sexta-feira, 25 de abril de 2014

“Sou um grande desconhecido no Brasil”


O escritor José Luiz Passos (Foto: Fernanda Fiamoncini)

Por Gabriela Soutello
Da Revista Cult

“Quando, aos poucos, Pedro de Alvarenga Rubião, protagonista do sexto romance de Machado, Quincas Borba, passa a acreditar que é Napoleão III, o assombro dos seus amigos e convivas vem acompanhado, também, de uma estranha sensação de respeito”. É calcado sobre essa perspectiva dual que estrutura a complexidade ambivalente dos indivíduos, que José Luiz Passos defende as personagens machadianas como pessoas: reais, ilimitadas, mutáveis e autônomas, autoconscientes e construtoras de um universo próprio em constante embate moral frente à observação e avaliação de um outro.
Na segunda edição de Romance com pessoas – A imaginação em Machado de Assis, revisada e ampliada, o autor explora, em ensaios críticos, as intenções que delimitam o ser e o parecer diante do plano social das narrativas machadianas. As principais diferenças entre a primeira edição (Edusp, 2007), e a lançada, em abril pela editora Alfaguara, consistem no acréscimo de ensaios e no corte de redundâncias, além da diminuição das notas de rodapé, da atualização da bibliografia e dos novos títulos entre as seções. Segundo José Luiz, trata-se de um livro “com um apelo menos acadêmico, mais arejado e agradável de se ler”. Para o autor, ganha um novo espírito e vira o ensaio literário “de um escritor que tenta entender outro escritor”.
José Luiz Passos é recifense, graduado em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor de Literatura brasileira e portuguesa na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, país em que realizou mestrado e doutorado e onde vive há dezoito anos. Levantando questões como a dissimulação, a confiabilidade duvidosa, a escassez de idealismos românticos e as contradições, instabilidades e transformações típicas da complexidade humana, que lhe deram dois consagrados prêmios nos últimos meses, ele expõe de maneira nova e precisa o estudo de mecanismos psicológicos e representativos existentes nas pessoas de Machado de Assis.
Em entrevista à CULT, José Luiz discutiu a estrutura narrativa do livro, as assimetrias das personagens de Machado, a complexidade espacial dos seus próprios romances e o seu papel como escritor pernambucano – “imigrante brasileiro em um país estrangeiro”, ainda pouco conhecido no Brasil.

Qual é o principal enfoque dado por você no livro Romance com pessoas – A imaginação em Machado de Assis (2014)?
Existe uma diferença radical entre a maneira como Machado de Assis concebe a vida interior de seus personagens e aquela como os outros escritores do século 19 no Brasil fizeram a mesma coisa. Machado cria uma noção de interioridade para o personagem brasileiro, o que chamo de vida moral, ou seja, experiências e sentimentos que associamos a uma avaliação de nós mesmos: emoções reflexivas como a culpa, a vergonha o remorso ou o ressentimento. O que tento mostrar é que Machado de Assis é o autor brasileiro que traz para a literatura latino-americana, talvez pela primeira vez, a noção da “pessoa” como como lastro para a ficção; sujeitos que se assemelham à maneira como nós próprios nos concebemos. O livro pretende analisar a linguagem moral que usamos para avaliar quem nós somos perante os outros. É um estudo da composição da imaginação moral dos personagens, que mostra o adensamento crescente na composição do caráter psicológico desses sujeitos. E esse estudo parte de uma hipótese fundamentalmente textual.

