quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Bernardo Paz - Ele transformou sua propriedade particular no Inhotim, o maior museu a céu aberto do mundo

Foto: Nino Andrés

Por Cristina Ramalho
Da Revista Trip

Durante anos o empresário mineiro Bernardo Paz se enchia de uísque para poder dormir – 2 horas, se muito – e de manhã tinha de engolir o Engov e negociar políticas econômicas com banqueiros e operários em greve. Nos intervalos, moças notavam sua estampa de galã, seus olhos azuis, sentavam-se ao seu lado para mais um drinque e logo viravam esposas. Vinham mais filhos, mudanças de endereço, um punhado de papagaios no banco, sempre com aquela eterna sensação de angústia e os muitos maços de cigarro que carrega desde garoto. Nesse ritmo, aos 45 anos ele teve um AVC em Paris. Deitado por obrigação, com tempo para pensar na vida, Bernardo se lembrou do jardim mais exuberante que já tinha visto, num hotel de luxo em Acapulco, em 1971. Só que, enquanto lá dentro, ao som das maracas, os hóspedes se deslumbravam, do outro lado do muro altíssimo a população mexicana vivia na miséria absoluta.
Bom, já dizia o escritor Paulo Mendes Campos que é quando um homem está cansado, quando a vida o encheu, que ele vê o inesperado. Foi mais ou menos o que aconteceu. Bernardo achou que devia deixar algo de bonito para os outros. Que fosse ainda mais bacana do que o jardim de Acapulco, e sem muros, para gente de todas as classes partilhar do encantamento. Assim começou a se desenhar a alma do Inhotim – hoje o maior museu a céu aberto do mundo, que combina arte, jardim botânico e projeto social.
Bernardo usou o próprio dinheiro – e o charme da conversa para se entrosar com quem fosse preciso – e construiu o museu dentro da sua fazenda em Brumadinho, Minas Gerais. Inaugurado para o grande público em 2006, o seu Inhotim tornou-se, em pouquíssimo tempo, referência mundial em arte. Numa área de 97 hectares, espalham-se pavilhões espetaculares, encravados na natureza, com o fino da produção de artistas contemporâneos: Adriana Varejão (sua ex-mulher), Ernesto Neto, Tunga, Anish Kapoor, Miguel Rio Branco... uma lista de 500 obras de cem grandes figuras de 30 nacionalidades.
“A arte contemporânea é a única arte crítica, interativa, que mexe com as pessoas”, repete Bernardo, hoje com 63 anos. Um sujeito ansioso que continua fumando sem parar, ainda não dorme, é carismático, intenso e tem histórias como se todo dia na sua vida fosse um happening. Não poderia mesmo ver graça em quadros e esculturas feitos para contemplar com a mão no queixo. Inhotim é uma extensão natural da sua personalidade: exuberante, perfeccionista, feito de superlativos. As obras sacodem os sentidos, convidam a experimentar, subvertem os espaços. Matthew Barney, por exemplo, criou ali a instalação De lama lâmina, com um trator que suspende um tronco de árvore. Doug Aitken cavou uma cratera e instalou microfones lá no fundo, para a gente escutar o som do centro da Terra, no seu Sonic Pavilion. E quem quiser pode entrar na piscina do Helio Oiticica.
Uma alegria real, que se pode tocar. Era o que ele queria.

Tal qual o pato
O verde também é um exagero de beleza. Um dia Bernardo se gabava das palmeiras para um agrônomo, e ele retrucou: “Não é bem assim. Faltam centenas de espécies para essa coleção ser espetacular”. É pra já. Bernardo deu a bronca no jardineiro ali mesmo, e, não demorou, exibia uma das maiores coleções de palmeiras do planeta – mais de 1.400 espécies. Há ainda o Viveiro Educador, com 25 mil metros quadrados para pesquisas científicas. Ele gosta de dizer que não entende de arte – desfez-se da coleção de arte moderna da família, da qual ele mesmo tinha comprado boa parte – e manja mesmo é de botânica.
Quando o projeto de Inhotim ainda estava em botão, o amigo Burle Marx lhe deu conselhos preciosos para o paisagismo do lugar.
De início o público era de amigos dos amigos, a turma dos bem-pensantes das artes, mas Bernardo queria mesmo derrubar muros. Hoje Inhotim tem programas de inclusão, coral, banda e o projeto Inhotim para Todos, que leva crianças e adultos de baixa renda para visitar o museu. “Quero que essas pessoas sejam tratadas com dignidade, com a beleza que merecem. Se uma pessoa pobre tem a casa pintada, um pouco de beleza que seja, ela se sente valorizada, tem estímulo para melhorar. Isso tem de acontecer em vários sentidos”, diz.
Em janeiro de 2011 foi convidado a falar no Fórum Mundial de Davos sobre o tema Arte e Filantropia. Antes de ir, Bernardo deixou a paz de lado e botou fogo em entrevistas (“Quando chegar lá, vou olhar para a cara daqueles bundas-moles e mandá-los para a puta que os pariu. O fórum que importa está no governo de cada país, de cada estado, de cada cidade”). Não deve ter mandado, porque saiu de lá aplaudido de pé. Na gangorra da história, o nome Bernardo Paz rodou na imprensa por um leque danado de temas: o casamento com Adriana Varejão; denúncias envolvendo seu irmão, o publicitário Cristiano Paz, com o mensalão, já que Cristiano era sócio de Marcos Valério; acusações de lavagem de dinheiro para sustentar Inhotim; processo de um paisagista que não teve seu nome mencionado na criação do jardim – e pense mais um item, que talvez esteja na lista.
Está casado com a sexta mulher (Arystela Rosa, 31 anos, que mora em São Paulo enquanto ele fica no Inhotim), é pai do sétimo filho (Achiles, nome do seu pai, de quem sempre esperou reconhecimento), avô de dois netos (“Detesto neto”), vendeu sua mineradora Itaminas por US$ 1,2 bilhão e jura que bota tudo no museu e vive duro, pegando empréstimos. Mora sozinho num casarão de vidro dentro do Inhotim com 12 metros de pé-direito, peças de design e cara de galeria de arte (“Fiz essa casa para os outros, que se deslumbram, eu não preciso morar nisso aqui”), onde conversou com e se abriu como nunca antes.
Diz que não é feliz: “Tomo remédio para dormir, remédio para acordar, remédio para o coração”. Mas gosta de imaginar que, assim como a mãe, de quem herdou a sensibilidade, só está pensando nos outros. Porque, como lhe disse um funcionário muito simples, outro dia, carregando um pato morto: “O pato, como a gente, nasce, cresce e morre”.

Quais são os novos projetos para Inhotim? 
O Anastasia [Antonio Anastasia, governador de Minas Gerais] esteve lá no Louvre, ele quer trazer o museu pra Belo Horizonte. Só que o presidente do Louvre conhece o Inhotim e falou pra ele: “Você tem o lugar mais impressionante do planeta, por que você quer o Louvre lá?”. Aí o governador foi na Lafarge [empresa francesa, uma das maiores construtoras do mundo, com filiais em MG], falou com o presidente deles na França. E a Lafarge vai construir de graça um pavilhão para mim. São R$ 6 milhões que eles vão investir. É este aqui [Bernardo mostra a maquete de um ovo aberto e, dentro, o formato de um anfiteatro], terá 30 metros por 18 metros de altura. Tem um restaurante que vai debaixo da terra. Começa a construir no ano que vem.

Tem outros projetos já desenhados? 
Tem 58 pavilhões pra construir. Já projetados. Só que eu tô com a cabeça quente. É tanta coisa... Na parte botânica, tem uma green house de 50 metros de altura por 50 mil metros de área que vamos fazer. Vou botar a Floresta Amazônica dentro. Isso é o governo da Noruega que vai financiar.

Esses financiamentos, como funcionam? 
Doação.

Mas como eles vêm e oferecem? Ou você tem uma equipe que faz captação? 
Tenho um grupo de profissionais, mas o pessoal de fora chega aqui, se impressiona com o lugar e quer ter o nome vinculado ao Inhotim. Já para a captação de Lei Rouanet temos um departamento que cuida disso.

Como acontece a negociação com os estrangeiros? 
É fascinação, só isso. No domingo esteve aqui um francês, que tá tentando construir em São Paulo. Ele comprou aquele hospital Matarazzo na avenida Paulista. Ele quer fazer Inhotim comigo, tem dinheiro demais [Bernardo se refere aos franceses do grupo hoteleiro Allard, que compraram o hospital em São Paulo para fazer um hotel de luxo assinado por Philippe Starck]. Mas é dinheiro árabe, eu acho. Nunca perguntei a ele. Ele quer me levar em Abu Dhabi pra conhecer o emir, que é fascinado com arte.

É só você quem dá a palavra final? 
Não, eu dou a palavra inicial, que está muito na frente da palavra final dos outros.

Você veta alguma coisa? 
Não há necessidade de vetar, porque temos uma equipe de profissionais que filtra tudo. Tenho sete curadores. Já chega para mim o melhor do mundo. Nunca chega uma coisa mais ou menos, só o melhor do artista. E tudo por preço de projeto, não por preço de obra.

Você imaginava que Inhotim viraria o que é hoje? 
Eu nunca imaginei que ia construir Inhotim; eu comecei a fazer só. É claro que eu olho para trás hoje e vejo com tranquilidade que talvez eu tivesse imaginando. Porque dez anos atrás eu comprei o terreno para fazer um aeroporto pro Inhotim e ao mesmo tempo eu não imaginava que eu ia construir Inhotim.

E, afinal, vai ter o aeroporto?
Vai. Já tem terra, já está aprovado pela Infraero, pela Anac [Agência Nacional de Aviação Civil], por todo mundo. 

Um hotel e outro restaurante estão sendo construídos. Você não tinha convidado o Alex Atala para comandá-lo? 
O hotel vai ficar pronto logo, tá superadiantado. O Alex é um gênio, um chef maravilhoso, mas pediu R$ 8 milhões para o restaurante e só ia vir aqui de vez em quando. Falei: “Não, obrigado, não quero”. E ele andou espalhando que estraguei um sonho dele. Estraguei porra nenhuma! Achei que era dinheiro demais, só isso. Esses caras têm muito ego.

