quinta-feira, 20 de março de 2014

As loucuras de Carlos Sussekind

 
Ilustração de Carlos Sussekind para o livro "Ombros altos" 

Por Alexandre Gaioto
Da Revista Cult

Carlos Sussekind de Mendonça Filho não se importou com as reclamações dos banhistas. Houve quem lhe jogasse areia e gritasse ofensas, enquanto mães assustadas corriam para tampar os olhos das crianças. Peladão na praia do Leme, decidiu que, tal como um Jesus nudista, iria perambular sobre as águas do mar, numa andança longa, poética e sacana, sem medo de se afogar. Atendendo as ligações dos banhistas, a radiopatrulha mostrou eficiência e chegou rapidamente ao local para dar um jeito no peladão. Em meio ao surto, aos 21 anos, Carlos foi encaminhado à delegacia e, por lá, achou que tinha a obrigação de passar uma temporada metido num sanatório. A internação durou um mês e meio.

“Foi tudo muito divertido. Os loucos eram ótimos, bons parceiros para conversar e fazer loucura. A única coisa ruim eram os eletrochoques. Nunca mais tive outro surto daquele”, recorda Carlos, hoje aos 80 anos de idade, dando uma boa risada.

Sentado no sofá de seu apartamento em Copacabana, onde mora junto com duas filhas e três gatos de estimação, o escritor, tradutor e desenhista carioca topa falar numa boa sobre a experiência no sanatório. Sem embaraços nem arrependimentos, ele não economiza detalhes para lembrar aqueles dias malucos, levados para as páginas de seus quatro romances: Ombros altos (1960), Armadilha para Lamartine (1975), que une a narrativa de Carlos com excertos dos diários de seu pai, o jurista Carlos Sussekind – daí o estranhamento na capa da obra, assinada pela dupla Carlos& Carlos Sussekind – ,Que pensam vocês que ele fez (1994) e O autor mente muito (2001), escrito em coautoria com o psicanalista Franciso Daudt.

Carlos fala sobre loucos e loucuras, mas evita discorrer sobre sua própria literatura. E nada diz sobre o processo de sua escrita, a técnica do romance ou o caminho trilhado para atingir a voz própria. “Você me desculpe, mas eu não lembro mesmo de nenhuma história para te contar. Até queria te ajudar. Faz tanto tempo que não falo sobre isso, que até já esqueci as coisas. Sobre o que mesmo fala o Que pensam vocês que ele fez? O título é ótimo, mas nem lembro sobre o que é”, revela Carlos.

Na década de 1970, sua Armadilha para Lamartine estava sempre em discussão no universo literário e seu nome era constantemente citado nos cadernos de cultura dos principais jornais do País. Mesmo com a publicação de novas obras, Carlos caiu num ostracismo tremendo. “Eu não sei o que aconteceu. Todos escreviam sobre mim. De repente, teve uma mudança brusca. Achei estranho”, diz, antes de perguntar: “Qual livro meu você mais gosta?”

Digo que gosto de todos, mas prefiro Ombros altos. Um romance delicado, lírico, com um final perturbador e insano: uma das melhores obras da literatura brasileira contemporânea – e, infelizmente, pouco lembrada. Como não se apaixonar por Paula, a musa mitificada pelo narrador? Como não se apaixonar por aquela escrita, falsamente simples? Num romance conciso, de umas cento e poucas páginas, há trechos fabulosos, como a íntegra do capítulo “VI”:

“Sonhei com você. Conheci que era você por causa da orelha tão pequena. Você repartia o cabelo em duas metades, olhando mansamente para mim. As duas metades eram para dizer que me aceitava. De repente riu e disse:

‘Deixa de ser bobo. Você está sonhando. Você deve ter lido que as japonesas se dão a conhecer pelos penteados’.

Desapontei. Eu nada sabia sobre as japonesas e seus penteados. Mas você é assim mesmo”, escreve Carlos, em Ombros altos.

O autor fica feliz com o elogio. Também está feliz com a nova edição de Ombros altos que a 7Letras soltou no ano passado. E, sobre esse livro, ele até topa falar alguma coisa.

“Você sabe que é uma história verdadeira?”

Confesso que desconfiava, mas, naturalmente, estou surpreso.

“Paula era o amor platônico do papai”, comenta, rindo, Adriana Sussekind, chegando à sala com um cafezinho caprichado. “E, depois de 50 anos da publicação, ele realizou, quer dizer, não sei se posso falar… Posso, pai?”

“Não é bom falar, não”, interrompe Carlos, sorrindo. “Tem outra coisa interessante. Na edição da 7Letras, pedi para colocarem logo em uma das primeiras páginas a foto da Teresa, de quando ela era criança. Da Teresa, não, né, da Paula”, comenta o escritor, rindo, dando com a língua nos dentes.

A Paula de Ombros altos, então, na vida real, é a tal Teresa. Com olhar firme e trancinhas no cabelo, a musa surge em preto e branco, no início da obra, sem esboçar sorriso algum. Quase a contragosto. Bem típico da personagem mesmo.

Antes de tomar o café, Carlos pede um segundo e diz que vai buscar um presente para mim, lá dentro do apartamento.

Herança literária

Ao escrever Armadilha para Lamartine, Carlos se apropriou dos diários do pai, adulterando, com mão de ficcionista, o conteúdo original dos textos. Redigidos de 1938 a 1963, os diários revelam hábitos e costumes da burguesia carioca e trazem diversas opiniões, escritas no calor da hora, sobre períodos políticos, como o Estado Novo de Getúlio Vargas e a Segunda Guerra Mundial. Os diários renderam 80 cadernos, resultado de uma escrita obsessiva. Carlos Sussekind (pai) começava a escrever pela manhã, comentando as expectativas do dia que teria pela frente. Voltava aos diários à tarde, redigindo mais um pouco, e, à noite, dava uma geral nas coisas que havia feito e pensado. Uma parte deste conteúdo, até a década de cinquenta,foi digitalizada e está disponível no Instituto Moreira Salles.