Qual é essa hipótese? De que maneira ela é abordada no livro?
Ela vem da leitura dos romances e dos contos que fiz durante anos, além do estudo da biblioteca de Machado de Assis – inclusive a “marginalia”, ou seja, daquilo que ele anotou e sublinhou. Foi assim que entendi o interesse que ele tinha na literatura do Renascimento (e, depois, na do século 18), em Cervantes e particularmente em Shakespeare. Tentei acompanhar, na obra de Machado, como ele teria se interessado por autores ingleses em uma época em que a literatura latino-americana estava voltada predominantemente para o modelo francês. Romance com pessoas é um livro ensaístico e livre, que muda de perspectiva e se aproxima da história literária, da filosofia, da crítica e da sociologia. Vou lançando mão de vários métodos, exemplos e estudos de caso para traçar, aos poucos, um painel, a fim de entender o desenvolvimento e a construção da personagem machadiana e dos valores associados à profundidade psicológica em seus personagens. Romance a romance, o livro vai mostrando como esses heróis, protagonistas e narradores constituem uma vida interiormente mais complexa, por causa da relação que estabelecem com o tempo; são personagens que se mascaram e mudam ao correr da pena.

Como se deu a escolha do título?
O título parece esquisito, mas é a hipótese central do livro: pode-se pensar que a diferença entre uma pessoa e uma personagem esteja no fato de que a pessoa existe e a personagem não, porque é ficção. Na verdade, há personagens que foram concebidas para se parecerem com pessoas, como é o caso das de Machado, enquanto outras estão mais próximas a valores típicos ou ideais: “A virtude”, “A adúltera”, “O vilão”, como à época do Romantismo e do Naturalismo. Estas, por causa da sua simplicidade de individuação, não representam aspectos fundamentais daquilo que associamos às pessoas, porque ninguém é tão pura quanto Iracema nem tão vilanesco quanto João Romão, o dono da pensão em O cortiço. Reconhecemos neles símbolos ou arquétipos. Por outro lado, há personagens que se parecem com pessoas, tamanha é a complexidade de suas vidas. Esse tipo de realismo psicológico, que também está em Tolstói, Henry James e Dostoiévski, é o que me interessa esclarecer. Romances com pessoas são justamente aqueles romances escritos com personagens tão densos quanto pensamos que somos nós próprios.

De que maneira é possível associar, hoje, as “pessoas” machadianas com as pessoas reais?
Bentinho, de Dom Casmurro, por exemplo, era um crápula, mas um crápula que às vezes é encantador e às vezes sofre, enquanto nos encena seu drama de consciência disfarçado de libelo acusatório. Os personagens de Machado são ambivalentes, problemáticos, ardilosos e volúveis. Não há como você colocar o dedo e dizer que “essa pessoa é só isso”, porque ela não é. Elas nos encantam precisamente por causa dessa grande variedade de emoções e experiências pelas quais passam, e é nessa variedade que se constitui uma forma mais robusta de pensar o que é a pessoa humana na modernidade: pessoas contraditórias, pessoas que não se conhecem de fato, múltiplos e desiguais. Nós passamos por várias metamorfoses na vida e reconhecemos essas metamorfoses como uma das riquezas e condições de se estar na modernidade; por isso posso trocar de sexo, posso trocar de emprego, de filiação política. Tal capacidade radical de mudança no sujeito (e do sujeito para com os demais) é algo que caracteriza a modernidade. A loucura, o descontrole, a incontinência da imaginação são algumas das questões trabalhadas por Machado. Suas pessoas possuem relações contraditórias e complexas com o passado, e assim o reinventam e manipulam para poder entender suas motivações e atuar nelas, levando em consideração as motivações dos outros. Isso pouco existe em Alencar, por exemplo. O dinamismo moral é uma prerrogativa fundamental do sujeito machadiano.

