pela Igreja Católica na Escócia. "Ninguém escapou incólume", diz. "Todos tiveram suas vidas destruídas". Pat não escapa a essa definição. Tornou-se alcoólatra, ainda que agora esteja sóbrio há 18 meses.

Pat procurou a igreja no final dos anos 90. Nunca pediu dinheiro. Queria aconselhamento, um retiro espiritual --e uma admissão de culpa. "A questão sempre foi de justiça", ele diz. Procurou o apoio de Alan Draper, um especialista em proteção a crianças que trabalhou para a igreja na metade dos anos 90. Draper havia deixado o posto, insatisfeito com a persistente recusa dos bispos em tomar medidas apropriadas. Acompanhou Pat a uma reunião com o bispo Joseph Devine, de Motherwell. Em seus relatos, Pat e Draper dizem que a solução do bispo para a horripilante história era simples: "Pat, ele já é velho", apelou o bispo. "Deixe essa história no passado".

Pat mostra um arquivo de cartas, não só do bispo mas da equipe de salvaguarda da diocese. O tom é frequentemente hostil, como se "salvaguarda", na diocese, não envolvesse proteger as vítimas, e sim proteger a igreja contra as vítimas. Em uma das cartas, Pat é repreendido por telefonar ao escritório. "Será que eu poderia pedir", escreveu Tina Campbell, assessora de salvaguarda da diocese, "que se você deseja fazer contato com um membro da equipe de salvaguarda da diocese, use o correio como melhor caminho que o telefone?"

Em 2010, Pat procurou O'Brien. A despeito de ser o decano entre os líderes católicos do Reino Unido, O'Brien afirmou que não interferiria na área do bispo Devine. Draper subsequentemente escreveu a Devine, em nome de Pat, em fevereiro de 2011, pedindo uma reunião com o bispo. Devine recusou a presença de Draper e disse que Pat deveria falar com ele sozinho. "Caso ele seja acompanhado pelo senhor ou outra pessoa, a reunião será cancelada". Na reunião, Devine atacou Pat: "Você não passa de um alcoólatra", afirmou.

"Tudo que Pat desejava", afirma Draper, "era que o bispo pedisse desculpas e dissesse que acreditava nele". Em novembro daquele ano, Pat recebeu uma carta de Campbell na qual ela afirmava que "para tentar uma resolução", o caso foi encaminhado à polícia de Motherwell, que está investigando. O principal responsável pelos abusos contra Pat já morreu, mas um dos envolvidos continua vivo. Foi uma longa jornada.

A realidade da "salvaguarda" na Igreja Católica é que cada bispo comanda um feudo independente. Draper pediu provas de que as revisões anuais que a igreja aceitou realizar em 1996 estavam sendo conduzidas. Até agora, nenhuma prova foi apresentada.

Em resposta a questões referentes aos procedimentos da igreja em casos de abuso, Peter Kearney, diretor de comunicações da Igreja Católica, disse ao "Observer" que "'a igreja', tal como referida em sua pergunta, não tem posição na questão, já que, na Escócia, 'a igreja' consiste de oito dioceses separadas e autônomas, cada qual responsável por salvaguardas em seu território. A maneira pela qual uma queixa é tratada em uma diocese deveria ser igual à adotada em todas as demais, mas... esse nem sempre vem sendo o caso".

A resposta confirma, diz Alan Draper, o que ele vem dizendo há anos. "Os bispos exercem controle estreito e nada fazem pelas vítimas. O chamado coordenador nacional fica na prática excluído e relegado a treinar os laicos, e não tem poder para fazer coisa alguma de importante. É uma trapaça".

Ann Matthews, que também vive na diocese de Devine, sofreu abusos do padre de sua paróquia nos anos 80, quanto ela tinha entre 11 e 17 anos. Jamais contou aos pais. Eram muito devotos e o padre frequentemente orava com eles em casa. Depois de uma visita à avó de Ann, que estava por morrer, ele desceu para a sala e tentou fazer sexo com a adolescente no sofá.

