segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Rastaqueras e charlatões

Por Mario Sergio Conti
Da Revista Piauí

Os brasileiros eram uns rastaqueras na Paris de Marcel Proust. Não só eles, os latino-americanos todos. Com o passar do tempo, a palavra foi empregada em relação aos ibéricos, aos eslavos, aos judeus e a todos os estrangeiros. Quem ensina isso é o professor Rubén Gallo, diretor de Estudos Latino-Americanos da Universidade Princeton. Ele nasceu no México, formou-se em Yale, doutorou-se em Columbia e é da diretoria do Museu Freud, em Viena. No ano que vem, lançará o livro Marcel Proust’s Latin Americans.

Gallo esteve no mês passado no Brasil e falou numa palestra na Universidade de São Paulo sobre os rastaqueras. À beira do desuso, a palavra no português oral é sinônima de fuleiro, pouca porcaria, tranqueira. Já no Aurélio e no Houaiss o seu sentido é semelhante ao francês: o indivíduo que chama atenção pelos gastos extravagantes e pela ostentação. O significado não é idêntico nos dois idiomas porque, na Paris da Belle Époque, o rastaquera vinha dos trópicos com maus modos e dinheiro à beça, e o detonava com estrondo.

Rubén Gallo achou um rastaquera brasileiro n’A Prima Bette, romance de Balzac que integra A Comédia Humana. É o barão Henri Montes de Montejanos, um tipo sulfuroso e selvagem como o país de onde veio. Um segundo personagem foi criado por Jacques Offenbach, compositor dos mais populares na França da segunda metade do século XIX. Ele se chama Brasileiro e figura na opereta-bufa A Vida Parisiense. Num rondó, ele canta o que pode ser traduzido assim:

Cheguei do Rio há uma hora

E Paris é toda minha agora!

Já vim aqui duas vezes antes,

Mas trago agora na bagagem

Ouro em penca e diamantes.

Quanto irá durar a sacanagem?

Pois durou umas seis amantes,

Uns duzentos amigos elegantes,

Poucos meses de porres galantes.

Ó Paris só de comerciantes!

O brasileiro novo-rico, que passa por malandro em casa, é um otário depenado inapelavelmente em Paris. O rastaquera sabe disso, já que ele mesmo diz: “Vim para que vocês me roubem tudo o que roubei là-bas”, no Brasil.


Tanto A Prima Bette como a primeira versão de A Vida Parisiense foram feitos antes de Proust nascer, em 1871. Mas é possível que ele tenha tido contato com o romance e a opereta, e não apenas porque fizeram sucesso. Ainda que não estivesse entre os seus escritores prediletos, Proust certa vez publicou um pastiche hilariante de Balzac. E um dos autores do libreto de A Vida Parisiense era pai de um colega e amigo seu, Daniel Halévy.

A palavra “rastaquera” se firmou no vocabulário francês mais para o final do século, num contexto vivido pelo autor de À Procura do Tempo Perdido. Ela passou a designar políticos latino-americanos que foram destronados e, podres de ricos, se exilaram em Paris. É o caso de dois presidentes, o venezuelano Antonio Guzmán Blanco e o mexicano Porfirio Díaz.

Na conferência na usp, Gallo perguntou à plateia se algum político brasileiro poderia caber na galeria. Mas ele sabia muito bem que dom Pedro II, ao ser derrubado pela República, exilou-se na França. Também viveram lá André Rebouças e Joaquim Nabuco, abolicionistas e monarquistas.

Como não era xenófobo, Proust estava alheio ao universo rastaquera e raramente empregava a palavra. Francês arraigado, ele não falava outras línguas e foi ao exterior só em curtas temporadas, para visitar Veneza, ir a estações de água alemãs e ver quadros na Bélgica e na Holanda. Mas tinha algo de estrangeiro, de esquerdo: burguês, queria entrar no mundo da aristocracia; judeu, sofreu antissemitismo; homossexual, viveu num meio machista; seu primeiro namorado, e amigo por toda a vida, foi o venezuelano Reynaldo Hahn; pediu à mãe que fizesse traduções literais de John Ruskin para verter o crítico inglês para o francês.

Embora não haja evidências, é plausível que Proust soubesse de dom Pedro II. O imperador, afinal, era um sangue azul de boa cepa, um Habsburgo. E também porque o seu genro, o Conde d’Eu, foi um Orléans que viveu o exílio no seu castelo na Normandia, região que o romancista percorria em férias de verão.

Proust pode ter se interessado pelas aventuras francesas de Santos Dumont. O inventor frequentava salões semelhantes aos descritos pelo escritor, que por sua vez era fascinado por novidades tecnológicas como o telefone, os automóveis e sobretudo os aviões. Quando seu grande amor, o chofer Alfred Agostinelli, ameaçou abandoná-lo, Proust prometeu comprar-lhe um aeroplano.

Pagou um curso para que ele aprendesse a pilotar. Foi com milhares de francos nas mãos que Agostinelli perdeu o controle do aviãozinho numa das aulas. Para horror de quem o via da praia, caiu no Mediterrâneo e se afogou. O chofer serviu de modelo para a Albertine de Tempo Perdido, cujo centenário da publicação do primeiro volume, como lembrou o professor Gallo, se comemora agora, em 14 de novembro.

Há apenas um brasileiro no romance de Proust. Ele é mencionado em O Lado de Guermantes, e sua aparição é tão fugaz que nem nome ele tem. É apenas “um médico brasileiro” de sorriso pusilânime e meigo, um “ar de interrogação tímido, interessado e suplicante”. Esse médico, a quem o narrador recorre para tratar de sufocamentos asmáticos, lhe receitou “inalações absurdas de essências vegetais”. Não era um rastaquera. Mas levava jeito de charlatão.

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