Por que motivo você acredita que Machado tenha criado essa identidade moral em seus personagens?
Quando falo “moral” não quero dizer “moralizante”, mas eticamente complexo. Esse é um momento em que nossos escritores passam a prestar mais atenção a questões psicológicas, como delírios, sonhos, a loucura. Machado tinha grande interesse em dinâmicas moral e politicamente complexas, nas quais alguém precisa esconder ou fingir convicções ou sentimentos, para não se dar mal ou perder a possibilidade satisfazer seus desejos de controle sobre o outro. A cidadania relativa que alguns desses sujeitos (tanto os “de cima” quanto mais subalternos) têm lhes dota de uma capacidade para escamotear suas emoções. Na obra de Machado esse aspecto vai crescendo e se fortalecendo, transformando-se numa crítica social contundente, sobretudo a partir de [Memórias Póstumas de] Brás Cubas (1881), que se adensa até o último romance, Memorial de Aires (1908). Seus modelos literários influenciaram uma visão diferente em relação aos valores do século 19. Há em Machado uma espécie de anacronismo deliberado, já que, em vez de apoiar o cientificismo e o positivismo do período, ele adota uma perspectiva mais cética. Vai buscar, como modelo, autores que na época eram “démodé”, resultando numa mirada crítica para com os valores da época, enfatizando reflexões sobre problemas de natureza ética.

Diante de um outro, qual seria então o seu papel, José Luiz, como escritor?
Escrevo porque eu sou crítico literário – do ponto de vista mais pragmático, é isso que sei fazer. Mas, de um ponto de vista existencial, escrevo para expressar da melhor maneira possível questões que (espero) tenham relevância coletiva, muito embora representem demônios particulares, que não se calam. Então, com isso busco tornar visíveis relações e problemas que de outra maneira não seriam suficientemente inteligíveis ou articuláveis sem a mediação da escrita. Como escritor tenho meus horizontes literários na relação com um Pernambuco agrário, bem como na realidade iniludível de que sou imigrante brasileiro em país estrangeiro. Essas questões – que têm a ver com a distância e a adaptação – eu desenvolvo na minha ficção, porque são questões que não me abandonam; e sinto vontade de fazer com que sejam relevantes para outras pessoas, não apenas para mim. O gênero do romance é o que eu mais admiro e o mais gosto de ler, então passei a fazer, tanto na crítica quanto na ficção literária, tentativas de responder a questões que para mim existem como expressão de uma linguagem individual na busca de uma experiência na imaginação de outros.

No prefácio do livro, Pedro Meira Monteiro cita que há uma inspiração weberiana despontada no livro. De que maneira a teoria da ação social de Max Weber se entrelaça com os personagens de Machado?
A teoria da Ação Social de Weber é justamente uma tentativa de entender o agir mediante as motivações envolvidas no ato. Nem toda ação humana é social; a ação é social quando um sujeito leva em consideração a expectativa de atuação ou a resposta de um outro. E, no momento em que você conta com a reciprocidade, você se põe no lugar do outro; você imagina a presença do outro como horizonte de atuação. O que Pedro Meira Monteiro destaca é meu uso da teoria da ação social de Weber para se entender a maneira como Machado descreve as motivações de seus personagens de modo mais moderno e complexo, em que, por exemplo, o amor não exclui o cálculo racional. Há uma nova racionalidade envolvida na constituição das motivações, por trás das atitudes desses personagens.

Com seu segundo romance, O sonâmbulo amador (2012), você recebeu dois prêmios recentes: o Grande Prêmio Portugal Telecom de literatura de 2013 e o 2º prêmio Brasília de literatura, na semana passada. Como é para você estar inserido nesse contexto literário?
Para mim foi uma grande surpresa, fiquei contente. Estou longe do Brasil há dezoito anos, nasci em Catende (PE), em uma usina de açúcar; comecei um mestrado na Unicamp (SP) e vim estudar nos Estados Unidos, em 1995. Tenho uma conexão forte com o Brasil: ensino literatura e cultura brasileira, sou casado com uma brasileira e falo português em casa com meus filhos. Como disse no discurso de aceitação do prêmio Portugal Telecom, sou desconhecido no Brasil. Nesse sentido, o prêmio é importante, porque, é claro que ele não torna meu romance melhor, mas o torna mais visível para pessoas que de outra maneira não o leriam. Assim, saio um pouco desse isolamento e entro em uma relação mais produtiva, mais integral, com o cenário literário brasileiro. Escrevo há vinte anos; esse livro é meu quarto livro. Tenho dois romances, dois livros de crítica, ensaios em português, inglês etc. Mas, como atuo na vida acadêmica, e ela tende a ser mais isolada do leitor médio e da grande mídia, eu sofria de certa distância com relação à circulação e aos debates literários. Essa distância não foi negativa, porque me deu espaço e uma reserva técnica de trabalho. Mas os meus livros são mais importantes do que eu, no sentido de que quero que as pessoas conheçam a história dos livros, e não a minha história. Antes dos prêmios, essa relação era mais complexa e até mais cruel, porque essa distância pesava. Agora não: acho que os prêmios são uma confirmação de que o caminho que escolhi é bem-vindo, e eu vejo neles um sinal de que eu vá adiante.