Falando em ego, você diz em entrevistas que uma pessoa só se realiza mesmo quando faz algo para a sociedade. Você sempre sentiu essa vontade de partilhar? 
Sempre. Fui educado assim. Minha mãe era poeta, pintora e assistente social. Era muito vinculada às pessoas mais humildes. Meu avô por parte de pai trabalhou com o marechal Rondon, foi um homem muito patriota. Essa palavra é meio ridícula, mas ele tinha orgulho do Brasil e criou meu pai dentro desses fundamentos nacionalistas. Minha mãe era muito depressiva, mas tinha um senso de humor fora do comum. Já o meu pai era engenheiro, disciplinado, um homem que me ninava com Hino da Bandeira, Hino Nacional, todos os hinos que você imaginar.

Ele cobrava muito você? 
Era muito duro, muito difícil. Meu relacionamento era melhor com a minha mãe, que era de uma sensibilidade atroz. Esse antagonismo me deixou completamente inseguro, até os... ah, minha vida inteira. Somos quatro irmãos, eu sou o mais velho. Isso me deixou mais ou menos sem pouso, porque meu pai pregava o heroísmo, a luta, a vontade, o crescimento. Meu avô, pai dele, era do Piauí, mas fugiu de lá quando houve a revolução. Na época de Arthur Bernardes [mineiro, presidente do Brasil de 1922 a 1926], meu avô era comunista. Foi parar no Rio vestido de mulher e prenderam ele.

Vocês tinham dinheiro? 
Éramos classe média baixa, classe média de funcionário público. Meu pai trabalhava na prefeitura, foi secretário de governo. Na época, Belo Horizonte só tinha funcionário público.

Você estudou até que ano? 
Eu detestava estudar. Fui muito bem até o quarto ano do primário. Tinha um irmão que era muito brilhante, estudava 12 horas por dia. Então meu pai começou a me perseguir. Mas tinha uma diferença: meu irmão era moreno, mais magro, e eu era bonito, de olho azul. Meu pai me dizia: “Você não vai dar em nada na vida”. Eu tinha 13, 14 anos. Isso me marcou muito, passei infância e juventude muito isolado, calado. Terminei o ginásio e parei. Tempos depois fui fazer o madureza [antigo supletivo] e entrei em economia na faculdade. Mas larguei.

Você era um adolescente angustiado? 
Extremamente. Era muito bonito e isso me atrapalhou demais. Eu detestava isso, tinha pânico de ser bonito, e muitas pessoas diziam que a beleza trazia burrice.

Mas não era bom para ganhar as meninas? 
Eu tinha muita vergonha. Até os 20 anos eu não conversava com mulher. Às vezes ia a uma festa e ficava só 5 minutos, porque as meninas iam todas em cima de mim e eu não sabia dançar.

Com que idade você se casou pela primeira vez? 
Com 23. Tinha esse problema também. Como eu nunca procurei por uma mulher, eu normalmente era achado por uma. Nunca casei com mulher bonita na vida, porque as que chegavam eram as mais feias, as bonitas ficavam esperando. Eu casei com uma menina que se aproximou muito na época e fiquei 11 anos com ela, a Sandra. Tivemos duas filhas. Antes de casar eu já trabalhava como atendente no posto de gasolina do meu pai. Depois fui trabalhar numa butique de roupa de homem. Muito tempo depois soube que o footing na cidade era na porta da butique, porque as meninas iam me espiar. 

E você, pelo jeito, já tinha deixado de ser introspectivo. 
Só no trabalho. Eu tinha que me articular, porque senão não ia dar em nada na vida. Depois fui operar na bolsa de valores. Em 1971 teve um crash na bolsa no Brasil e todo mundo perdeu tudo. Aquilo me traumatizou, porque eu vi as pessoas que tinham dinheiro guardado para a velhice perderem tudo. É uma coisa que eu nunca mais esqueci. Tenho pânico dessa coisa de trabalhar com dinheiro para fazer dinheiro. Eu parti mais para a realização pessoal.

Mas como é que você virou dono de mineradora, milionário, e chegou onde está hoje?
Eu tinha um percentual na mineradora. Quando comprei, era quebrada.

Mas de onde veio essa mineradora? 
Quando me casei, acabei indo trabalhar no banco que era do pai da minha primeira mulher [o Banco Mineiro do Oeste, de João do Nascimento Pires, primeiro sogro de Bernardo]. Ele quebrou e perdeu tudo o que tinha. Eu já tinha saído para cuidar da mineração, que tinha sido dele, mas estava quebrada. Ele tinha perdido a cabeça. A história dele foi dramática, porque ele era um homem extraordinário que nos últimos anos da vida estava na macumba, cortava pescoço de carneiro para tomar sangue. Eu tinha que correr atrás para ele não ser roubado. Pus ele na mineração na época e foi uma tragédia, porque, na hora de pagar os transportadores e pessoal, ele pegava o dinheiro para pagar esses videntes. Então eu passei dez anos segurando greves, acordava às quatro da manhã, chegava em casa à meia-noite. Mas aí esse homem morreu, foi uma complicação.

Isso foi durante os anos 70, quando teve o milagre econômico? 
Para mim não teve. Eu vivia com duplicatas, dívidas, tinha mais de 2 mil cheques sem fundo. Eu não dormia. Às vezes pra dormir tinha que tomar uma garrafa de uísque, porque não tomava tranquilizante na época. Hoje tomo. Dormia 2 horas e acordava com dor de cabeça, mas ia trabalhar. Minha vida passou como uma ventania. Descobri uma fórmula de resolver esse problema, que era comprar outras empresas falidas, recuperá-las e fazer um monte maior pra sair lá na frente. Chegou um ponto em que a jazida não pertencia à mineração, era arrendada. Aí tive de fazer uma empresa às pressas, para fazer o arrendamento, continuar trabalhando, conseguir pagar toda a dívida e liberar todo o patrimônio. Foi o maior sufoco da minha vida. Minha mulher e eu nos separamos. Fiquei sem nada, criei uma holding e a partir daí eu vi que não tinha saída: a dívida era grande demais. Fui para a China e fiquei amigo de uns ministros chineses. Tive a primeira reunião com o Deng Xiaoping [secretário-geral do Partido Comunista Chinês]!

Você foi o primeiro empresário brasileiro a ir para a China comunista? 
Ninguém nunca tinha ido à China. Quando eu fui, só os judeus estavam lá. O Deng Xiaoping foi o motor dessa história toda, mas por trás tinha um grupo de pessoas brilhantes. Eles botaram US$ 10 milhões na siderurgia. Comprei outras minas também e virei uma empresa de 10 mil funcionários. Uma correria... Tinha que viajar 300 quilômetros por dia, indo e vindo, correndo atrás. Eu estava bêbado quando comprei a primeira usina siderúrgica. Fiz um discurso que ninguém entendeu. Lembrei de quando era criança e dormia num quarto com três irmãos, que dava pra um terreno baldio ao lado. Todo dia uma galinha cantava. Eu subia no muro e descobri que ela estava botando ovo. Aí comecei a pegar o ovo e guardar. Aquilo pra mim era uma coisa impressionante! Eu estava ganhando aqueles ovos que a galinha botava de lado. E naquilo acumulei 12, 13 ovos.

Mas foi nessa época que sua história de empresário melhorou. 
Não, o Brasil ficou uma loucura. Teve Plano Cruzado, Plano Collor, Plano Real, e depois o Meirelles [Henrique Meirelles, presidente do Banco Central entre 2003 e 2011], que acabou com as indústrias botando o câmbio lá embaixo.

E você estava onde nessa altura? 
Na mineração. 

O que aconteceu? 
O minério subiu de US$ 10 para US$ 180. Então, mesmo com o câmbio caindo 100%, o minério subiu 1.800%. Com isso consegui pagar a dívida de bancos, adequar a dívida fiscal, parcelar com o fisco. E consegui triplicar, quadruplicar a produção de minério.

Quer dizer, aí foi surgindo esse dinheirão. E você ainda vendeu uma mina para os alemães. 
Surgiu o dinheiro e construí Inhotim. A mina eu doei, é uma história longa. Mas acabou dando dinheiro e os alemães retribuíram botando dinheiro no Inhotim. Depois larguei tudo, porque tive um problema de saúde em Paris, em 95, que me fez pensar em fazer algo maior, para a comunidade.

Você teve um AVC, né? 
Sim, mas não deixou sequelas.

Você estava sozinho? 
Estava para casar com minha quarta mulher, a Titina. Era uma menina de família rica, conservadora, de Minas Gerais. Era muito mais nova que eu: eu tinha 44 e ela tinha 26 quando casamos. Ficamos 11 anos juntos. Não tivemos filhos, ela não podia. Antes eu tinha sido casado com a Cláudia, que me deu duas filhas maravilhosas.

Não tem uma história que você se separou e, no mesmo dia, foi a um bar e conheceu uma moça?
Sim, uma austríaca de 22 anos, minha segunda mulher. Também foi uma que me viu bebendo no bar, se aproximou e eu casei. Tivemos um filho, o Bernardo, que hoje vive em Stanford.

Você gosta das moças mais novas? 
A questão não é essa. É que... sou um cara de poucos prazeres na vida. E um dos poucos prazeres era sexo. Era difícil fazer sexo com uma mulher mais velha. Ou casar com uma mulher de 50 anos, quando eu tinha essa idade, e ainda ter apetite sexual [risos].

A beleza então é importante para tudo? 
Hoje eu consigo encarar a beleza da inteligência, da sabedoria. Aí tanto faz a idade. Consigo me apaixonar por uma pessoa sem me preocupar com o sexo, desde que ela seja brilhante.

Mas você não me respondeu uma coisa: você se interessava por arte? 
Já pensei muito isso, mas nunca quis entender de arte. Não entendo de arte. Vou dizer uma coisa com toda a franqueza: eu não entendo Picasso. Porque arte para mim tem um processo educativo, elucidativo. Anterior a Picasso, a arte era anterior à fotografia. Então a arte traduzia a visibilidade de uma determinada coisa que você não conhecia, ela tinha esse papel.