Depois de aceitar que abusos haviam ocorrido, Devine discretamente enviou o padre para aconselhamento em outro local, e informou aos paroquianos que ele estava se aposentando por motivos de saúde. Ann diz que isso negou a outros pais a oportunidade de averiguar se seus filhos haviam sofrido abusos semelhantes. Alguns estudos sugerem que os padres que cometem abusos podem ter em média 50 vítimas.

Ann diz que sua vida foi destruída. Ela sofre de distúrbios alimentares, problemas de sono, ansiedade e depressão. Tem pensamentos suicidas. Não tem emprego. Ainda que tenha um companheiro, não pretende ter filhos, porque não deseja submeter uma criança às suas inseguranças. "Às vezes sinto como se tivesse morrido muito tempo atrás, mas que resta esse corpo que anda pela terra por não saber que deveria jazer".

Em uma reunião que teve padres de sua diocese como participantes, ela foi perguntada por que permitiu que o abuso continuasse. Mas Ann era uma criança quando começaram os abusos. Tentou se convencer de que o abuso era amor. "Eu respondi que estava lá conversando com eles como adulta, mas que aquilo tudo havia acontecido quando era menina. E um dos padres respondeu: 'Não venha com essa!', e depois acrescentou 'melhor dar a dinheiro a ela e corrê-la daqui'".

Ela não recebeu dinheiro, mas a igreja forneceu serviços de aconselhamento, pelos quais Ann é grata. Pelos 12 anos seguintes, a igreja não solicitou informações sobre o rumo do tratamento. No ano passado, a diocese escreveu, sem aviso, dizendo que as verbas de aconselhamento de Ann seriam retiradas. A sessão final aconteceria em maio de 2013. O conselheiro de Ann escreveu à igreja dizendo que ela tinha pensamentos suicidas por boa parte do tempo e ainda precisava de ajuda. "Foi como se elas tivessem calculado que sofri sete anos de abuso e recebi aconselhamento por 12, portanto o tempo acabou", diz Ann. "Eu não passo de uma pessoa que lhes custou verbas consideráveis".

Em 11 de fevereiro, quando o papa Bento 16 renunciou, Ann participou de uma reunião com Tina Campbell, do departamento de salvaguarda da diocese, sobre o fim do seu aconselhamento. Ela foi acompanhada de seu psicoterapeuta e da funcionária de uma organização de assistência. Mas o comportamento dos representantes da diocese para com ela foi tão hostil que Ann logo deixou a reunião, chorando.

A funcionária da organização assistencial confirma que precisou intervir porque o comportamento dos representantes da igreja havia sido inaceitável. Eles apresentaram um apelo, e foram informados de que a questão seria decidida em Edimburgo. Ann mais tarde recebeu uma carta dizendo que "devido à situação complicada na diocese de St. Andrews e Edimburgo", não haverá como decidir sobre o apelo. Ela está aguardando novas informações.

A igreja não tem normas definidas quanto a aconselhamento. Uma vez mais, cabe aos bispos decidir individualmente. Helen Holland foi vítima de sérios abusos físicos e sexuais nos anos 60 e 70, na Nazareth House em Kilmarnock. Quando criança, ela foi vendada, segurada por uma freira e estuprada por um padre. Mais tarde, ela mesma se tornou freira, mas posteriormente abandonou a ordem. Agora ela é vice-presidente da Incas, uma associação de vítimas de abusos escocesas, e já depôs em nome das vítimas ao Parlamento da Escócia.

O legado de seu abuso persiste, e Helen já recorreu a serviços pagos de aconselhamento em diversos períodos de sua vida. Mas nos últimos anos começou a sofrer "terrores noturnos" e ataques de sonambulismo que a levavam a sair caminhando de casa. "É como se eu tivesse voltado à infância. Meu conselheiro diz que é como se eu estivesse tentando entrar em contato com a criança interior e eu respondi que a pequena Helen tinha morrido. Ela não existe mais. Mas não é assim tão simples. Não consigo simplesmente esquecer".

