sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

O cineasta japonês Hayao Miyazaki é o grande mago do cinema moderno



Por Nigel Andrews
Do Financial Times
Tradução de Paulo Migliacci


"É o destino da vida moderna que repetidamente percamos o contato com a natureza, o meio ambiente, o planeta. Mas tentamos repetidamente retomá-lo. É como um círculo. Nos corações e almas das crianças, quando elas nascem, a natureza já existe, com raízes fundas. Por isso, o que desejo fazer em meu trabalho é encontrar um caminho para suas almas" - Hayao Miyazaki

Magia é uma palavra usada demais e uma mercadoria encontrada de menos. Como palavra, ela é repetida incansavelmente, quer como superlativo coloquial, quer como marca multitarefas de aprovação jornalística. Mas como mercadoria, ela é mais rara que dentes de dragão. Onde se pode encontrá-la, e em que forma? No trabalho de um prestidigitador? Talvez, mas verdadeira magia é mais que o simples truque de um ilusionista. Em um filme de fantasia e aventura de Hollywood? Nesse caso, ela muitas vezes terá algo de kitsch, artificial e exibicionista, por obra de mutações produzidas via computação gráfica.

Mas e quanto à magia relacionada à palavra mago vidente, visionário, encantador? E quanto à magia definida pelo dicionário Oxford como algo que influencia os acontecimentos cotidianos pelo uso de forças misteriosas ou sobrenaturais, ou que a Wikipedia, em um raro momento de exatidão na busca, define como tentativa de entender, experimentar e influenciar o mundo usando rituais, símbolos, ações, gestos e linguagem?

Se o grande mago do drama de ficção é Próspero, de Shakespeare, um mago que serve de agente a um artista mágico, o grande mago do cinema moderno é o japonês Hayao Miyazaki, com ou sem os personagens de animação que ele cria para executar seus encantos. Ele é o maior fantasista do reino do cinema porque seus filmes são mais que fantasias. Como A Tempestade, seus melhores filmes são fábulas que buscam sondar as profundezas da mortalidade e da moralidade. Ele remapeia, e até re-mitifica a experiência por meio do uso de rituais, símbolos, ações, gestos e linguagem para tomar de empréstimo a definição da Wikipedia.

Protegido contra intempéries, de alguma maneira, eu não havia assistido a nenhum dos filmes de Miyazaki antes de A Viagem de Chihiro, em 2001. Não demorei a perceber que aquele era o melhor filme de animação que já tinha visto. Continua sendo. É um conto de fadas que se passa entre deuses, monstros, jovens e tiranos ;em um parque de diversões aparentemente abandonado que se transforma em império de possibilidades oníricas, e trata de temas como a perda, o amor, o amadurecimento e a identidade.

O filme oferece algumas das maiores imagens já propiciadas pela narrativa de fantasia. Os pais que se transformam em porcos comilões o herói que toma a forma de dragão voador; o feroz monstro da lama; o trem que viaja na água. Continua a ser o único filme ao qual, usando a magia da matemática surreal só para aquela resenha, atribuí seis estrelas, em uma classificação cuja nota máxima era cinco.

Para Miyazaki, as mudanças propiciadas pela magia têm propósito moral e importância poética. Sua preocupação não é apenas com a mutabilidade das formas ou com os seres transfigurados, humanos ou animais, mas com vidas, aspirações, ideias e emoções que mudam de forma.

Todos, em seus filmes, podem ser outra pessoa, ou mesmo diversas outras pessoas, dentro de uma só história. Em O Castelo Animado (2004), Sophie, a heroína enfeitiçada, alterna entre a forma de jovem garota e de velha feiticeira. Howl, o bonito dono de castelo, também passa por rápidas metamorfoses, se tornando cachorro, espantalho e um avião de caça humano. Mesmo Calcifer, o fogo da lareira ;com seus olhos dançarinos e sua boca sarcástica; saltita, metaforicamente, para indexar mudanças de clima, emoção e anseios.

Quem um personagem é, a cada dado momento, depende de em que ponto da história, ou de sua evolução pessoal, o personagem se encontra. Na vida de um personagem ou história de Miyazaki, a catástrofe pode correr em companhia da esperança e da expectativa, o horror ao lado do humor, a realidade ao lado do sonho ou pesadelo.

E nem sempre é necessária uma transformação física. Miyazaki, como Hitchcock, tem o talento de encontrar o apocalíptico no cotidiano. E isso não pode ser demonstrado melhor do que pela sequência de abertura de A Viagem de Chihiro. Um carro que está percorrendo uma estradinha no campo se vê detido por uma grande muralha, como que um muro de arrimo ferroviário, e a única passagem é um túnel que conduz a lugar nenhum. É a singeleza surreal uma estrutura ordinária em um lugar extraordinário que parece fantasmagórica, até sinistra, nesse portal para um outro mundo. É a versão de Miyazaki para a toca do coelho de Alice no País das Maravilhas.