A arte era figurativa. Já na arte moderna... 
Quando veio a fotografia, os artistas passaram a fugir da fotografia, do realismo. Alguns artistas conseguiam isso com beleza, como Monet, Matisse e outros mais. Picasso pintou o ciclo azul de forma clássica, de uma beleza extraordinária, afinal era um gênio. Depois passou a distorcer tudo e deixou de ser uma pessoa admirável. Os quadros deixaram de ser admirados para ser invejados por ricos e colecionadores. 

Falando nisso, a arte brasileira está cada vez mais valorizada. Uma obra da Adriana Varejão, sua ex-mulher, já passa de R$ 1 milhão.
A obra da Adriana, por coincidência, ou por qualquer outra coisa, teve um salto de valor após o pavilhão dela aqui, que é o mais bonito de Inhotim. Comprei todas as obras para o pavilhão por US$ 180 mil – e lá tem 70 obras. Hoje custa US$ 1 milhão cada uma. Mas isso não acontece de uma hora pra outra. Ela tem um valor enorme como pesquisadora, vai fundo em suas pesquisas. E, de uns tempos para cá, os ricos brasileiros começaram a reconhecer nossos artistas e a comprar por uns preços absurdos.

A Beatriz Milhazes passa fácil de R$ 1 milhão
Isso é loucura! A Milhazes tenta ser pintora, mas o que ela faz é cortina inglesa.

Qual é o seu parâmetro de boa arte? 
O meu parâmetro é a educação. Arte contemporânea é a única arte crítica, interativa, que mexe com as pessoas. As crianças adoram, mais do que os pais. A arte aqui em Inhotim está envolta na beleza da natureza. Esse é o segredo. Toca as pessoas. A Adriana tem por trás uma curiosidade, o Ernesto Neto tem uma diversão e uma alegria que se traduzem para a criança, o Cildo Meireles tem a perspectiva da morte.

A Adriana foi sua única esposa famosa. Incomodava você ser conhecido como “o marido da Adriana Varejão”? 
Nunca me preocupei com a fama da Adriana. Me importava com o que ela fazia, com o trabalho dela, enxertado de vontade e víscera. Me apaixonei por ela, casamos, tivemos a Catarina, linda, e continuei levando a minha vida. Depois surgiu um problema: a Adriana, como todo artista de uma forma geral, tem a característica de olhar muito pro seu próprio interior. Isso é um vício de quem constrói pra si mesmo, não quer dizer que seja um erro. Ela não reconhecia suas ambições de ganhar dinheiro com arte. Queria ser uma pessoa da arte pela arte. Mas, por outro lado, precisava do dinheiro. Não para viver, mas para ser importante – o mundo capitalista exige isso. E ela era artista, devia brilhar, mas eu estava crescendo como pessoa e isso foi criando um abismo entre nós. Ela queria envelhecer comigo. Acho que ainda me ama, mas isso [reatar] é impossível. Separamos e acabou.

Você tem inimigos? 
Não que eu saiba. Meus inimigos não têm nome, mas tentam me prejudicar. São pessoas que têm ciúmes. A vida inteira eu tentei solucionar problemas e buscar caminhos pras pessoas. No primeiro momento eu consigo muita coisa, porque tenho uma facilidade imensa de ligar pontos, entendo a pessoa sem ela perceber. Em um primeiro momento, ela me julga um gênio. Em um segundo momento, ela tem medo. No terceiro momento, ela tem raiva. E, no quarto, parte para a vingança. 

Não posso deixar de perguntar sobre todas as acusações de lavagem de dinheiro envolvendo o nome do seu irmão (Cristiano Paz) com Marcos Valério e ligando você a políticos. O que você tem a dizer? 
Eu digo que meu irmão é inocente. Ele é brilhante, tem uma agência de publicidade que talvez seja a melhor do Brasil. Nunca procurou dinheiro; nasceu artista. Quando começou em publicidade, aos 16 anos, fez um filme e todos em casa choraram de emoção. Eu tenho pena dele. Ajudo no que posso. Porque ele foi envolvido nesse processo pelo Marcos Valério, mas o banco deu dinheiro observando algum favor – e depois quebrou. Todos perderam e meu irmão foi o único que se manteve de pé nessa história. Quanto a mim, nunca fui amigo de político nenhum.

Seus outros dois irmãos trabalham com o quê? 
A Virgínia, coitada, é inteligentíssima, mas é uma sonhadora também. Ela montou um escritório pra filha dela, que é uma arquiteta genial, mas não ganha dinheiro. Tenho sempre que dar dinheiro pra ela. O André é brilhante também, mexe com comércio. Mas é doido: xinga, briga, berra. Uma coisa tem de ficar clara: eu nunca fui rico, não sou rico, não tenho um tostão no banco. Todo o meu dinheiro está envolvido com a população de uma forma geral.

Mas você tem uma vida bem confortável... 
Preciso de R$ 2 milhões todo mês. Pego dinheiro emprestado sempre. Estou devendo R$ 12 milhões, mas mês que vem eu pago, vendi um troço por R$ 250 milhões. Tudo que ganho boto no Inhotim [na imprensa já saiu que ele bota US$ 70 milhões por ano; há dois anos, Bernardo vendeu sua Itaminas para um grupo chinês por US$ 1,2 bilhão].

E agora você está com a sexta esposa, a Arystela, que lhe deu o sétimo filho. 
Ela é designer, veio criar a iluminação de uns restaurantes meus. Essa moça sofreu absurdamente. O marido teve esquizofrenia, quis matá-la e acabou morrendo assassinado. É uma menina que veio do interior, na dela, extremamente correta, e lindíssima. Temos o Achiles, um menino lindo. Dei a ele o nome do meu pai. Tenho o maior respeito pelo que meu pai foi, apesar de ele ter me crucificado a vida inteira.

Ele faleceu há pouco tempo
Faleceu há dois anos, dizendo que tinha orgulho de mim.

Que é o que você sempre desejou.
Exato. Me deu um prazer muito grande saber disso. Quando ele morreu, eu não tinha que provar nada mais pra ninguém. A vida inteira o meu foco é a sociedade.

Quando você morrer, o que deve acontecer com Inhotim? 
Sou pragmático. Estou pensando lá na frente e penso grande. Eu vou criar aqui – se Deus quiser, e não que eu acredite em Deus – uma Disney World pós-contemporânea cultural, que faça com que as pessoas cresçam e que atenda a sociedade de uma forma geral – miseráveis, pobres, médios e ricos. E que todos sejam considerados iguais aqui dentro, como são atualmente. Hoje eu recebo cerca de 100 mil pessoas de comunidades extremamente carentes, recebo 80 mil crianças por ano, extremamente pobres. Tenho 140 professores, monitores, educadores, tem as comunidades quilombolas que eu trouxe pra trabalhar aqui... Nós atendemos essas comunidades.

Muitos ricos não investem em nada para a comunidade. O que você acha da elite brasileira? A elite brasileira não difere de nenhuma elite. A pior elite é a aristocracia europeia, porque não admite até hoje que perdeu poder. As elites são feitas por pessoas que lutaram para crescer, que têm medo de perder. Todo rico é assim. Toda pessoa que cresce não quer dar um passo para trás. O que eu estou fazendo é uma renúncia absoluta da vida.

Mas seu nome estará ligado a um legado
Meu nome está ligado a isso, mas está sendo alvo de muitos [mísseis] Exocet. Nunca fui amigo de político, nunca me liguei nisso. Condeno a corrupção, que prejudica o pobre, que atrapalha a saúde, que vende remédio mais caro, que manipula o dinheiro. Agora, eu, por mim, não estou nem aí pra minha vida. Se eu morrer amanhã, já morri. Agora estou com uma arritmia cardíaca, tenho de ir ao [hospital] Einstein na segunda. Acho uma chatice, detesto sair daqui.

Você teve um AVC, fuma à beça e diz que toma tranquilizantes toda noite. Mas tem sete filhos. Não tem a preocupação de viver mais? Não. Nunca fiz esporte. Faço tudo o que você disse, e os sete filhos gostam de mim. Tenho 1.400 funcionários. Se você sair e falar mal de mim, eles te matam. As pessoas que estão próximas a mim estão muito, muito próximas.

O que emociona você? 
Meus filhos me emocionam. E as pessoas que estão comigo no Inhotim também. Encontrei um negro quilombola revoltado com sua condição e querendo matar os brancos. Esse negro hoje é o melhor condutor de visitantes que temos. Todos os negros que tenho aqui são quilombolas. E são pessoas extraordinárias.


terça-feira, 17 de setembro de 2013

Viva a sociedade alternativa


Por Fábio Fujita
Da Revista Trópico

O japonês Isamu Yuba era um jovem de 19 anos cheio de ideias na cabeça. Queria conhecer o mundo. Certo dia, no início do século XX, topou com um cartaz que falava sobre boas oportunidades no outro lado do globo: “Vá para a terra prometida, livre e sagrada da América do Sul”.

Parecia um sinal. Ainda sob o impacto das ideias de Rousseau, que conhecera com a leitura de “Emilio”, e também da crise financeira pela qual passava sua família, o rapaz se convenceu: iria tentar a sorte naquele eldorado desconhecido, o Brasil.

Inspirado pelo avô, Saizaburu Yuba, Isamu já tinha bem planejado o que faria quando se estabelecesse com os pais, os irmãos e a avó no interior paulista: construir uma comunidade agrícola onde não existisse propriedade privada nem circulação de dinheiro. O avô já tentara fazer isso no próprio Japão, sem sucesso.

O neto, no entanto, seria mais bem-sucedido. Chegou ao Brasil em 1926 e, em 1935, adquiriu 40 alqueires de terra, na cidade de Guaraçaí, formando uma numerosa comunidade com 300 imigrantes japoneses.

