sexta-feira, 9 de outubro de 2015

A crueldade sádica e o medo de ser ridículo


Nelson Ascher
Da equipe de articulistas
Do Mais!


Certo historiador, cujo nome não vem ao caso, conta nas memórias que, entre seus amigos, havia um mais velho, poeta de talento e algum renome, e um outro, novato no mesmo mister. Quando o novato mostrou seus versos ao primeiro, este pediu-lhe, por favor, que nunca mais voltasse a escrever poesia. Em vez de se ofender, o jovem não só acatou o conselho como, mudando de ramo, tornou-se romancista de sucesso. Cabe observar que no país centro-europeu onde isso ocorreu nos anos 30, Thomas Mann era, de longe, o narrador vivo mais lido e estimado pela intelectualidade liberal. E um dos primeiros temas do romancista alemão foi o risco que o quase-artista, o amador e o diletante corriam: o de cair no ridículo.

Bastante explorado mais tarde, o tema do ridículo já surge, cristalino e inescapável, em dois contos escritos em 1896-97, ou seja, quando o autor tinha apenas 21-22 anos: "O Pequeno Senhor Friedmann" (título também de sua coletânea de estréia) e "O Diletante" (como é chamado na tradução brasileira; o original significa antes "palhaço").

O senhor Friedmann em questão é pequeno porque um acidente, provocado na infância pelo alcoolismo de sua babá, tornara-o anão e corcunda. Apesar da deformidade, ele cresce amando a existência e suas coisas boas: pelo menos aquelas a que tem acesso. Obviamente excluído do comércio erótico-amoroso, programa-se em uma vida de deleites puramente estéticos, sobretudo de música. Até se apaixonar por uma mulher.

O palhaço da história seguinte não carrega qualquer deformação física. Oriundo de uma rica família que, embora falida, legara-lhe alguns recursos, pode se dar ao luxo de não pertencer à sociedade, não ter emprego nem outra ocupação a não ser a de apreciar artes, sobretudo a música. É verdade que não sabe de fato tocar piano, mas diverte-se algumas horas por dia improvisando para si mesmo ao teclado. Até claro, não tanto se apaixonar, mas simplesmente descobrir que sua posição – ou melhor, falta de – tornou-lhe inacessível uma mulher pela qual poderia se interessar.

Ao deixar de lado sua autodesprogramação amorosa, Friedmann é rudemente rejeitado, com um safanão, pela amada que nem sequer deixa de escarnecer de sua condição impossível. Ao "palhaço", quando de seu esboço de aproximação, basta-lhe a suspeita de um entreolhar irônico entre a amada presuntiva e o noivo desta para que tudo se configure. O senhor Friedmann – a cena ocorrera num Jardim – arrasta-se até um córrego onde, num acesso derradeiro de ódio a si mesmo, deixa-se afogar.

O outro conto termina com o protagonista constatando que não conseguirá levar a cabo nem mesmo suas ânsias suicidas. Ambos os personagens, cuja trajetória Mann traça desde o começo, têm cerca de 30 anos de idade. Ambos são também pessoas excluídas, por alguma razão, do mundo dito normal. Não é tanto a exclusão, porém, que fascina o autor quanto o fato de que a ela se vincula à apreciação artística.

Adorno – que assessoraria musicalmente o criador de "Doutor Fausto" – observou, num ensaio, a crescente dissociação entre a música erudita europeia e um público cada vez menos capaz de compreender formas elaboradas que, todavia, continuava apreciando. Na música – que requer, de quem a compõe, a fluência numa linguagem complexa, e, de quem a executa, o domínio de uma técnica difícil – essa dissociação se evidencia com mais obviedade do que nas outras artes; por exemplo, a da prosa.

Seria desta arte, a sua, que Mann, encarnando talvez seus personagens, falava? A abordagem psicobiográfica não goza hoje em dia de grande prestígio, mas a quantidade de material autobiográfico nessas histórias, principalmente em "O Diletante", fala por si mesma. Antes de aparecerem os grupos de teatro experimental nos colégios progressistas, alguém só era artista na medida em que conseguisse demonstrá-lo no seu trabalho. Algo que, antes do surgimento das terapias não-ortodoxas, gerava infelizmente certa ansiedade. Não ser mais do que parte do público e ainda assim se julgar artista: isso podia ser punido com ridículo.

Não que este seja o único tema. A erupção do erótico como desestruturador de disciplina estética – tópico central de "Morte em Veneza" – mostra-se nessas narrativas com todos os contornos. O que ressalva, no entanto, é seu caráter distinto de exorcismo. Na crueldade sádica com que trata os fracassados, o escritor parece retratar o castigo que ardentemente deseja não vir a merecer. Honestamente, ele demarcou a idade de 30 anos como a data limite na qual seu sucesso ou fracasso estaria inapelavelmente decidido. Em julho de 1990, Mann enviou o manuscrito completo de "Os Buddenbrooks" ao seu editor. Tinha, então, 25 anos.

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