Helen está recebendo pensão por seus problemas de saúde, e não tem mais dinheiro para pagar por sua terapia. Em junho de 2012, ela escreveu à igreja pedindo ajuda. Não recebeu resposta. A freira que praticou abusos contra ela era irlandesa e por isso Helen fez um pedido de assistência ao governo irlandês, que está bancando seu aconselhamento, em lugar da igreja.

Charles Simpson, um homem de Edimburgo que diz ter sofrido abusos e sido estuprado pelo padre de sua paróquia, nos anos 90, também colidiu com a muralha de silêncio da igreja. Charles teve problemas com álcool e drogas depois dos abusos, e terminou preso por invadir constantemente a sede da paróquia onde os ataques haviam acontecido. "Estava tentando me vingar da igreja. Foi um período de raiva na minha vida".

Ele continua a usar antidepressivos e metadona. "Quero funcionar normalmente, ser um membro da sociedade, mas é difícil. Ele me provocou tamanho medo e tamanha solidão, e dizia que minha família era pobre porque eram todos desempregados. As coisas que ele dizia me faziam sentir que não tinha força".

Silêncio

Charles buscou a ajuda de um padre que abordou O'Brien em seu nome. "O padre me disse para manter o silêncio", conta Charles, que subsequentemente pediu que a igreja bancasse sua terapia. Ele tampouco recebeu resposta. O silêncio o levou a recorrer à Justiça; agora, está processando a arquidiocese de St. Andrews e Edimburgo e pedindo 100 mil libras de indenização. Seu advogado, Cameron Fyfe, diz que a defesa empregada pela igreja no processo judicial foi surpreendente. Para se defender no processo, a igreja negou que um de seus objetivos fosse "propagar a palavra de Deus". E também alegou que não tinha poder para transferir ou demitir o padre, ou para controlar --e mesmo direcionar-- suas atividades.

Os prazos de prescrição da lei civil escocesa dispõem que qualquer processo por abuso teria de ter acontecido ou em prazo de três anos dos abusos ou do 16° aniversário da vítima. A maioria dos processos civis contra a igreja fracassa por esse motivo. Fyfe espera que o tribunal empregue seus poderes discricionários para permitir que o caso prossiga, mas o processo pode levar anos. "Dinheiro", diz Charles, com cansaço na voz, "não muda o que aconteceu. Sinto-me injustiçado. Para mim, eles não passam de gângsteres judiciais".

Na esteira do escândalo O'Brien, o arcebispo Tartaglia disse --como se a acusação contra seu predecessor fosse rara-- que "a acusação mais dolorosa" contra a igreja era a de hipocrisia. Mas a hierarquia sabe que novos escândalos estão a um murmúrio de distância. Os quatro queixosos contra o cardeal são acusados de participar de uma cabala gay. Não é fato. Mas padres e fontes informadas sobre a igreja dizem que existe uma cultura gay na igreja da Escócia. Tudo envolve compadrio, sigilo e uma cultura exclusivamente masculina. A igreja da Escócia ainda ostenta as cicatrizes de Roddy Wright, bispo de Argyll e das ilhas escocesas, que fugiu com uma mulher em 1996. Até que o comportamento de O'Brien fosse revelado, talvez fosse tentador para a hierarquia acreditar que os padres gays fossem "mais seguros". Casos homossexuais --especialmente com outros membros do clero-- são mais fáceis de esconder do que casos envolvendo mulheres e crianças.

A homossexualidade só é questão devido à postura pública da igreja quanto a ela. Seria desnecessário dizer que não existe vínculo entre homossexualidade e abuso. Mas Richard Sipe acredita que possa existir vínculo entre os abusos e o celibato. Em 1990, ele publicou um estudo conduzido nos Estados Unidos durante 25 anos, mostrando que em qualquer dado momento do estudo, 50% dos padres haviam estado ativos sexualmente nos três últimos anos. O número valia também para outros lugares --Espanha, Holanda, Suíça e África do Sul. "O'Brien e a Escócia não estão sozinhos e não constituem exceção", afirma Sipe.