Duas décadas depois, o grupo se dividiu, e a turma que acompanhou Isamu, com cerca de 100 pessoas, instalou-se na zona rural de Mirandópolis. Ali, ele deu continuidade às premissas de sociedade igualitária que já testara em Guaraçaí e que perdurariam até os dias de hoje: abolir a propriedade privada, cultivar a terra, amar as artes e orar.

Lucille Kanzawa nasceu em Mirandópolis em 1963 e conviveu com a comunidade durante a infância e juventude. Seu pai, médico, era amigo de Isamu Yuba e prestava atendimento gratuito aos moradores do lugar.

Saiu do Brasil aos 17 anos para morar no Alasca, depois viveu na Europa, até parar num kibutz em Israel. Posteriormente, formou-se em tradução. Sua paixão pelas viagens a levou a se tornar comissária de bordo. Descobriu a fotografia e a usou para registrar suas origens no livro “Yuba”, que está sendo lançado pela editora Terra Virgem. São 66 imagens que revelam o cotidiano da comunidade, entre os trabalhos na lavoura e a sublimação pela arte.

Por suas fotos de Yuba, Lucille já venceu o Prêmio Porto Seguro como artista-revelação e ganhou exposições na Caixa Cultural e na Pinacoteca de São Paulo. Na sede da editora Terra Virgem, no bairro de Pinheiros, na capital paulista, Lucille falou à Trópico.

*

Se você fosse para buscar uma imagem de suas lembranças da comunidade Yuba, qual é a mais antiga?

Lucille Kanzawa: É a do barracão. Porque sempre foi um ritual na minha família passar o Natal lá. Ao longo do ano, a comunidade está sempre ensaiando –música, teatro, dança, todo tipo de arte. Aí, no dia 25 de dezembro, eles oferecem um jantar especial, só para alguns convidados. É engraçado porque, desde criança, eles servem o mesmo cardápio: um franguinho de leite, bem crocante, udon (sopa japonesa), seguindo a mesma receita dos antepassados.

Então, a primeira lembrança é a desse barracão, instalado na terra batida, que ao longo do ano serve de abrigo para o maquinário agrícola. No Natal, e no dia 30 também, esse barracão se transforma em teatro. Natal para mim sempre foi em Yuba. Até hoje passo o Natal lá. Só não passei nos quatro anos e meio que morei fora do Brasil.


Quando você percebeu que o sistema de vida ali de Yuba era diferente da vida que tinha na cidade?

 Eu sou de Mirandópolis, que é uma cidade pequena, com cerca de 25 mil habitantes. E a comunidade fica nas Alianças, zona rural, a mais ou menos 20 km da cidade. Desde criança eu sabia que era um universo totalmente diferente do meu.

Meu pai sempre queria que eu e meus irmãos morássemos um tempo lá, onde só se fala japonês. Era uma forma de aprendermos japonês e assimilarmos os valores do fundador, as ideias de simplicidade, igualdade, liberdade. E eu nunca quis. Primeiro, porque eu tinha pavor a bichos (risos). Ao mesmo tempo, meu pai era muito intelectualizado, e me educou dessas duas formas: querendo que eu fosse morar em Yuba e, ao mesmo tempo, que fosse viver fora do Brasil.

Ele também sempre me falava do kibutz. Dizia: “Já que você não quer morar em Yuba, quem sabe você vai morar no kibutz e entende como é esse sistema de vida comunitária”. Foi o que acabei fazendo. Se era para conhecer um lugar assim, que fosse em Israel.


Diógenes Moura, curador da Pinacoteca de São Paulo, escreve no livro que Yuba é “um povo que está inserido num mundo contemporâneo, mas que vive fora do caos”. Os yubenses têm essa ideia de que o mundo fora da comunidade é caótico?

Kanzawa: Têm. Uma vez a Katsue, filha do fundador, veio para cá e fomos fazer um programa com amigos. Fomos ao shopping Morumbi. Eu percebi que, em dado momento, ela estava agoniada. Dizia: “Lucille, eu preciso de uma árvore, preciso abraçar uma árvore”.

Percebi que estava incomodada demais. A geração dela (Katsue é sexagenária) talvez não se sinta tão bem fora da comunidade. Já os jovens, adoram vir para São Paulo, ir em baladas, frequentar a vida noturna. Então, depende da geração.


Os jovens falam português?

Falam. Muita coisa mudou desde a morte do fundador. Apesar de carismático, ele era uma pessoa muito rígida. Proibia as pessoas de falarem português. Entre eles, só falam em “nihon-gô” (japonês). Com a gente, claro, falam em português, mas você percebe que não têm tanta fluência.

As crianças só aprendem o português quando começam a frequentar a escola (aos seis anos). Na minha época, era muito difícil conversar com alguém de lá. Era uma ou outra pessoa que falava português.


Quantas pessoas vivem na comunidade?

Kanzawa: Hoje são 60 pessoas. No livro, é dito que são 61, mas recentemente uma delas faleceu. A comunidade já chegou a ter 300 pessoas. Foi o auge, logo depois da Segunda Guerra Mundial. Funcionários do governo foram lá e ficaram intrigados: “Por que tem tantos japoneses juntos?”.

Eles chegaram a implantar um projeto agrícola, com 220 mil aves, que foi considerado a maior granja da América Latina. Chegou a ser manchete na revista “O Cruzeiro”. Isamu Yuba se tornou amigo de Assis Chateaubriand, de Getúlio Vargas. Era muito conhecido e carismático, fazia amizade muito fácil com os poderosos.


O editor Xavier Bartaburu, que escreve o texto que acompanha o ensaio fotográfico, sugere que o modelo de vida idealizado por Isamu Yuba foi influenciado pelas ideias de Rousseau e Tolstói. Também já vi especialistas em cultura japonesa especulando influências marxistas em relação ao sistema que foi implantado ali. Você acredita que a comunidade tenha mesmo uma aura iluminista/socialista?

Acho que sim. Isamu Yuba era mesmo fã de Tolstói. Tanto que, quando um forasteiro chegou lá, ficou meio perdido, e Isamu Yuba falou assim: “Se você quiser entender nosso estilo de vida, nossa filosofia, leia Tolstoi”. E aí deu a ele os livros do escritor.

Antes de vir para o Brasil, desde muito jovem, Isamu Yuba já tinha esse ideal de construir uma comunidade igualitária. De Rousseau, concordava que o homem, por natureza, é bom, e que deveria voltar às coisas simples da vida, viver na simplicidade. Então a gente vê essa influência, sim. A gente evita falar em ideologia do comunismo, porque o termo às vezes é pejorativo, mas ele queria construir uma sociedade assim: igualitária.


No seu texto, você diz que Isamu Yuba foi um sonhador. Mas ele também foi um empreendedor porque, se não o fosse, a comunidade não teria resistido por tantos anos. Como era a liderança dele? Ele personificava a figura patriarcal típica da cultura japonesa?

Sim. Acho que, depois da morte de Isamu Yuba, a comunidade passou a perder várias pessoas. Ele era sonhador, só que colocou os seus objetivos em prática. Era também muito persuasivo. Ouvi muitas histórias de pessoas que estavam decididas a ir embora e desistiram _sem falar naquelas que partiram e depois voltaram.

Resolveram ficar, depois de conversar com ele, tamanho o poder de persuasão que ele tinha. Era muito energético também. As pessoas tinham o maior respeito por ele. Acho que numa sociedade assim, ou em qualquer sociedade, tem que ter esse tipo de liderança.


Ele conseguiu persuadir até o pai dele. Trouxe toda a família do Japão, não foi?

Exatamente. Imagina, ele tinha só 19 anos quando conseguiu convencer toda a família a vir para o Brasil. E as nossas histórias meio que se entrelaçam, a minha, a dele e a do meu pai. Isamu Yuba também gostava de viajar. Queria ser capitão da marinha para conhecer o mundo.

Na verdade, essa história começa com o avô dele, que era chefe de aldeia, e já sonhava em construir um lugar onde tudo fosse dividido, o lucro fosse revertido para o bem de toda a comunidade e não houvesse disputa. Ele já conhecia a história do avô e, por ser um idealista, quis colocá-la em prática. Mas viu que o Japão não era o lugar para isso.


Isamu Yuba morreu em 1976 e, segundo o Xavier Bartaburu, a comunidade quase se extinguiu, por causa da dificuldade de achar um novo líder. O que mudou lá desde a época em que você conviveu com eles, na infância?

Kanzawa: Percebo muita diferença. Eles são pessoas muito puras, generosas demais. Mas dependem muito de ajuda externa. Eles plantam, cultivam os vegetais. E tudo o que fazem é muito gostoso. Fazem missô (massa de soja), geleia, vários produtos.

Eles acabavam dando (o excedente), nunca pensavam em comercializar. Isamu Yuba sempre falava que dinheiro era “kitanai” (coisa suja), o grande mal da humanidade. Então eles faziam de tudo para não dar muito valor ao dinheiro, evitavam ao máximo usá-lo ou vender os produtos.

Depois, com essas crises todas, viram que não dava para viver longe do capitalismo. Acabaram se rendendo, perceberam que precisam de dinheiro para sobreviver. Não dá para viver só do que plantam, do que produzem e da arte. É muito utópico.


Como nasceu o seu livro?

Os editores da revista “Terra” (extinta) começaram a me pedir matérias de lugares onde eu já tinha ido. Conversando com (os editores) Xavier Bartaburu e Valdemir Cunha, falei: “Olha, acho que não tem nada a ver com a revista, mas já ouviram falar de uma comunidade chamada Yuba?”.

A matéria sobre a Yuba foi publicada em dezembro de 2004, e no ano seguinte eu mandei o ensaio para o Prêmio Porto Seguro. Ganhei o prêmio como fotógrafa-revelação, e eu nem era fotógrafa profissional. Minha formação não é em fotografia. Depois que ganhei o prêmio, comecei a ser muito assediada por jornalistas; dois cineastas me procuraram querendo fazer documentário.


No livro, uma frase atribuída a Isamu Yuba diz que “a terra não mente, o lavrador não consegue amar a terra sem ter, ao mesmo tempo, a pureza do verdadeiro artista”. Na concepção do “yubense”, a arte é entendida justamente como a recompensa do trabalho na lavoura?