Essa conexão com o real é o que energiza o reino irreal de Miyazaki. O pai dele era operário em uma fábrica de componentes para aviões, e seu trabalho raramente permite que esqueçamos o fato. Máquinas voadoras realistas, fantásticas, belas, ferozes, grotescas fazem parte de quase todas as suas histórias, e isso atinge o clímax em seu filme de despedida, Vidas ao Vento, de 2013. O filme, uma biografia de um projetista japonês de aviões de caça, também é uma biografia do patrimônio de Miyazaki. Beleza e terror, bem e mal, vivem tanto no passado do cineasta quanto no passado do Japão.

Mas que grande artista criou arte que vá além de si mesmo? Se a arte não estiver conectada ainda que de modo distante à vida de seu criador, aos seus sonhos, desejos, amores e ódios, ela não tem fonte de energia. A grandeza de um artista está no escopo desse além. Os temas e percepções de Miyazaki são miraculosamente dispersos, mas também afixados como que por um cabo subterrâneo à psique do cineasta.

TRÊS OBSESSÕES

Ele é fanático quanto ao meio ambiente e à adulteração ou salvação de nosso planeta. Longe dos estúdios, um de seus passatempos é ajudar sua comunidade a remover detritos dos rios. Desse Miyazaki vem a magistral ameaça cômica do Monstro do Lodo (de A Viagem de Chihiro), a onipresença fantasmagórica dos Homens Bolha feitos de óleo e sempre mudando de forma (em O Castelo Animado) e o clímax de Princesa Mononoke, no qual maldição e redenção chegam de modo espetacular a uma paisagem maculada pelas satânicas engrenagens da indústria.

A guerra é uma segunda paixão ou antagonismo apaixonado. Nausicaa - A Princesa do Vale dos Ventos  (1984), uma mistura fantasiosa de ficção científica e folclore nascida dos mangás, e o primeiro grande sucesso internacional de Miyazaki, é um permanente armagedom. A guerra, também guerra aérea serve de ruído de fundo e de palheta pictórica de fundo a O Castelo Animado, como uma ferida no céu que não para de se reabrir dolorosamente. Em Vidas ao Vento, a guerra é um pacto faustiano que o Homem Inventor faz com o mal, e o preço que ele paga pela liberdade de sonhar.

A terceira obsessão: crianças e o processo de amadurecer. Se os jovens são a esperança do mundo, não podemos permitir que essa esperança dependa de inocência imaculada. As crianças nos filmes de Miyazaki são colocadas à prova, especialmente as meninas (e isso por um cineasta muitas vezes classificado como feminista).

O verão para as duas irmãs de Meu Amigo Totoro (1988), privadas da presença da mãe que está internada no hospital (como aconteceu com Miyazaki, cuja mãe passou muito tempo internada com tuberculose espinhal nos anos 50), se torna uma representação repleta de fantasia sobre nascer, a infância e a aquisição da sabedoria. Elas fazem amizade com um gigantesco e carinhoso animal da floresta, Totoro, que serve como uma espécie de mãe substituta. Totoro oferece sustento (em uma cena, faz uma árvore crescer por mágica) e iniciação para a vida (as leva a voar por sobre os campos em um pião aéreo).

E quando se trata da obrigação materna de permitir a troca do ventre do crescimento pelo espaço do crescimento, Totoro compartilha o papel com seu amigo, o Ônibus Gato. O ônibus tem a forma de um gato vivo com janelas, olhos como faróis e patas como rodas e é uma das grandes criações cômicas e surreais de Miyazaki, como um refúgio uterino que tivesse crescido e pudesse percorrer o mundo.

A Viagem de Chihiro também é em larga medida um desfile de pantomimas sobre o processo de amadurecer. Chihiro, a pequena heroína, está sendo levada pelos pais à sua nova escola. Quando não a encontra, a família tropeça em um reino fantasmático que oferece a Chihiro a verdadeira educação de que ela precisa uma educação para a vida, para a sabedoria e o sentimento.

Entre as coisas que ela aprende estão: nenhuma busca humana é realizada sem trabalho duro e adversidade; nenhuma figura de autoridade (nem mesmo os pais) merece confiança acrítica; sempre acredite no que vir, e não naquilo que lhe disserem; e se o amor disser que a acompanhará até os confins da terra, faça-o cumprir sua promessa.

Mas Miyazaki não passa o tempo todo dando lições de vida. Há ornamentos, glórias e piadas soltas espalhadas por todos os filmes, minúcias inconsequentes que revelam uma imaginação infatigável. Veja as minúsculas criaturas que não param de surgir, como um insano coral, em seus filmes. Em Princesa Mononoke, os pequenos fantasmas da floresta com seus olhos ocos e cabeças rotativas, em Meu Amigo Totoro e A Viagem de Chihiro as criaturas de fuligem, pequenas aranhas que correm, conspiram, e aprontam.

Ou veja o delírio de inventividade que resultou em O Castelo Animado. Parte tanque, parte fortaleza, parte fábrica, parte cortiço, parte gigantesco bule de chá, ele ronca e cambaleia pela paisagem com suas pernas parecidas com as de uma galinha, e cada uma de suas partes parece se sacudir e reajustar separadamente durante o movimento. O castelo apita, o castelo range, o castelo lança fumaça de suas chaminés.

É um triunfo de insanidade organizada e poética, com um toque de mágica. O que talvez seja a melhor maneira, ou a única maneira, de resumir o cinema de Hayao Miyazaki.



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