À Adriana, coube o papel de levar os diários à academia. No Mestrado em Memória Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO), sua dissertação abordou a vida cultural no Rio de Janeiro durante a Segunda Guerra Mundial, por meio dos relatos do avô.

“Ninguém mais da família se importa com os diários. Só a gente”, lamenta Adriana, apontando para a estante de livros – boa parte dedicada somente à acomodação dos diários. “50% do Armadilha para Lamartine foi tirada deles”, diz Adriana.

“Armadilha para Lamartine é o livro que eu mais gosto. Acho que escrevi com mais prazer”, observa o autor, enquanto volta para a sala, sinalizando que a memória não está tão ruim assim. Nas mãos, a raríssima primeira edição de Ombros altos – na época batizada de Os ombros altos –, de 1960. “Essa é para você”, avisa Carlos, estendendo o livro.

O escritor traz uma grande pasta e, sentado no sofá, vai tirando dezenas de desenhos lá de dentro. São desenhos grandes, todos em preto e branco, feitos com lápis ou com caneta preta.

“Isso é o que eu mais gostava de fazer. Até mais do que literatura.”

Sombras claras e fortes se alternam no primeiro desenho impressionista, intitulado Tudo passa. Duas garotas praticando sexo oral uma na outra também surgem nos traços de Carlos, compondo o erotismo da série As irmãs apaixonadas. Numa das imagens da sequência Escritório, o autor se retratou no centro de uma sala claustrofóbica, com algumas pessoas ao seu lado, sentado em frente à máquina de escrever. Com um olhar furioso, Carlos está prestes a explodir dentro da sala. A escrita, ali, não parece uma atividade muito prazerosa, não.

O escritor dá risada. Concorda que a escrita é um trabalho árduo. E digo que ele deveria preparar uma exposição, reunir esses quadros todos seria algo fantástico. Ele escuta, mas não parece muito empolgado.

“Seria bom mesmo”, responde a filha. “Só que é tudo tão difícil de organizar, arranjar patrocínio… Além do mais, ele deu muitos desenhos para os amigos.”

Carlos continua mostrando os seus desenhos, agora, apontando-os na parede. Pendurados na sala, cerca de quinze imagens trazem mais traços impressionistas. Exibe, com um sorriso nos lábios, o retrato emoldurado de Paula, a musa de Ombros altos. Quase todos os desenhos foram feitos em 1959.

“Foi mesmo um ano bem criativo”, reconhece Carlos. Hoje, ele diz que não guarda nenhum material inédito na gaveta e não dá sinais de que voltará à literatura – nem mesmo às artes plásticas. “Não sei o que aconteceu. De repente, escrever e desenhar tornou-se tão cansativo. Deve ser a idade”.

Sem reclamar

Em sua trajetória, Carlos nunca foi contemplado com prêmios literários, porém caiu nas graças de alguns críticos e escritores. Arnaldo Jabor afirmou que Armadilha para Lamartine é “uma obra-prima”. Leyla Perrone-Moisés notou a voz própria do romancista, dizendo que “sua particularidade é de parecer simples e transparente, mas de ir destilando, nas entrelinhas, uma ironia finíssima e corrosiva”. Ana Cristina Cesar, por sua vez, acrescentou que Armadilha para Lamartine é “um livro único na ficção brasileira”, com “a qualidade de nos virar a cabeça silenciosamente, com discreta malícia e humor, com impecável mansidão, e nos lançar num poço sem fundo de associações”. Digo a ele que é uma injustiça tremenda, a ausência de prêmios. Ele não diz nada. Nem reclama. Limita-se a balbuciar alguma coisa.

Peço, então, uma dedicatória nos seus três romances e, a pedido dele, vamos até a mesa da sala. Carlos pega o Que pensam vocês que ele fez e abre o livro na epígrafe. Começa a ler os próprios versos em voz alta:

“Era uma vez três
Dois polacos e um francês
Os polacos deram deram no francês
O francês por sua vez
Puxou a espada com rapidez
Que pensam vocês que ele fez?
Matou? Esfolou? Foi pro xadrez?
Esperem
Vou começar outra vez
Era uma vez três
etc

(Anônimo)”

Ele dá uma boa gargalhada quando termina a leitura. Carlos voltou no tempo. Esbarrou-se consigo mesmo – há quanto tempo não esbarrava consigo mesmo? – nas linhas do livro esquecido. E com os dedos roçando a capa da obra, olha para a sua literatura e dispara: “Que loucura tudo isso, né?”

Me despeço de Carlos com a promessa de mandar alguma lembrança. Talvez um filme, porque Carlos é louco por cinema. Caminho em direção ao mar. Na frente do hotel Copacabana Palace, compreendo tudo. E sinto uma vontade danada de arrancar camiseta, bermuda e cueca, e encarnar o Jesus nudista, caminhando sobre as águas de Copacabana, recebendo nas costas a areia arremessada pelos banhistas, ouvindo o estridente coral das ofensas, me vejo sendo preso pela radiopatrulha, concordando na cadeia em passar um mês e meio no mesmo sanatório em que ele tomava os eletrochoques. Porque foi assim que ele fez. Ou não? Que pensam vocês que ele fez?

*Alexandre Gaioto é jornalista e trabalha no jornal O Diário de Maringá, Paraná. Tem 26 anos e é mestrando em literatura pela UEM

Um comentário:

  1. Prezado Alexandre,

    Gostaria de entrar em contato. Poderia me contatar no obodart@gmail.com por gentileza?

    Obrigado.

    Olivier

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