O que sustenta mesmo a comunidade é essa dedicação às artes. Eles sempre falam que é como se fossem uma grande família. Então, existem conflitos, divergências, como em qualquer família. Mas dizem que, quando estão no palco, todas as divergências desaparecem. Entram em perfeita harmonia.

Isamu Yuba sempre falava que trabalhar na lavoura também é um meio de arte. Masakatsu, que é um dos forasteiros que se integrou, falou que a princípio teve certa resistência para trabalhar na lavoura. Achava que era um trabalho muito braçal, primitivo. Estava mais preocupado em aprimorar a técnica do violão. E Isamu Yuba dizia: “Para você ser um lavrador, precisa ser artista, e vice-versa”.

Masakatsu falou que só entendeu o significado de arte quando começou a ver o arroz crescendo. Entendeu a essência e a filosofia de Yuba. O trabalho na lavoura é duro, braçal, mas eu sempre vi uma delicadeza, tanto nos homens quanto nas mulheres. Aparece já no modo de se vestir das mulheres: de botas brancas, com lenços na cabeça. Deixa a impressão de que estão encenando. É algo muito teatral, porque fazem tudo com amor e delicadeza.


Você conheceu algum outro lugar parecido com a comunidade Yuba?

Sim, quando fui morar no kibutz, em Israel, em 1989. Quando cheguei, pensei: “Isso aqui é Yuba”. O kibutz onde morei em Israel era considerado o segundo mais rico do mundo. Tinha toda uma infraestrutura, era muito moderno. Mas a filosofia era a mesma: um por todos e todos por um.

A filosofia deles é essa: de cada um, de acordo com sua capacidade; para cada um, de acordo com sua necessidade. Ou seja, ninguém nunca tem mais nem menos. E você oferece aquilo que é capaz de oferecer.

Por exemplo: me colocaram para trabalhar numa fábrica de papelão. Eu odiei. Falei: “Não gosto desse trabalho”. Preferi trabalhar na lavoura, era mais gostoso, ao ar livre. Ninguém lá faz nada por obrigação.



segunda-feira, 16 de setembro de 2013

A ética das baratas


Por Luiz Felipe Pondé
Da Ilustrada


As pessoas têm crenças desde a pré-história. Nossa constituição frágil é uma das razões para tal. Hoje, cercados de luxo e levados a condição de mimados que somos, até esquecemos que há anos atrás mais da metade de nossas mulheres morriam de parto. Elas viviam por conta de ficarem grávidas e pronto. Hoje existe essa coisa de "escolha", profissão, filhos depois da pós, direitos iguais, ar-condicionado, reposição hormonal, bolsa Prada.

Esquecemos que direitos e escolhas são produtos mais caros do que bolsa Prada. Pensamos que brotam em árvores.

Mas existem crenças mais frágeis do que outras, algumas que beiram o ridículo. E algumas delas até recebem bênçãos de filósofos chiques.

Em 1975, o filósofo utilitarista australiano Peter Singer publicou um livro chamado "Animal Liberation", que deixou o mundo de boca aberta.

Para Singer, "bicho é gente" (porque também sente dor). A partir daí, ele encampou toda uma gama de militantes que gostaria de tornar a alimentação carnívora um crime como o canibalismo.

Achar que se pode comer animais se basearia no preconceito de que os animais seriam "seres inferiores", daí o conceito de "especismo" como análogo ao de "racismo", o conhecido preconceito contra certas raças que foram consideradas inferiores no passado.

Tudo bem a ideia de que devemos tratar os animais com respeito e carinho e sem maus-tratos (eu pessoalmente gosto mais dos meus cachorros do que de muitas pessoas que conheço, e um deles é mais inteligente do que muita gente por aí), mas esta discussão quando toca as praias dos fanáticos puristas (essa praga que antes era limitada a crente religioso, mas hoje também se caracteriza por ser um ingrediente do fanatismo sem Deus de nossa época) é de encher o saco. Se um dia eles forem maioria, o mundo acaba.

O mundo não sobreviveria a uma praga de pessoas que não usam sapatos de couro porque os considera fruto da opressão capitalista contra os bichinhos inocentes.

Ainda bem que esta "seita verde" tende a passar com a idade, e aqueles que ainda permanecem nessa depois de mais velhos ou são hippies velhos que fazem bijuteria vagabunda em praças vazias (tem coisa mais feia do que um hippie velho?) ou são pessoas com tantos problemas psicológicos que esta pequena mania adolescente até desaparece no meio do resto de seus sofrimentos com a vida real.

Recentemente ouvi uma história hilária: alguém contra matar baratas porque não se deve matar nenhuma forma de vida. Risadas? É bom da próxima vez que alguém te convidar para ir na casa dela você checar se ela defende os direitos das baratas.

Nem Kafka foi tão longe ao apontar o ridículo de um homem que, ao se ver transformado num enorme inseto marrom, se preocupou primeiro com o fato de que iria perder o bonde e por isso perder o emprego.

Eu tenho uma regra na vida: quando alguém é mais ridículo do que alguns personagens do Kafka, eu evito esta pessoa.

Às vezes me pergunto o que faz uma pessoa razoável cair num delírio como esse. Como assim "não se deve matar nenhuma forma de vida"?

A pergunta é: essa moçadinha seguidora de uma mistura de filosofia singeriana aguada e budismo light (com pitadas de delírio) já olhou para natureza a sua volta?

A natureza é a maior destruidora de vidas na face da Terra. Ela mata sem pena fracos, pobres e oprimidos. A natureza é a maior "opressora" da face da Terra. E mais: normalmente essa moçadinha é bem narcisista e muito pouco solidária com gente de carne e osso.

Se todo mundo defender o direito da baratas, um dia vamos acordar com baratas na boca, nos ouvidos, na xícara do café da manhã. A mesma coisa: se não comermos os bois e as vacas, eles vão fazer uma manifestação na Paulista pedindo direito a pastos de graça ("os sem-pastos") para garantir a sobrevivência de seus milhões de cidadãos bovinos.

Pergunto a esses adoradores de baratas: ele já pensou que as alfaces também sofrem? Ela já pensou que quando come uma alface está interrompendo toda uma vida feliz de fotossíntese? Que as alfaces também choram? Malvados e insensíveis...


sexta-feira, 13 de setembro de 2013

A vocação crítica de Antonio Candido


Por Manuel da Costa Pinto
Da Revista Cult


“Sempre tive mais intuição do que método”, diz Antonio Candido nesta entrevista concedida após dois encontros em que o autor de Formação da Literatura Brasileira fez questão de discutir as perguntas às quais responderia por escrito. Normalmente avesso a entrevistas, Antonio Candido pediu que as perguntas girassem em torno de Textos de Intervenção e Bibliografia de Antonio Candido, deslocando o eixo de seu depoimento para o trabalho de Vinicius Dantas, organizador destes dois volumes publicados pela Editora 34. Mas a modéstia com que Antonio Candido encara sua obra e a reticência em relação à exposição pública não têm importância apenas para compor o retrato jornalístico de uma das personalidades mais marcantes de nossa vida intelectual. Na verdade, essa atitude de subordinação da crítica (“um gênero auxiliar, sem a importância dos gêneros criativos”) a seu objeto de estudo é um dos traços de um ensaísta que sempre cultivou a “paixão do concreto” – expressão que ele utiliza para descrever um tipo de leitura na qual as categorias analíticas brotam da obra e de seu contexto, e não o contrário. Ou seja, embora tenha participado direta ou indiretamente na formação de uma geração de críticos que inclui nomes como os de Roberto Schwarz, João Alexandre Barbosa e Davi Arrigucci Jr., Antonio Candido não partilha o ponto de vista de quem considera a crítica literária um gênero autônomo. O que, obviamente, não nos impede de ler como alta literatura os ensaios incluídos em Brigada Ligeira, Tese e Antítese e Ficção e Confissão.

Sua obra marca a transição, no Brasil, de uma crítica de caráter “impressionista” para uma geração de críticos universitários com fortes preocupações metodológicas. Ao mesmo tempo, o senhor assinou rodapés literários dentro da tradição de Álvaro Lins e Sérgio Milliet e, ao iniciar sua colaboração com o Diário de São Paulo, prestou uma homenagem a Plínio Barreto. Como o senhor avalia esses críticos de uma geração precedente à sua, como Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux e Alceu Amoroso Lima?

Antonio Candido – Quando a minha geração se formou, nos anos de 1930 e 1940, a crítica brasileira se fazia sobretudo no jornal e estava em boa fase. Havia os encarregados de seção com rubrica fixa, chamados “titulares”, e os que, mesmo fornecendo regularmente um artigo por semana, não o faziam no lugar chamado “rodapé” nem tinham rubrica. Entre os primeiros, Alceu Amoroso Lima, Plínio Barreto, Olívio Montenegro, Álvaro Lins. Creio que Sérgio Milliet se enquadrava no segundo tipo, como Mário de Andrade, Barreto Filho, Sérgio Buarque de Holanda. Sem falar num curioso franco-atirador, Agripino Grieco, o mais lido de todos. Superficial e brilhante, teve muita influência sobre os jovens, sobretudo pela irreverência com que demolia o academismo. Costumo dizer que os rapazes que o liam ficavam vacinados contra o eventual desejo de pertencer a uma academia de letras… Agripino e Gastão Cruls fundaram e dirigiram de 1931 a 1938 o Boletim de Ariel, publicação mensal dedicada apenas à crítica: resenhas, notas, artigos curtos, informações.

Qual a sua opinião sobre as críticas de Afrânio Coutinho – defensor de uma formação teórica de matiz acadêmico – aos rodapés literários?