A Igreja Católica criou uma hierarquia de moralidade sexual cujo pináculo é o celibato. Mas isso pode criar distorções. Os estudos de Sipe sugerem que cerca de 70% dos padres exibem imaturidade psicossexual. O celibato, ele argumenta, não é algo que a maioria das pessoas consiga manter. Quando os veículos legítimos de descarga da tensão sexual estão proibidos, haverá quem recorra a saídas ilícitas. "A maioria do clero é incapaz de lidar com a privação de sexo de uma maneira saudável", ele argumenta. Cerca de 6% dos padres fazem sexo com menores. Na Austrália, os abusos cometidos por sacerdotes católicos são seis vezes maiores que os de sacerdotes de outras igrejas combinados.

David tem experiência direta na Austrália e Nova Zelândia. Ele rejeitou propostas sexuais de um jesuíta de 65 anos de idade na Nova Zelândia quando tinha 14 anos. Mais tarde, David entrou para a vida religiosa e foi abordado sexualmente tanto em um mosteiro cisterciano quanto em um seminário. Na Austrália, ele foi abordado pelo prior de um mosteiro dominicano. Muitos padres têm histórias semelhantes, mas mantêm o silêncio porque continuam a ser parte da instituição. Já David deixou a vida religiosa.

Depois, ele teve um caso com um homem a quem chama Peter, que deixou um seminário em Roma. Peter mostrou a David os seus locais prediletos na cidade, e o conduziu ao convento no qual se confessava semanalmente. A confissão dele era sempre a última ser ouvida, depois das confissões das freiras, por um padre que mais tarde foi promovido a bispo. "No topo do convento", conta David, "havia uma sala confortável reservada às confissões. Mas o que havia começado como confissão logo se tornou um encontro de amantes. Peter, um tanto amargurado por ter saído de Roma, se apressava a contar em detalhes sobre o sexo que fazia com o padre, em suas férias. Envolvia intercurso anal". O padre --cujo nome David revelou-- operava nos altos escalões do Vaticano.

Há quem tenha tentado fazer de O'Brien uma vítima. Talvez ele tenha sido vítima de um sistema disfuncional. Mas as verdadeiras vítimas são as pessoas sem voz e sem poder, que em muitos caso vivem vidas que veem como maculadas e que não haverá como purificar. Michael é um antigo seminarista que procurou a polícia quando O'Brien se recusou a agir contra os responsáveis por abusos em seu seminário. Conhecido da imprensa escocesa como "Michael X", ele por fim foi indenizado em 42 mil libras pela Igreja Católica, que segundo Sipes já pagou mais de US$ 3 bilhões em indenizações por esse tipo de caso em todo o mundo.

Michael havia descrito anteriormente como informou seu orientador espiritual sobre o abuso. O homem garantiu a Michael que a culpa não era dele --e depois também lhe fez propostas sexuais. O que Michael não havia revelado antes foi a culpa que sentiu pelo que aconteceu a seguir, Ele teve de servir de acólito ao seu orientador espiritual em uma missa privada. "Quando estávamos rezando 'Senhor, tenha piedade'", Michael recorda, "ele caiu de joelhos e agarrou minhas pernas. Estava tremendo inteiro, dizendo 'Senhor tenha piedade, Michael tenha piedade'. Foi horrível. Ele se desintegrou diante de mim". O padre morreu de hemorragia cerebral não muito mais tarde. Quando surgiram rumores de que a causa havia sido o estresse, Michael sentiu remorso.

Muitas das vítimas arcam com a culpa e vergonha que deveriam caber aos culpados pelos abusos. Ann não consegue escapar à pergunta "por que você não fez alguma coisa?" Em e-mail enviado depois da entrevista, ela escreve: "Não sei por quanto mais tempo poderei continuar. O mais triste é que, mesmo que eu ponha fim à minha vida, seria apenas mais uma estatística".

Uma crise sempre acarreta uma escolha: seguir na mesma direção ou mudar de rumo. Quando Martin Luther King disse que silenciar era trair, estava dizendo que é preciso decidir. "Se fizemos a escolha certa", ele disse, "adiantaremos o dia em que a justiça rolará como a água e a retidão como uma poderosa corrente, em todo o mundo".

*Alguns nomes foram alterados.

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