É possível estabelecer algum tipo de relação entre Romance com pessoas e O sonâmbulo amador?
Sou um romancista que tem interesse na construção dos personagens, e nem todos os romancistas são assim. Em um romance policial ou de autoajuda, por exemplo, a importância do enredo é maior que a do personagem; o que é importante é saber quem matou ou qual é a jornada que você precisa fazer para chegar a um contentamento interior seguro, inquestionável. Por outro lado, há uma literatura em que poucas coisas acontecem, há mais reflexão do sujeito a respeito de si mesmo, como acontece em Proust, Machado e Clarice Lispector, com suas articulações sobre o indivíduo no mundo, sobre o mistério do outro, sobre o problema da incomunicabilidade. Há uma preocupação com a vida interior, uma relação complexa com o tempo, um passado que irrompe no presente como obstáculo, como fardo ou como chave. Encontramos isso em Dom Casmurro e em Memorial de Aires, por exemplo. Da mesma forma, meus romances não são lineares; frequentemente o passado retorna a meus personagens como enigma com o qual eles precisam lidar. Em O sonâmbulo amador há uma temática relacionada à ideia da interioridade, destacada através do sonho, do desejo, do trauma. Em Machado, a grande questão da vida interior também passa por aí. Aprendi com ele. Até poderia dizer que copiei dele… Então, acho que há, sim, uma ligação orgânica entre os dois livros.

Você é um escritor pernambucano, nascido em Recife. Em sua opinião, como está o panorama cultural pernambucano hoje? Existem outros autores da região do nordeste que você destacaria?
Há uma efervescência cultural no Nordeste. Por exemplo, filmes como O som ao redor (2012) e Tatuagem (2013), o teatro pernambucano e nomes importantes na literatura. Eu apontaria, entre vários outros, Ronaldo Correia de Brito, cearense que mora há muitos anos no Recife; Marcelino Freire, que é do sertão e vive em São Paulo; Wellington de Melo, Christiano Aguiar, Lira Neto, Samarone Lima; Ariano Suassuna, ainda atuante; Francisco J. C. Dantas, do Sergipe, um dos gigantes, na minha opinião; juntamente com o mestre Raimundo Carrero, também do sertão de Pernambuco, além de, entre os mais jovens, Bruno Liberal, que venceu o Prêmio Pernambuco no ano passado. Então, há um bom momento na ficção do Nordeste e há pessoas que não são do Nordeste mas que estão lá, como Maria Valeria Rezende, que é de Santos (SP), se não me engano, e mora na Paraíba há muitos anos. Para que um autor nordestino seja publicado e distribuído nacionalmente é preciso passar por um sistema cultural estabelecido no eixo Rio-São Paulo, e alguns autores do Nordeste não conseguem chegar até aí – não porque não sejam bons, mas porque as portas para os que vêm de fora são poucas. Porém, de modo geral, acho que esse é um bom momento; não só na literatura, mas também no jornalismo, na biografia, no cinema e na música.

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