Creio que ele não foi propriamente crítico, mas, como dizia, um critic’s critic, uma espécie de doutrinador por meio do jornal, interessado em divulgar certas tendências modernas da crítica, sobretudo a americana. A partir de dado momento insistiu na importância da crítica universitária, que estava se esboçando no Brasil, mas é curioso que uma das correntes que mais preconizou, o New Criticism, era formada por autores que valorizavam sobretudo a leitura de textos em profundidade e tentavam se afastar o mais possível da crítica universitária tradicional, baseada na erudição e na história. Mas o critério de Afrânio Coutinho era aberto, tanto assim que considerava obra máxima da nova crítica Mimesis, de Auerbach, cuja orientação é filológica e atenta ao contexto histórico. Essa abertura influiu favoravelmente a obra fundamental por ele organizada, A Literatura do Brasil, cujos colaboradores foram deixados livres para seguir os respectivos pontos de vista, que frequentemente não coincidiam com os do organizador. O seu ataque ao jornalismo crítico tem um lado paradoxal, pois ele próprio se realizou sobretudo na imprensa periódica.

Quais eram as suas preferências metodológicas e teóricas na época em que assinava os textos publicados na revista Clima, na Folha da Manhã e no Diário de São Paulo?

Para ser franco, sempre tive mais intuição do que método. No tempo a que alude, eu me interessava pelo vínculo da produção literária com a vida social, procurando determinar a sua função. Em parte, porque sou formado em ciências sociais; em parte, porque estava começando a militar em grupos de esquerda e tencionava politizar o meu trabalho crítico. A reflexão sobre as limitações de Sílvio Romero, que fiz numa tese de 1945, mais a influência da crítica americana e inglesa daquele tempo me levaram a retificar posições iniciais e tentar uma abordagem mais atenta à realidade própria dos textos. Sem falar que quando temos que escrever um artigo por semana sobre obras de vários tipos, elas acabam impondo a sua realidade e nós vamos deixando alguns pressupostos de lado para nos ajustarmos à natureza de cada uma. O crítico muito estrito em matéria de teoria e método acaba tendendo a tratar apenas as obras que se enquadram nos seus pressupostos.

Quais eram os seus critérios de orientação na Universidade? Como atuava em relação aos seus orientandos?

É preciso esclarecer que até os quarenta anos fui na Universidade assistente de sociologia. Quando me tornei professor de literatura em 1958, na Faculdade de Assis, e a partir de 1961 em São Paulo, nos cursos procurei sobretudo contrapor o trabalho com os textos à tendência histórica e biográfica tradicional, ou ao exagero de teoria que estava começando. Além disso, iniciei o estudo dos autores modernistas e seus sucessores, que até então não eram tema de ensino superior. Neste sentido, usei em aulas e seminários textos de Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, João Cabral, além de sugerir Mário de Andrade e Oswald de Andrade como assuntos de dissertações e teses. Com relação aos orientandos, a minha tendência era dar toda assistência aos que a solicitavam e precisavam dela, deixando liberdade completa aos que não queriam e nem precisavam. Este último caso ocorreu sobretudo nos doutorados pelo regime antigo, bastante informal, onde a elaboração da tese era praticamente tudo e não havia a obrigação de seguir cursos. Nesse regime tive candidatos já maduros intelectualmente, inclusive alguns de renome, aos quais, é claro, deixava liberdade total.

O senhor acredita que a crítica literária seja um gênero autônomo, comparável aos demais gêneros literários?

Sempre considerei a crítica um gênero auxiliar, sem a importância dos gêneros criativos. Tive vocação crítica precoce e por sugestão de minha mãe adquiri desde os quinze anos este hábito de comentar a leitura em cadernos. Por isso, aos vinte e três pude começar a escrever na revista Clima sem nenhuma experiência anterior. Desde cedo gostei de ler os críticos brasileiros e franceses, nos jornais, nas revistas, nos livros de meus pais. Digo isso para sublinhar a minha identificação profunda com a atividade que sempre exerci a partir dos vinte e três anos, mesmo quando profissionalmente fazia outra coisa na Universidade. Considero-me, portanto, um crítico nato, mas isso não me impede de considerar a crítica um gênero lateral e dependente.

Existe diferença – em termos de permanência – entre o ensaio de crítica literária e o ensaio de interpretação cultural (como praticado por Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda ou Caio Prado)?

Parece que os ensaios que o senhor chama “de interpretação cultural” duram mais porque têm mais alcance aos olhos do público, na medida em que se referem ao país, à sociedade, à formação histórica, geralmente de interesse mais geral do que a literatura. Seja como for, nunca houve no Brasil um livro de crítica ou de história literária da categoria dos que foram escritos pelos autores que citou.

Textos de Intervenção traz críticas sobre poesia que o senhor não incluiu em seus livros anteriores – em que predominam análises de obras em prosa. Por que havia essa predominância da prosa em sua obra pregressa?

Não se esqueça de que sempre escrevi muito sobre poesia e que tenho um livrinho didático, Na Sala de Aula, no qual só há análises de poemas.


A crítica “militante”, feita no dia a dia dos jornais, no momento da publicação de obras e autores ainda desconhecidos, é talvez a forma mais arriscada de crítica, pois equivale a uma aposta na continuidade de um trabalho ainda em gestação. Quais são os autores que confirmaram sua avaliação inicial? E, inversamente, houve casos de autores em que o senhor enxergava uma promessa que não se confirmou?

O senhor tem razão quanto ao risco. Não é fácil escrever todas as semanas sobre livros do dia, feitos muitas vezes por autores desconhecidos, a respeito dos quais não se tem a menor referência. Por isso digo que um crítico como Álvaro Lins, que acertava sempre e produzia artigos bem escritos, de grande densidade e destemor, enfrentava dificuldades maiores do que, por exemplo, Augusto Meyer, que escrevia não sobre o livro da semana, de autor frequentemente desconhecido, mas sobre Camões, Cervantes, Machado de Assis, Dostoiévski, Pirandello, Rimbaud. Sempre de maneira impecável, é certo, mas sem correr o risco de avaliar o que ainda não fora consagrado. O jornalismo crítico é uma grande escola e, de certo modo, um teste importante, requerendo intuição certeira, rapidez de apreensão, capacidade de decidir e clareza de escrita. O jornalismo crítico de tipo francês foi a nossa grande escola, a de José Veríssimo, Alceu Amoroso Lima, Sérgio Milliet, Plínio Barreto, Álvaro Lins etc. Não pretendo me equiparar a eles, mas reconheço em mim um pouco dos requisitos mencionados, que me permitiram, por exemplo, reconhecer imediatamente o valor de três estreantes desconhecidos: João Cabral, Clarice Lispector, Guimarães Rosa. Cometi erros paralelos, dando importância a autores que não a tinham, supervalorizando livros fracos de autores famosos; mas não me lembro de nenhum erro calamitoso, isto é, considerar de primeira plana quem não era ou desqualificar alguém de alto nível. Mas talvez a memória esteja manobrando a meu favor…

O senhor acredita que o impacto das obras literárias altera os princípios metodológicos da crítica? Obras como as de Guimarães Rosa e Clarice Lispector estimularam a criação de novos conceitos da teoria literária?

Creio que sim, embora não necessariamente. Eu próprio tive a oportunidade de estudar como o poema cavaleiresco do Renascimento italiano suscitou o primeiro esboço de teoria do romance em Giraldi Cinthio. A ficção de Stendhal e a de Balzac influíram na formação dos pontos de vista críticos de Taine, orientados pelo determinismo. A obra de Henry James foi decisiva para certo tipo de teoria do romance, que privilegiava a perfeição formal, encarnada no que alguns denominaram “o romance bem feito” (the well made novel). Haja vista o livro de Percy Lubbock, The Craft of Fiction, que tanta influência teve. As obras brasileiras que o senhor citou levaram muitos críticos a focalizar problemas de criação linguística.

Dando continuidade à pergunta anterior: sua obra foi modificada, em termos conceituais, pelos caminhos tomados pela literatura brasileira desde o Modernismo?

É difícil dizer, porque o modernismo dos anos de 1920 teve influência muito ampla e profunda na literatura e mesmo na cultura brasileira, sobretudo como abertura para a liberdade de escrever e de pensar. Mas creio que influiu pouco no teor do meu trabalho crítico, em minha maneira de conceber a análise das obras, porque, em matéria de estudos literários, a análise (parece que hoje fora de moda) me interessa mais do que tudo. Ora, o espírito analítico depende de uma inclinação natural e do convívio com certos textos, além das oportunidades de receber influências diretas ou indiretas. Em tudo isso, no meu caso, o modernismo pesou pouco, apesar de ter admirado sempre muito os modernistas, com alguns dos quais convivi. O que formou a minha mentalidade, e portanto o meu espírito crítico, foram, em primeiro lugar, o ambiente de minha família, marcado por pai e mãe muito cultos e por uma ótima biblioteca. A seguir, a leitura voraz e caudalosa desde os oito ou nove anos, com predomínio dos autores franceses. Mais tarde, a Faculdade de Filosofia da USP, com seus professores estrangeiros, que nos marcaram profundamente, e com meus companheiros de geração, o chamado “grupo de Clima”. Com isso vejo que não respondi à sua pergunta, mas disse algo que explica minha formação.

O senhor acredita que a publicação de Textos de Intervenção altera o entendimento do conjunto de sua obra?

Antes de mais nada, acho que não tenho “uma obra”, mas escritos de vário tipo, que foram se articulando meio ao sabor das circunstâncias. No entanto, Vinicius Dantas fez neste livro um trabalho de análise esclarecedora, que foi para mim cheia de surpresas e talvez para outros modifique o que sabem e pensam a respeito do que escrevi. O crítico procura frequentemente descobrir a razão profunda dos textos, razão cuja natureza pode escapar a quem os produziu. Para mim foi uma experiência frequentemente reveladora ver como ele fez isso em relação ao meu trabalho, localizando e definindo os seus pressupostos. É certo que o fez com demasiada generosidade, mas também muita argúcia, revelando-se um crítico penetrante, servido por uma escrita de primeira ordem. E como selecionou textos de pouca circulação, ligados a definições críticas e ideológicas, é provável que venha a modificar a impressão de muita gente sobre a minha atividade intelectual. E quem sabe esta obra em dois volumes esteja criando um gênero novo, ao mostrar que é possível transformar a bibliografia numa coisa atraente, graças à combinação com a iconografia e os textos. Sou profundamente grato a Vinicius Dantas por ter imaginado e realizado esse trabalho ao longo de tantos anos.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Modernidade triste?



Por Contardo Calligaris
Da Ilustrada

No século 4 da nossa era, nos mosteiros da Europa, a tristeza, "accidia" em latim, era considerada pecado grave, e as regras monásticas se esforçavam para identificá-la e combatê-la. Mesmo assim, muitos monges continuavam tristes.

A Europa era uma desolação. Das janelas de seus oásis de (relativa) tranquilidade, os monges podiam enxergar o horror. A cultura clássica, grega e romana, era esquecida --ignorada pela imensa maioria de iletrados ou perdida no descaso pelos manuscritos antigos. O desabamento do Império Romano transformara o território em uma terra de ninguém, em que o poder ficava com as hordas de mercenários e bandidos ocasionais. Suficiente para qualquer um ficar triste.

Mas talvez haja uma razão menos contingente para a tristeza aparecer como uma nova aflição, bem na hora em que a cultura clássica deixava seu lugar ao cristianismo. É irônico, aliás, que a dita tristeza ameaçasse logo os monges, que eram guardiões dos textos gregos e romanos que sobravam, mas que também praticavam o palimpsesto -- a arte de apagar os manuscritos antigos para usar os pergaminhos novamente, copiando os textos da nova religião.

Note-se também que, desde a acídia dos monges, a tristeza parece ter se tornado um traço distintivo da cultura ocidental e, especificamente, da modernidade, do "spleen" romântico até a depressão clínica, hoje diagnosticada a esmo. Por que, então, seríamos culturalmente tristes?

Naquele momento, no século 4, morria uma cultura para a qual o que importava era viver o momento, e nascia outra, para a qual nossa vida era apenas uma provação, pela qual ganharíamos ou perderíamos a chance de uma suposta eternidade feliz.

Desde então, é como se a vida que importa nunca mais fosse a que estamos vivendo; o pátio de casa não basta, somos infelizes e insatisfeitos porque a vida "verdadeira" nos espera lá onde ainda não chegamos.

A cultura clássica, que morria, tinha valorizado um estilo de vida norteado por um uso discreto e constante dos deleites da mente e da carne. A cultura cristã, que nascia, apontava no prazer um parente do vício e valorizava o sacrifício e a renúncia, como se Deus tivesse um apreço por nosso sofrimento.

Não sei por que Deus reconheceria algum mérito nas renúncias da gente. Freud responderia, provavelmente, que esta é a função social da religião: controlar nossos impulsos, impondo as renúncias que são necessárias para que a convivência social se torne possível. Muitos iluministas pensaram a mesma coisa.

Graças ao cristianismo, ao considerar castigos e recompensas na eternidade, nós nos tornaríamos governáveis -- sem medo do além, não haveria convívio possível (o paradoxo aqui é que essa consideração não inibiu a própria Igreja, que durante séculos e séculos foi uma instituição de crueldade inaudita).

A cultura clássica (Epicuro, por exemplo) preferia tratar os humanos como adultos e apostar que eles se disciplinariam sem ter que acreditar em um além e sem precisar de um mercado de punições e prêmios eternos: a consciência da finitude da vida seria suficiente para torná-los comedidos e dignos.

Em um jantar na casa de Thérèse Parisot, em dezembro de 1970 (sei a data pois a conversa foi sobre as condenações dos processos de Burgos), Jacques Lacan, o psicanalista francês, chegou com um pequeno volume in-octavo. Era um panfleto anônimo, segundo o qual o verdadeiro messias não era Cristo, mas Epicuro (peço que se manifestem os bibliófilos que reconhecerem o livro). Certamente, a obra era a provocação de um libertino dos séculos 17 ou 18.

Mas a questão continua valendo: será que uma modernidade seria possível sem a desvalorização do momento presente e sem a repulsa ao prazer que são partes da mensagem cristã e que talvez sejam a fonte de nossa tristeza crônica?

Qual modernidade seria possível com Epicuro, e não contra ele? Somos modernos graças ao cristianismo ou somos modernos graças ao materialismo e à disciplina dos prazeres que atravessaram a modernidade perseguidos e silenciados pelo cristianismo?

Para inventar uma resposta, um livro imperdível: dos ensaios que li nos últimos 15 anos, nenhum me prendeu e me tocou tanto quanto "A Virada, o Nascimento do Mundo Moderno", de Stephen Greenblatt.


quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Hannah Arendt e a banalidade do mal


Por Marcia Tiburi
Da Revista Cult

Hannah Arendt, filósofa que dá nome ao filme de Margarethe von Trotta, é autora de uma das obras filósoficas mais importantes do século 20. A diretora opta por retrarar a filósofa como uma pessoa comum, a professora envolvida com seu trabalho acadêmico, suas aulas e pesquisas. Fixa o enredo do filme no período em que Hannah Arendt escreveu seu polêmico Eichmann em Jerusalém. Tenta mostrar o que se passava com a filósofa, o cenário que a motivou a escrever o livro cujo conteúdo foi tomado por muitos como um escândalo. O motivo era a análise desmistificatória de Adolf Eichmann, o carrasco nazista capturado na Argentina e julgado em Jerusalém em 1962. Esperava–se desse homem que fosse um monstro, um ser maligno, um louco, cruel e perverso. A percepção de Arendt acerca do caráter desse personagem histórico, de sua postura comum que o fazia igual à tanta gente, causou mal estar.
Foi justamente a postura de Eichmann que permitiu a Arendt cunhar a ideia tão curiosa quanto crítica relativa à “banalidade do mal”. Por banalidade do mal, ela se referia ao mal praticado no cotidiano como um ato qualquer. Muitas pessoas interpretaram a visão de Arendt como uma afronta à desgraça judaica, enquanto ela – filósofa descomprometida com qualquer tipo de facção, religião, partido ou ideologia – tentava entender o que realmente se passava com a subjetividade de um homem como Eichmann.
Arendt não tomava sua condição de judia como superior à sua posição como pensadora comprometida com a compreensão de seu tempo. A condição judaica era, para ela, condição humana. Não menos, não mais. O problema da subjetividade, das escolhas éticas que implicam liberdade e responsabilidade, era a questão central no momento em que se tratava de pensar e realizar a política.

A performatividade da tese

No filme, fica claro que aqueles que se manifestaram furiosos ou ofendidos contra a tese de Arendt de fato não a compreenderam. Isso porque a tese da banalidade do mal é uma tese difícil, não por sua lógica, mas por seu caráter performativo. Aquele que é confrontado com ela precisa fazer um exame de sua consciência particular em relação ao geral e, portanto, de seus atos enquanto participante da condição humana. A banalidade do mal significa que o mal não é praticado como atitude deliberadamente maligna.  O praticante do mal banal é o ser humano comum, aquele que ao receber ordens não se responsabiliza pelo que faz, não reflete, não pensa. Eichmann foi caracterizado por Arendt como uma pessoa tomada pelo “vazio do pensamento”, como um imbecil que não pensava, que repetia clichês e era incapaz de um exame de consciência. Heidegger, o filósofo nazista que diz ter se arrependido de aderir ao regime, era, no entanto, um gênio da filosofia e, contudo, não era diferente de Eichmann.
Aterrador, no entanto, é que entre Eichmann, o imbecil, e Heidegger, o gênio, esteja o ser humano comum. Eichmann não era diferente de qualquer pessoa, era um simples burocrata que recebia ordens e que punha em funcionamento a “máquina” do sistema, do mesmo modo que cada um de nós pode fazê-lo a cada momento em que, liberado da reflexão que une, em nossa capacidade de discernimento e julgamento, a teoria e a prática, seguimos as “tendências dominantes” como escravos livres, contudo, de si mesmos.  Sair da banalidade do mal é fazer a opção ética e responsável na contramão da tendência à destruição que convida constantemente cada um a aderir.
A banalidade do mal é, portanto, uma característica de uma cultura carente de pensamento crítico, em que qualquer um – seja judeu, cristão, alemão, brasileiro, mulher, homem, não importa – pode exercer a negação do outro e de si mesmo.
Em um país como o Brasil, em que a banalidade do mal realiza-se na corrupção autorizada, na homofobia, no consumismo e no assassinato de todos aqueles que não têm poder, seja Amarildo de Souza, seja Celso Rodrigues Guarani–Kaiowá, uma parada para pensar pode significar o bom começo de um crime a menos na sociedade e no Estado transformados em máquina mortífera.


terça-feira, 10 de setembro de 2013

A liberdade de ver os outros


Por David Foster Wallace
Da Revista Piauí

Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz:

- Bom dia, meninos. Como está a água?

Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:

- Água? Que diabo é isso?

Não se preocupem, não pretendo me apresentar a vocês como o peixe mais velho e sábio que explica o que é água ao peixe mais novo. Não sou um peixe velho e sábio. O ponto central da história dos peixes é que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida. Enunciada dessa -forma, a frase soa como uma platitude - mas é fato que, nas trincheiras do dia-a-dia da existência adulta, lugares comuns banais podem adquirir uma importância de vida ou morte.

Boa parte das certezas que carrego comigo acabam se revelando totalmente equivocadas e ilusórias. Vou dar como exemplo uma de minhas convicções automáticas: tudo à minha volta respalda a crença profunda de que eu sou o centro absoluto do universo, de que sou a pessoa mais real, mais vital e essencial a viver hoje. Raramente mencionamos esse egocentrismo natural e básico, pois parece socialmente repulsivo, mas no fundo ele é familiar a todos nós. Ele faz parte de nossa configuração padrão, vem impresso em nossos circuitos ao nascermos.

Querem ver? Todas as experiências pelas quais vocês passaram tiveram, sempre, um ponto central absoluto: vocês mesmos. O mundo que se apresenta para ser experimentado está diante de vocês, ou atrás, à esquerda ou à direita, na sua tevê, no seu monitor, ou onde for. Os pensamentos e sentimentos dos outros precisam achar um caminho para serem captados, enquanto o que vocês sentem e pensam é imediato, urgente, real. Não pensem que estou me preparando para fazer um sermão sobre compaixão, desprendimento ou outras "virtudes". Essa não é uma questão de virtude - trata-se de optar por tentar alterar minha configuração padrão original, impressa nos meus circuitos. Significa optar por me libertar desse egocentrismo profundo e literal que me faz ver e interpretar absolutamente tudo pelas lentes do meu ser.

Num ambiente de excelência acadêmica, cabe a pergunta: quanto do esforço em adequar a nossa configuração padrão exige de sabedoria ou de intelecto? A pergunta é capciosa. O risco maior de uma formação acadêmica - pelo menos no meu caso - é que ela reforça a tendência a intelectualizar demais as questões, a se perder em argumentos abstratos, em vez de simplesmente prestar atenção ao que está ocorrendo bem na minha frente.

Estou certo de que vocês já perceberam o quanto é difícil permanecer alerta e atento, em vez de hipnotizado pelo constante monólogo que travamos em nossas cabeças. Só vinte anos depois da minha formatura vim a entender que o surrado clichê de "ensinar os alunos como pensar" é, na verdade, uma simplificação de uma ideia bem mais profunda e séria. "Aprender a pensar" significa aprender como exercer algum controle sobre como e o que cada um pensa. Significa ter plena consciência do que escolher como alvo de atenção e pensamento. Se vocês não conseguirem fazer esse tipo de escolha na vida adulta, estarão totalmente à deriva.

Lembrem o velho clichê: "A mente é um excelente servo, mas um senhorio terrível." Como tantos clichês, também esse soa inconvincente e sem graça. Mas ele expressa uma grande e terrível verdade. Não é coincidência que adultos que se suicidam com armas de fogo quase sempre o façam com um tiro na cabeça. Só que, no fundo, a maioria desses suicidas já estava morta muito antes de apertar o gatilho. Acredito que a essência de uma educação na área de humanas, eliminadas todas as bobagens e patacoadas que vêm junto, deveria contemplar o seguinte ensinamento: como percorrer uma confortável, próspera e respeitável vida adulta sem já estar morto, inconsciente, escravizado pela nossa configuração padrão - a de sermos singularmente, completamente, imperialmente sós.

Isso também parece outra hipérbole, mais uma abstração oca. Sejamos concretos então. O fato cru é que vocês, graduandos, ainda não têm a mais vaga ideia do significado real do que seja viver um dia após o outro. Existem grandes nacos da vida adulta sobre os quais ninguém fala em discursos de formatura. Um desses nacos envolve tédio, rotina e frustração mesquinha.

Vou dar um exemplo prosaico imaginando um dia qualquer do futuro. Você acordou de manhã, foi para seu prestigiado emprego, suou a camisa por nove ou dez horas e, ao final do dia, está cansado, estressado, e tudo que deseja é chegar em casa, comer um bom prato de comida, talvez relaxar por umas horas, e depois ir para cama, porque terá de acordar cedo e fazer tudo de novo. Mas aí lembra que não tem comida na geladeira. Você não teve tempo de fazer compras naquela semana, e agora precisa entrar no carro e ir ao supermercado. Nesse final de dia, o trânsito está uma lástima.

Quando você finalmente chega lá, o supermercado está lotado, horrivelmente iluminado com lâmpadas fluorescentes e impregnado de uma música ambiente de matar. É o último lugar do mundo onde você gostaria de estar, mas não dá para entrar e sair rapidinho: é preciso percorrer todos aqueles corredores superiluminados para encontrar o que procura, e manobrar seu carrinho de compras de rodinhas emperradas entre todas aquelas outras pessoas cansadas e apressadas com seus próprios carrinhos de compras. E, claro, há também aqueles idosos que não saem da frente, e as pessoas desnorteadas, e os adolescentes hiperativos que bloqueiam o corredor, e você tem que ranger os dentes, tentar ser educado, e pedir licença para que o deixem passar. Por fim, com todos os suprimentos no carrinho, percebe que, como não há caixas suficientes funcionando, a fila é imensa, o que é absurdo e irritante, mas você não pode descarregar toda a fúria na pobre da caixa que está à beira de um ataque de nervos.

De qualquer modo, você acaba chegando à caixa, paga por sua comida e espera até que o cheque ou o cartão seja autenticado pela máquina, e depois ouve um "boa noite, volte sempre" numa voz que tem o som absoluto da morte. Na volta para casa, o trânsito está lento, pesado etc. e tal.

É num momento corriqueiro e desprezível como esse que emerge a questão fundamental da escolha. O engarrafamento, os corredores lotados e as longas filas no supermercado me dão tempo de pensar. Se eu não tomar uma decisão consciente sobre como pensar a situação, ficarei irritado cada vez que for comprar comida, porque minha configuração padrão me leva a pensar que situações assim dizem respeito a mim, a minha fome, minha fadiga, meu desejo de chegar logo em casa. Parecerá sempre que as outras pessoas não passam de estorvos. E quem são elas, aliás? Quão repulsiva é a maioria, quão bovinas, e inexpressivas e desumanas parecem ser as da fila da caixa, quão enervantes e rudes as que falam alto nos celulares.

Também posso passar o tempo no congestionamento zangado e indignado com todas essas vans, e utilitários e caminhões enormes e estúpidos, bloqueando as pistas, queimando seus imensos tanques de gasolina, egoístas e perdulários. Posso me aborrecer com os adesivos patrióticos ou religiosos, que sempre parecem estar nos automóveis mais potentes, dirigidos pelos motoristas mais feios, desatenciosos e agressivos, que costumam falar no celular enquanto fecham os outros, só para avançar uns 20 metros idiotas no engarrafamento. Ou posso me deter sobre como os filhos dos nossos filhos nos desprezarão por desperdiçarmos todo o combustível do futuro, e provavelmente estragarmos o clima, e quão mal-acostumados e estúpidos e repugnantes todos nós somos, e como tudo isso é simplesmente pavoroso etc. e tal.

Se opto conscientemente por seguir essa linha de pensamento, ótimo, muitos de nós somos assim - só que pensar dessa maneira tende a ser tão automático que sequer precisa ser uma opção. Ela deriva da minha configuração padrão.

Mas existem outras formas de pensar. Posso, por exemplo, me forçar a aceitar a possibilidade de que os outros na fila do supermercado estão tão entediados e frustrados quanto eu, e, no cômputo geral, algumas dessas pessoas provavelmente têm vidas bem mais difíceis, tediosas ou dolorosas do que eu.

Fazer isso é difícil, requer força de vontade e empenho mental. Se vocês forem como eu, alguns dias não conseguirão fazê-lo, ou simplesmente não estarão a fim. Mas, na maioria dos dias, se estiverem atentos o bastante para escolher, poderão preferir olhar melhor para essa mulher gorducha, inexpressiva e estressada que acabou de berrar com a filhinha na fila da caixa. Talvez ela não seja habitualmente assim. Talvez ela tenha passado as três últimas noites em claro, segurando a mão do marido que está morrendo. Ou talvez essa mulher seja a funcionária mal remunerada do Departamento de Trânsito que, ontem mesmo, por meio de um pequeno gesto de bondade burocrática, ajudou algum conhecido seu a resolver um problema insolúvel de documentação.

Claro que nada disso é provável, mas tampouco é impossível. Tudo depende do que vocês queiram levar em conta. Se estiverem automaticamente convictos de conhecerem toda a realidade, vocês, assim como eu, não levarão em conta possibilidades que não sejam inúteis e irritantes. Mas, se vocês aprenderam como pensar, saberão que têm outras opções. Está ao alcance de vocês vivenciarem uma situação "inferno do consumidor" não apenas como significativa, mas como iluminada pela mesma força que acendeu as estrelas.

Relevem o tom aparentemente místico. A única coisa verdadeira, com V maiúsculo, é que vocês precisam decidir conscientemente o que, na vida, tem significado e o que não tem.

Na trincheira do dia-a-dia, não há lugar para o ateísmo. Não existe algo como "não venerar". Todo mundo venera. A única opção que temos é decidir o que venerar. E o motivo para escolhermos algum tipo de Deus ou ente espiritual para venerar - seja Jesus Cristo, Alá ou Jeová, ou algum conjunto inviolável de princípios éticos - é que todo outro objeto de veneração te engolirá vivo. Quem venerar o dinheiro e extrair dos bens materiais o sentido de sua vida nunca achará que tem o suficiente. Aquele que venerar seu próprio corpo e beleza, e o fato de ser sexy, sempre se sentirá feio - e quando o tempo e a idade começarem a se manifestar, morrerá um milhão de mortes antes de ser efetivamente enterrado.

No fundo, sabemos de tudo isso, que está no coração de mitos, provérbios, clichês, epigramas e parábolas. Ao venerar o poder, você se sentirá fraco e amedrontado, e precisará de ainda mais poder sobre os outros para afastar o medo. Venerando o intelecto, sendo visto como inteligente, acabará se sentindo burro, um farsante na iminência de ser desmascarado. E assim por diante.

O insidioso dessas formas de veneração não está em serem pecaminosas - e sim em serem inconscientes. São o tipo de veneração em direção à qual você vai se acomodando quase que por gravidade, dia após dia. Você se torna mais seletivo em relação ao que quer ver, ao que valorizar, sem ter plena consciência de que está fazendo uma escolha.

O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.

Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros - no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.

Pensem de tudo isso o que quiserem. Mas não descartem o que ouviram como um sermão cheio de certezas. Nada disso envolve moralidade, religião ou dogma. Nem questões grandiosas sobre a vida depois da morte. A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte. Diz respeito a chegar aos 30 anos, ou talvez aos 50, sem querer dar um tiro na própria cabeça. Diz respeito à consciência - consciência de que o real e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso redor - daquilo que devemos lembrar, repetindo sempre: "Isto é água, isto é água."

É extremamente difícil lembrar disso, e permanecer consciente e vivo, um dia depois do outro.


*Um dos escritores mais admirados de sua geração, o americano David Foster Wallace se suicidou em setembro de 2008, aos 46 anos. Este texto foi tirado de seu discurso de paraninfo para formandos do Kenyon College, há três anos.